Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O tempo na produção em fluxo contínuo

O tema central deste artigo é o estudo da relação entre tempo e jornalismo. O objetivo é discutir a forma como a percepção do tempo na sociedade influencia as condições de produção da notícia e a identidade profissional do jornalista. O enfoque da análise será dado à produção jornalística online, tendo como base estudos realizados no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília, sob a orientação da professora Zélia Adghirni.

Num primeiro momento, o artigo dedica-se à revisão do que será chamado aqui de ‘paradigma mecaniscista do tempo’. A idéia é discutir a forma como tempo é percebido individualmente, tendo como referência aportes provenientes de diferentes campos do saber.

A partir daí, a noção de temporalidade será concebida e trabalhada como fenômeno construído socialmente. Neste sentido, o tempo será entendido dentro da concepção de sociedade em rede (Castells, 1997), sem dispensar, no entanto a contribuição de outros modelos de análise sobre o tempo e a sociedade. Numa terceira etapa, essa definição de tempo será aplicado ao estudo da produção noticiosa online e na construção da identidade profissional do jornalista.

É preciso destacar que o impacto dessas alterações na noção de temporalidade não são exclusivos da mídia Internet. Ou seja, rádio, TV e jornal impresso também terão seus ritmos de produção afetados pelas mudanças na sociedade. A Rede, no entanto já nasce dentro dessa lógica de tempo. Por isso, ela é capaz de assimilar, como nenhum outro meio, as características da sociedade em rede.

Crítica ao ‘paradigma mecaniscista do tempo’: da mecânica clássica às diferentes percepções individuais da temporalidade

O que se chama aqui de ‘paradigma mecaniscista de tempo’ vincula-se a um processo de objetivação da escala temporal pelo senso comum. Assim, a temporalidade seria percebida (ou imaginada) como uma ‘flecha do tempo’, dentro de uma visão que remete à idéia de um fluxo temporal. De certa forma, o tempo absoluto do ‘paradigma mecaniscista’ se vincula ao projeto iluminista de racionalização da sociedade. ‘Em semelhante esquema temporal’, afirma David Harvey (1996: 229), ‘era possível ver a retrovisão e a previsão como proposições simétricas, assim como formular um forte sentido de potencialidade do controle do futuro’.

Ao criticar o modelo de ‘flecha do tempo’, Harvey defende o reconhecimento de uma multiplicidade de qualidades objetivas que a temporalidade exprime à medida que se relaciona com as práticas do ser humano. Parte-se, portanto, da idéia de percepção como uma forma de adquirir o conhecimento a partir de sensações individuais, caracterizando-se sobretudo por sua dimensão simbólica (Fidalgo, 2002).

Historicamente, a crise do ‘paradigma mecaniscista do tempo’ se inicia em meados do século XIX e atinge seu ápice entre os anos de 1910 a 1914. É durante este período, que a percepção individual do tempo será sistematicamente relativizada. Em 1913 o surgimento da linha de montagem na fábrica da Ford vai implicar num processo de aceleração do tempo pela organização do espaço e pela fragmentação da ordem espacial de produção. Será ainda neste período que Einstein vai formular a Teoria Especial da Relatividade (1910) e a Teoria Geral da Relatividade (1916), onde a idéia de tempo absoluto será abandonada também pela física

O tempo na física

A Teoria da Relatividade partiu das leis de movimento de Newton, onde o tempo era visto como absoluto e completamente separado do espaço e incorporou estudos posteriores que contradiziam a mecânica clássica, como as teorias de Clerk Maxuel e o conceito de velocidade da luz.

A formulação da famosa equação de equivalência entre massa e energia (E=mc2) teve grande impacto sobre os antigos conceitos de espaço e tempo. As duas variáveis não seriam independentes entre si, mas se combinariam para formar um elemento espaço-tempo, construído a partir de quatro coordenadas (as três dimensões do espaço, mas a dimensão temporal). Por isso, a física moderna vai colocar em xeque a idéia de que o tempo ‘flui’ e de que existiria uma distinção entre presente, passado e futuro. O que os cientistas preferem pensar, na verdade, é na noção de uma paisagem temporal (‘timescape’) com tempo e espaço inteiramente mapeáveis.

A teoria de Einstein teve um grande impacto na relativização das noções de tempo absoluto e de espaço euclidiano e perspectivista. Uma discussão paralela, embora bastante vinculada às noções da física, será realizada também pelas diferentes correntes filosóficas.

O tempo na filosofia

A noção mais antiga de tempo na filosofia remonta os gregos. Segundo ela, o tempo é concebido como a ordem mensurável do movimento. Essa idéia parte de uma noção cíclica do mundo e da vida humana e serviu, mais tarde, de base para a fundamentação da mecânica clássica de Newton.

Outra concepção define o tempo como o movimento intuitivo, ou seja, traz consigo a redução do tempo à consciência. Seguindo esta noção, Hegel, define o tempo a partir de dois princípios:

1. Novidade absoluta a cada instante já que é um processo contínuo de criação;

2. Conservação infalível e integral do passado que age como uma bola de neve e continua crescendo à medida que caminha para o futuro.

O filósofo Edmund Husserl, por sua vez, divide a noção de temporalidade em duas categorias distintas: o tempo cósmico, mensurável pela ciência e o tempo fenomenológico, tempo do interior da consciência, inseparável da vivência. A partir daí, Husserl desenvolve a concepção de que o tempo se insere numa corrente infinita de vivências, embora se resuma a um horizonte temporal onde se encerram todas as possibilidades. A noção de temporalidade, dessa forma, mudaria sempre com as alterações da consciência e do próprio fluxo. Será a partir do conceito de horizonte de Husserl, que filosofia existencialista vai desenvolver a concepção de tempo como uma estrutura de possibilidades.

Na obra ‘O Ser e o Tempo’, Heidegger vai caracterizar essa estrutura como um horizonte finito já que são finitas também as possibilidades humanas. Assim o Ser projetar-se-ia no futuro em busca de possibilidades próprias de vir a ser. A existência do Ser se faz a partir da angústia e da preocupação do Vir a Ser o que aspira. Por isso, ele cria sua própria história, vive sua própria temporalidade. [O filósofo francês Jean Paul Sartre difere da análise heideggeriana sobre a natureza do tempo. Enquanto para Heidegger a primazia da relação entre o ser e tempo se dá no futuro, Sartre privilegia essa relação sob a perspectiva do presente].

A escola existencialista trouxe grandes contribuições para a especulação filosófica sobre a natureza da temporalidade. A mais importante é a aproximação da filosofia com as transformações na concepção de tempo advindas com a relatividade (Abbagnano, 1998). Os existencialistas foram responsáveis ainda pela elaboração de novos conceitos interpretativos como: projeção, antecipação, expectativa etc.

A revisão do paradigma mecaniscista do tempo traz a idéia da convivência entre diferentes modalidades individuais de tempo na vida social. [Uma perspectiva interessante sobre a relação homem tempo é dada pela biologia. Segundo ela, a relação entre homem e tempo é socialmente determinada já que os instintos básicos do homem e a percepção biológica do tempo continuam os mesmos desde a Idade da Pedra. Por isso, é a cultura humana que sofre inúmeras transformações na experiência subjetiva do tempo ao longo dos séculos]. O estudo dessas modalidade, no entanto, é extremamente problemático, já que as práticas sociais responsáveis pelas diferentes percepções de tempo são tão variadas como as experiências individuais e coletivas. O desafio, segundo Harvey (1996: 195), ‘consiste em cercá-las de algumas estruturas interpretativas gerais que vençam o hábito entre a mudança cultural e a dinâmica da economia política’.

Tempo e sociedade: do relógio circadiano ao ‘tempo real’

Vários autores já se dispuseram a elaborar tipologias onde associam os diferentes ritmos de tempo às mudanças na estrutura social. Gurvitch (1964 in Harvey, 1996), por exemplo, chega a dividir os diferentes tempos sociais em oito categorias que vão coexistir no decorrer da História. Seriam elas: o tempo permanente, o tempo ilusório, o tempo errático, o tempo cíclico, o tempo retardado, o tempo alternado, o tempo à frente de si mesmo (acelerado) e o tempo exclusivo. Neste artigo, contudo, o estudo das relações entre tempo e sociedade estará centrado nas mudanças de ritmos temporais que vão surgir com Modernidade e, mais tarde, com a passagem desta para as sociedades em rede.

A Modernidade traz a separação entre a percepção do tempo e sua vinculação com os ritmos naturais. Na sua análise sobre os ‘Três tempos do espírito’, Pierre Lévy (1993) associa essa passagem ao fim da oralidade nas sociedades antigas com o advento da escrita e, mais tarde, da imprensa. Na visão do sociólogo francês, as sociedades sem-escrita caracterizam-se por uma produção espaço-temporal baseada na memória. Daí a importância do mito como um fator fundamental na estruturação de uma percepção cíclica do tempo:

A transmissão, a passagem do tempo supõem portanto um incessante movimento de recomeço, de reiteração. Ritos e mitos são tidos, quase intocados, pela roda das gerações. Se o curso das coisas supostamente retorna periodicamente sobre si mesmo é porque os ciclos sociais e cósmicos ecoam o modo oral de comunicação do saber. (Lévy, 1993: 83-84)

A escrita inova ao estabelecer um intervalo de tempo obrigatório na comunicação entre o emissor e o receptor. É a partir daí que é estruturada uma forma de pensamento crítica e racional. O tempo da escrita é um tempo linear capaz de sistematizar o conhecimento. É ele quem vai permitir a reconstrução da História.

Uma abordagem mais interessante sobre os impactos da Modernidade na percepção do tempo é feita por E. P. Thompson (2002). Em sua análise, o autor inglês foge do determinismo tecnológico de Lévy e centra-se na transição para a sociedade industrial e na reestruturação rigorosa dos hábitos de trabalho. Thompson mostra como estes fenômenos vão influenciar na notação interna do tempo.

Nas sociedades pré-industriais, as formas de percepção do tempo vão se constituir a partir de diferentes situações de trabalho e de sua relação com os ritmos naturais. É o caso, por exemplo, dos portos ingleses, onde o trabalho era padronizado pelo ritmo das marés. Situação semelhante acontece nas comunidades agrícolas, onde o trabalho será organizado em função do tempo circadiano (trabalha-se do amanhecer até o crepúsculo) e das estações do ano (que vão determinar os tempos de plantio, de colheita, etc).

Segundo Thompson, mesmo nas cidades, os ciclos de trabalho vão seguir um padrão bastante irregular: durante a semana, períodos de ociosidade vão se alternar com períodos de trabalho intenso. De certa forma, são os próprios trabalhadores quem vão deter o controle de sua vida produtiva.

A revolução industrial traz consigo a necessidade de uma sincronização do trabalho e de um melhor aproveitamento do tempo do trabalhador. Assim, o debate capitalista acerca do tempo será marcado por suas preocupações:

1. As mudanças na percepção do tempo e o seu condicionamento tecnológico;

2. A medição do tempo como forma de exploração da mão-de-obra.

A imposição de uma nova disciplina de tempo nos trabalhadores, contudo, vai ultrapassar as questões econômicas e tecnológicas. Thompson cita alguns fatores que vão contribuir na internalização do tempo: a divisão e o supervisionamento do trabalho, o uso de sinos e relógios nas cidades e fábricas, a criação de incentivos em dinheiro, o uso da pregação religiosa e do ensino escolar. O autor ressalta, contudo, que este processo vai levar algumas gerações até ser, de fato, assimilado pelos trabalhadores:

A primeira geração de trabalhadores das fábricas aprendeu com seus mestres a importância do tempo; a segunda geração formou os seus comitês em prol de menos tempo de trabalho no movimento pelas jornadas de dez horas; a terceira geração fez greves pelas horas extras ou pelo pagamento de um percentual adicional (…) pelas horas trabalhadas fora do expediente. Eles tinham aceito as categorias de seus empregadores e aprendido a revidar os golpes dentro desses preceitos. Haviam aprendido muito bem a lição, a de que tempo é dinheiro. (p. 294)

A partir da crise capitalista de 1973 novas formas de organização e novas tecnologias produtivas levam a uma superação dos ritmos de tempo impostos nas sociedades industriais. Uma nova relação entre tempo e sociedade se impõe com o avento das sociedades em rede.

A percepção do tempo nas sociedades em rede

Segundo Harvey (1996: 257), a pós-modernidade traz consigo uma nova rodada de compressão espaço-tempo que terá um impacto ‘desorientado e disruptivo sobre as práticas político-econômicas, sobre o equilíbrio do poder de classe, bem como sobre a vida social e cultural’. Parte-se aqui da concepção de Castells (1999), segundo a qual, nas sociedades em rede, é o espaço quem determina a passagem do tempo. Assim, o ‘espaço de fluxos’ ‘dissolve o tempo, desordenando a seqüência dos eventos e tornando-os simultâneos, dessa forma, instalando a sociedade na efemeridade eterna’ (Castells, 1999: 490). Passado e futuro fundem-se, assim, num eterno presente. Essa noção coloca o espaço como suporte material dos processos de dominação na sociedade, que se realizam a partir da:

** Constituição de comunidades simbolicamente segregadas;

** Criação de um estilo de vida que projeta formas espaciais para unificar o ambiente simbólico das elites de todo o mundo.

Nas sociedades em Rede, a transformação do tempo pelas novas tecnologias é delineada pelas práticas sociais. A percepção linear do tempo (irreversível, imensurável e previsível) dá lugar para o tempo fragmentado, ‘gerenciado como recurso, não de maneira cronológica linear da produção em massa, mas como um fator diferencial em relação à temporalidade de outra empresa, processos ou produtos’ (Castells, 1999: 466). A idéia é corroborada por Harvey (1996) que relaciona a tendência de fragmentação e de efemeridade temporal à própria dinâmica do capitalismo.

Na comunicação, um dos reflexos deste processo é a criação de uma ‘cultura da virtualidade’. Dentro dessa perspectiva, Lévy (1993), atribui à essa nova dinâmica a criação de um pólo tecnológico-temporal, que o autor francês chama de ‘informático-mediático’. Em comum, tanto a ‘cultura da virtualidade’, como o ‘pólo informático-mediático’ estão baseados em elementos de simultaneidade e intemporalidade.

No caso da simultaneidade, a emergência de um mercado global funcionando em ‘tempo real’ produz na sociedade um efeito de ‘encolhimento’, de superação das barreiras do espaço pelo processo de transmissão da informação em alta velocidade (Moretzsohn 2002). Pierre Lévy aponta ainda a ‘aceleração dos ciclos da mercadoria, a ascensão das características estratégias e operacionais das relações sociais, uma forma de apagamento das memórias e das singularidades dos lugares’ (1993: 118).

Por outro, o ‘tempo intemporal’ se estabelece quando as características da sociedade em rede provocam confusão sistêmica na ordem seqüencial dos fenômenos que se sucedem em determinando contexto. Assim: ‘a mistura de tempos na mídia dentro de um mesmo canal de comunicação, à escolha do espectador/interagente, cria uma colagem intemporal em que não apenas se misturam gêneros, mas seus tempos são síncronos, em um horizonte aberto sem começo nem fim, nem seqüência’ (Castells, 1999: 486). E é dentro dessa nova lógica que a internet se configura.

Antes de prosseguir, é preciso deixar claro que diferentes ritmos temporais vão coexistir na sociedade. Assim, Lévy afirma que o tempo da oralidade persiste até os dias de hoje como forma essencial de adquirir o conhecimento cotidiano. Da mesma forma, é importante destacar que a percepção linear do tempo ainda predomina na maior parte das esferas sociais. ‘A rede informático-mediática é apenas um dos múltiplos circuitos de comunicação e interação que estimulam a coletividade, e que numerosas instituições, estruturas e características culturais possuem, ao contrário, ritmos de vida e de reação extremamente longos (Estado, língua, nação, religiões, escolas, etc)’ (Lévy, 1993: 118).

O tempo real e a identidade profissional do jornalista na Rede

Seria ingênuo pensar que a transmissão de informações em tempo real é uma característica exclusiva da Internet. [ É preciso deixar claro que a Internet não difunde somente informações em ‘tempo real’. Segundo o diretor do ‘Le Monde Interactif’, Bruno Patino (2001), além de ser a ‘mídia da instantaneidade’, a Internet é também a mídia da memória, ou seja, a mídia dos bancos de dados, organizada em camadas e estruturada pelo link e pelo hipertexto]. Outros meios como o telefone e o telex já transmitiam informações de forma sincrônica. Mídias como o Rádio e TV — embora com limitações técnicas — também produzem notícia em tempo real. Isso sem falar nas agências noticiosas que, desde a Primeira Guerra Mundial já buscavam a transmissão de informações em alta velocidade (Frédérix, 1959).

O ‘tempo real’ é, antes de tudo, fruto das exigências do mercado financeiro, onde a velocidade de transmissão de informações estratégicas torna-se um elemento decisivo para a tomada de decisões a partir da década de 70. Para fazer frente a essa demanda, algumas agências de notícia como Reuters (inglesa) e as norte-americanas Dow Jones e Bloomberg, perceberam a necessidade de expandirem seus públicos para além das mídias tradicionais, centrando-se também nas demandas do mercado financeiro. Em 1995, apenas 5,5% das informações vendidas pela Reuters foram endereçadas aos meios de comunicação (Brandão, 1998).

Por questões de conjuntura econômica a criação de serviços em ‘tempo real’ no Brasil só se inicia no final da década de 80, com a introdução, pela consultoria ‘Inovation’ do conceito de ‘turbina da informação’ (information engine). Segundo essa concepção, ‘os jornais seriam ‘informadutos’, espécies de canais de informação que irrigam o tecido social assim como os gaseodutos e os oleodutos abastecem a cidade de energia’ (Adghirni, 2001: 04). Seguindo esta idéia, vários jornais se organizaram para abastecer o mercado financeiro de informações estratégicas, cujo valor estaria principalmente na sua atualidade, medida em segundos. Pela credibilidade construída no decorrer dos anos, a agência Broadcast do grupo Estado de São Paulo, tornou-se referência entre as agências em tempo real. Segundo a jornalista Jaqueline Silva (2002), a Broadcast constitui-se um espaço privilegiado para interlocução dos interesses do mercado financeiro com o governo e a sociedade. Ela mostra ainda como a agência consegue, por meio dos outros veículos do grupo Estado, pautar boa parte da mídia tradicional.

A difusão da lógica do tempo real para o grande público tem início no Brasil com a popularização da Internet. Agências como a Broadcast, Globo, InvestNews (ligada à Gazeta Mercantil) e FolhaNews aproveitaram-se da Rede para popularizarem seus serviços. Por isso, a Internet funcionou, nos primeiros anos, como uma espécie de ‘chamariz’, onde as agências disponibilizam gratuitamente uma parcela das notas produzidas diariamente (Brigolini, 2002). Mas com o passar do tempo, as agências passaram a disponibilizar um conteúdo cada vez maior na Rede. No caso da FolhaNews, por exemplo, 80% das notas produzidas já se encontram disponíveis no portal do Universo On-line (Silva, 2002).

Assim, das agências, as informações em ‘tempo real’ passaram também a serem disponibilizadas nos portais e nas edições on-line da maior parte dos grandes jornais brasileiros. Segundo o vice-presidente do portal gratuito iG Matinas Suzuki, a atualização em ‘fluxo contínuo’ foi antes de tudo uma estratégia comercial utilizada pelos sites em busca de audiência: ‘[Quando entramos em operação], nós decidimos começar publicando uma notícia a cada cinco minutos, comprando conteúdo de agências ou de outros sites. ‘Nós somos os mais rápidos’. Este seria o nosso apelo comercial. Nós não tínhamos outra opção.’ (in Raphael, 2001: 02 )

A produção de notícias em ‘fluxo contínuo’ é uma das características mais marcantes do jornalismo on-line brasileiro. Na França, por exemplo, segundo o diretor do ‘Le Monde Interactif’, Bruno Patino (2001b), as notas em ‘tempo real’ (‘articles dépêches’) são minoria. A estratégia do grupo foi investir na disponibilização online dos ‘dossiers’ (arquivos do jornal), cujo acesso é pago. Já o Washington Post buscou diversificar os produtos do site alternando a publicação das notícias em ‘tempo real’ (‘late-breaking stories’) com reportagens especiais, galerias de fotos e fóruns de discussão com os repórteres do veículo.

Dessa forma, a produção jornalística em ‘fluxo contínuo’ vai se constituir num dos fatores determinantes para o estudo dos processos de produção noticiosa na Internet e na definição da identidade profissional do jornalista on-line.

O ‘tempo real’, as rotinas e o jornalista

O ‘tempo real’ gera três efeitos imediatos na forma como a notícia jornalística é produzida na Rede. O primeiro é o fim do ‘furo’ jornalístico. O ‘tempo real’ cria um mecanismo de auto-alimentação entre os veículos com a cópia e a reutilização do material do concorrente (Brigolini, 2002). Este aproveitamento contínuo de outras mídias, onde as linguagens de cada meio se confundem foi chamado por Ignacio Ramonet (2001) de ‘mimetismo midiático’.

Além disso, o jornalismo em tempo real não se preocupa em checar ou em aprofundar a informação. Tudo pode virar nota e ser transmitido o mais rápido possível. Segundo Erik Neveu (2002), para o público é quase impossível distinguir entre o que é notícia averiguada e o que é ‘notícia encantada’ (produzida pelas fontes) É o processo de transformação da velocidade em fetiche descrito por Moretzsohn (2002a: 02). Para ela, o jornalismo sempre foi marcado pela contradição entre tempo e precisão. ‘Agora, na era do ‘tempo real’, essa contradição tende a se agravar, e a se ‘resolver’ pela eliminação de um dos termos do problema – a necessidade de veicular informações corretas e contextualizadas.’

Por fim, a produção em ‘fluxo contínuo’ influencia as relações entre jornalistas e fontes. Em sua tese de doutorado, Elizabeth Brandão (1998) explica como o ‘tempo real’ se desvincula dos interesses do mercado financeiro e passa atingir também as altas esferas do poder político em Brasília. Segundo ela, em pouco tempo praticamente todos os funcionários do primeiro escalão do governo Fernando Henrique tinham acesso à agência Broadcast. Com isso, era possível acompanhar o ciclo (cada vez mais acelerado) de produção e circulação da notícia política em Brasília e responder, prontamente, a qualquer nota desfavorável que fosse publicada em ‘tempo real’.

Situação semelhante aconteceu durante a campanha presidencial em 2002. Segundo Spensy Pimentel, um dos assessores de imprensa de presidenciável Lula, [em entrevista ao autor]o uso da Internet pelos partidos, por meio dos sites oficias, marcou o início de uma era em que os serviços de contra-resposta dos candidatos passaram também a funcionar em ‘fluxo contínuo’.

É preciso destacar que nem sempre as fontes de informação estão ‘sintonizadas’ aos ritmos do ‘tempo real’. No CorreioWeb [site ligado ao jornal Correio Braziliense, (www.correioweb.com.br)], por exemplo, existem vários conflitos entre os jornalistas do produto em ‘tempo real’ ‘Últimas’, e suas fontes. Isso acontece, por exemplo, nos contatos com a assessoria de imprensa da Polícia Militar do Distrito Federal. É o que conta, o coordenador do ‘Últimas’, Giulliano Fernandes [em entrevista ao autor].

Eles não sabem como é trabalhar em tempo real. A gente precisa da notícia naquela hora, a gente quer saber se teve um acidente, quantos carros bateram, para ir colocando uma notinha atrás de outra até ter uma notícia completa. E eles acham que precisam ter toda a informação para passar para a gente.

A produção de notícias em ‘tempo real’, muda a forma como a informação é vista na sociedade. ‘O que dá valor a uma informação é o número de pessoas potencialmente e interessadas nela, porém esse número nada tem a ver com a verdade. Posso dizer uma grande mentira que interesse a muita gente e vendê-la muito caro’ (Ramonet 1999: 03). Assim, a notícia adquire cada vez mais o caráter de mercadoria. E isso influencia a identidade profissional do jornalista, na medida em que acelera a desconstrução da natureza humanista e transformadora do jornalismo.

Por isso, de ‘journaliste’ (‘analista do dia’ em francês’) o profissional da imprensa passa a instantaneísta (Ramonet, 1999), sem o tempo necessário para a reflexão, para a análise. Do mítico ‘D. Quixote de La Prensa’, ‘profissional portador de armas e do ideário necessário para lutar contra os moinhos da desinformação’ (Brandão, 1998: 168), ele se tornaria um mero transmissor de informações para o mercado financeiro.

A conclusão e uma visão mais otimista sobre o jornalismo na sociedade atual

Toda comunicação é temporariamente sensitiva. A importância dos estudos do tempo na comunicação, contudo, vai além dos impactos da temporalidade na recepção dos processos midiáticos. Ao trabalhar com diferentes ritmos de tempo, o próprio jornalista se modifica, alterando sua forma de ver o mundo e a forma como a percepção da realidade vai ser transmitida ao público.

É inegável o impacto do ‘tempo real’ na natureza da notícia e na identidade profissional do jornalista. No entanto, é preciso destacar que a identidade profissional do jornalista vai se configurar pela sobreposição de fases e processos distintos, onde irão conviver elementos do discurso humanista e do discurso tecnológico-metodológico (Ribeiro, 1994). É interessante, por exemplo, associar a permanência de ritmos temporais de trabalho irregulares, principalmente nas profissões autônomas (Thompson, 2002), com a dupla natureza da profissão jornalística. Ou seja, ao mesmo tempo, que a sociedade convive com diferentes ritmos de tempo, o jornalista nas suas diferentes identidades (artista/operário) é capaz de conviver e construir ritmos temporais distintos.

Por isso, o advento do ‘tempo real’ não implica no fim da grande reportagem ou da cobertura de profundidade. A profusão de informações, proveniente de todas as esferas da sociedade e potencializada pela própria internet, ressalta a necessidade do jornalista-mediador, observador privilegiado dos processos sociais.

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Mestrando na Universidade de Brasília