Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Observação a partir de um panóptico.

Minha idéia não é dizer alguma coisa nova, mas refletir sobre algumas idéias sobre as quais todos nós aqui estamos de acordo.

Foi assim que Walter Lippmann começou um discurso sobre imprensa livre, entre os anos 1960-1970, diante do Instituto Internacional de Imprensa, em Londres.

Gostaria de dizer o mesmo sobre a questão da crítica à imprensa em dimensão nacional. ‘Jornalismo deve ser alguma coisa mais do que cantar no banheiro ou proferir solilóquios, embora manificentes, no deserto.’ É mais do que subir em uma coluna e, como os anacoretas, meditar sobre o destino do mundo e da humanidade.

Jornalistas escrevem para ser lidos, ouvidos, assistidos. Jornalismo não é uma atividade solitária sem audiência. Jornalismo não é um monólogo dedicado a uma audiência escrava que finge estar escutando.

Uma vez jornalistas e, portanto, seres humanos, todos nós estamos sujeitos a erros e preconceitos.

‘Uma imprensa livre existe somente onde leitores de jornais têm acesso a outros jornais os quais são concorrentes e rivais de tal modo que o comentário editorial e a notícia possam regular e prontamente ser comparados, verificados e validados.’

Como o público pode exigir, perguntam Bill Kovach e Tom Rosenstiel, em Elementos do jornalismo, ‘um jornalismo ligado aos princípios que um dia criaram a imprensa livre’?

Para saber que princípios são esses, temos que lembrar a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana. A Carta dos Direitos Humanos completou 60 anos. No artigo XIX está escrito:

‘Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras’.

A imagem de um prelo sendo carregado pela multidão, no dia da queda da Bastilha, mostra o valor da imprensa na época. No paradigma liberal em que a idéia de uma imprensa livre foi concebida, ela foi imaginada sob a ótica de um contrapoder: mecanismo essencial de vigilância do poder político, garantia de transparência pública, pilar da democracia. Sob essa ótica e associada a outros direitos fundamentais – à expressão, à crítica e à criação – recebeu status privilegiado, do qual continua a desfrutar até hoje.

Hoje, os meios de comunicação de massa mantêm e exigem benefícios e privilégios impensáveis em outros ramos da economia. Por exemplo: a indústria de alimentos atende aos padrões do Inmetro e está sujeita a rígidas normas de qualidade. A poderosa indústria farmacêutica pode ter uma patente quebrada pelo Ministério da Saúde. Mas não queira o governo cassar a concessão, que é pública, de um canal de TV, embora se ache no direito de nomear algumas rádios de ‘piratas’. Em nome da indústria da radiodifusão e em defesa de privilégios de seus proprietários, dificulta às rádios comunitárias o acesso ao espectro sonoro.

Missão da imprensa

Nos cursos de comunicação, aprendemos que as três missões da imprensa são:

** Formar – seria a função educativa dos meios, conforme viu Luiz Amaral: ‘A educação dos homens não termina quando eles deixam a escola: prossegue na adolescência e na vida adulta pela leitura, principalmente de jornais e revistas’.

** Informar – ‘fornecer aos cidadãos informações de que necessitam para ser livres e se auto-governar’ (Kovach/Rosenstiel).

** Entreter – característica da civilização pós-industrial, a preocupação com o lazer, ‘para evitar desequilíbrios e neuroses’, a busca da felicidade.

Podemos perguntar:

** será que toda a humanidade – ou pelo menos todos os brasileiros – estão desfrutando do direito a se expressar e opinar?

** será que os brasileiros têm a liberdade de receber e transmitir idéias e informações sem fronteiras? Todos os brasileiros têm igual acesso às informações?

** será que hoje os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade estão sendo cumpridos?

** será que a missão da imprensa, de formar, informar e entreter é exercitada no nosso dia a dia?

Conjunto dos meios

A imprensa deve nos auxiliar a definir nossa cultura, a criar uma linguagem e conhecimentos comuns baseados na realidade. O jornalismo deve ajudar a identificar os objetivos de uma comunidade, interesses e principais carências, heróis e anti-heróis.

‘Talvez, no final das contas, o jornalismo simplesmente signifique ampliar e levar adiante as conversas das pessoas’ (Carey). Ou seja, ir além das baladas dos saltimbancos, das public houses – os pubs londrinos, onde se trocavam informações e de onde saíram os primeiros exemplares da imprensa periódica. Significa sair das barbearias e das calçadas e deixar ao conhecimento público (como a Acta Diurna) o que interessa ao público.

A imprensa, a mídia, os meios estão fazendo isto? Se estivessem cumprindo seu papel nós não precisaríamos de observatórios para vigiá-los. Os observatórios são torres com visão panorâmica da situação – pan-opticons que permitem tudo ver.

Mas antes de existirem os observatórios de mídia, Lippmann já recomendava ‘que a imprensa deve ser capaz de reportar, explicar, interpretar e criticar todas as atividades da espécie humana’.

Então, tocamos nas funções dos observatórios de imprensa. Na época de Lippmann, eles não existiam mas, por um sistema de freios e balanços, o sistema deveria funcionar no conjunto de todos os meios de comunicação de massa, regulando-se a si mesmo. As funções dos observatórios, hoje, seriam:

** Fiscalizar os meios e os profissionais;

** Alfabetizar, em mídia, o cidadão comum.

Os norte-americanos têm um nome para a primeira função: media watching. Ao segundo poderíamos chamar media culturing (aculturamento em mídia), com base na expressão media centric culture (cultura centrada na mídia), uma das identidades de um país como o Brasil.

Escolha da moldura

Não podemos negar que o que vemos, atualmente, é uma combinação mórbida:

1. as liberdades fundamentais do neoliberalismo convivem com a lógica da competição de mercado e a busca do lucro a qualquer custo;

2. a liberdade dos MCM não serve para promover uma opinião pública racional, fomentar a pluralidade de visões acerca da realidade, nem dar voz aos menos favorecidos. Tampouco se aproxima dos problemas ou das conversas das pessoas, como queria James Carey.

Todos nós concordamos em que a democracia é o pressuposto de um regime de liberdades, onde viceja uma sociedade aberta e diversa. O mundo mudou. Os MCM já não podem ser pensados somente na ótica liberal, com ‘uma liberdade sem restrições, uma influência sem cuidados, um poder sem responsabilidade’ (Aznar).

A atuação mais responsável dos meios requer um controle que extrapola as atribuições dos governos: são os mecanismos de auto-regulação que hoje devem se incumbir de fiscalizar a imprensa: os códigos de ética, os conselhos profissionais, as cartas de princípios e os observatórios.

‘É necessário que todos nós tomemos consciência de nosso papel como consumidores e cidadãos, na hora de exigir meios mais responsáveis. Em relação à comunicação, o público costuma adotar um papel muito pouco ativo, em parte devido à idéia de gratuidade’, diz Aznar. Por isso é preciso abrir-lhe os olhos, formá-lo, educá-lo, instruí-lo a respeito de todo o panorama de mídia que faz parte de nossa vida.

O Mídia&Política adotou critérios para criticar a mídia. E os critérios dizem respeito às funções que a mídia não vem cumprindo para com o cidadão.

Alertamos, por exemplo, que, ao nos debruçarmos sobre um tema, devemos verificar a presença de preconceitos, estereótipos ou pré-julgamentos. Da mesma maneira, precisamos verificar se estão presentes as causas, os antecedentes e as conseqüências sociais do evento narrado.

Estamos falando da missão de formar e de informar sobre aquilo que Lippmann destacava como uma das tarefas da imprensa livre: a de transmitir e explicar ‘o mundo invisível’, já que ‘uma grande sociedade não pode ser governada, seus habitantes não podem conduzir suas vidas, a menos que eles tenham acesso aos serviços de informação de debate e crítica, que são proporcionados por uma imprensa livre’.

Assim como Lippmann afirmava, há 40 anos, que ‘sem crítica e sem informação clara e fidedigna o governo não pode governar’, também os cidadãos devem ser informados sobre as políticas públicas e isso precisa estar expresso nas matérias.

No exercício da crítica de mídia verificamos qual o enquadramento dado ao fato e por que esta moldura foi escolhida em detrimento de outra ou de outras versões. E queremos saber se as fontes consultadas pelo jornalista são adequadas à transmissão de informações credíveis.

Responsabilidade social

Continuando com Lippmann, ele declarava que os dois principais conflitos do jornalista são:

** buscar a verdade, praticar um jornalismo responsável, e

** sobreviver com o fruto do seu trabalho.

Esses conflitos são insolúveis para o jornalista. Além deles, Kovach e Rosenstiel vêem novos desafios para o jornalista dentro de um sistema baseado no mercado, um sistema divorciado da idéia de responsabilidade social. Eles apontam que as três forças-chave na virada do jornalismo contemporâneo são:

1. As tecnologias da informação e da comunicação (TICS) – a internet dissociou o jornalismo da geografia, ameaça o valor-notícia proximidade, corta os laços afetivos das pessoas com o meio.

2. A globalização – a noção de cidadania e comunidade fica obsoleta diante das corporações multiglobais.

3. A conglomeração – empresas com vários tipos de comunicação – cinema, TV, jornais, revistas, internet, entretenimento – contribuem para a informação massificada e repetida, causando mediocrização dos conteúdos.

Se as TICS dão novo vigor à participação dos leitores no processo de comunicação, elas também aceleram as distorções e a desorientação das pessoas.

Se a globalização traz a ilusão da aldeia global, o jornalismo sofre a influência das fontes alternativas, como os blogs e a mídia gerada pelas assessorias de imprensa; nas comunidades virtuais pouco se cultiva a noção de cidadania, preferindo incentivar-se o individualismo.

Se os conglomerados parecem convergir e ressaltar a tarefa da comunicação no mundo contemporâneo, eles também são responsáveis pela mcdonaldização do jornalismo, pelo jornalismo fast food. Recentemente, os jornais deram a notícia da invenção de um novo tipo de computador pela Microsoft, uma tela plana com comandos táteis. Seria, no dizer dos jornais, ‘o sonho de Bill Gates’.

Acontece que esse invento é baseado na idéia de um precursor da informática, o norte-americano Vannevar Bush, que em 1945 criou um aparelho chamado Memex (Memory Extension).

Mas os jornalistas engoliram docilmente a notícia pasteurizada distribuída pelas agências, o hambúrguer difundido pela assessoria de imprensa da Microsoft. E, com seu desconhecimento, ajudam a fortalecer o conglomerado.

Como vimos, a noção de liberdade de imprensa tem origem nos ideais da Revolução Francesa, que inspiraram a Carta Universal de Direitos Humanos e as constituições de muitos países, entre eles os Estados Unidos e o Brasil.

A imprensa não apenas livre, mas consciente de sua responsabilidade social, pode contar a verdade e zelar para que o fluxo de informação realmente contribua para a cidadania.

Portanto, temos que zelar para que o panóptico dos observatórios de imprensa realmente ilumine as mentes e não seja uma torre alta demais e intangível, fora do alcance das pessoas comuns.

Referências bibliográficas

LIPPMANN, W. ‘Uma imprensa livre’. In: AMARAL, L. Técnica de jornal e periódico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: INL, 1978.

KOVACH, B.; ROSENSTIEL, T. Os elementos do jornalismo. São Paulo: Geração Editorial, 2004.

LIMA, V.A. Mídia. Teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.

AZNAR, H. Ética de la comunicación y nuevos retos sociales. Barcelona: Paidós Ibérica, 2005.

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Jornalista, editora-executiva do Mídia&Política, doutoranda e professora da Faculdade de Comunicação da UnB