O Cesgranrio tem nas mãos preciosa fotografia do pensamento da juventude brasileira a respeito dos problemas que estão no centro das recentes polêmicas sobre os rumos da mídia brasileira: um milhão e meio de provas de redação do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, realizadas no domingo, 29 de agosto, em todo o país. As provas serão corrigidas nos próximos meses (o gabarito foi para a internet no mesmo dia e cada estudante poderá conhecer, a partir de 16 de novembro, o resultado obtido) e, caso o Cesgranrio, que organizou o exame e é responsável pela correção das provas, consiga agrupar as redações em blocos coerentes de respostas à pergunta formulada – ‘Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de comunicação?’ –, poderá fornecer à sociedade um retrato do que vai pela cabeça de uma geração formada pela televisão e cada vez mais distante da leitura de jornais. O Observatório da Imprensa é uma das fontes de reflexão mencionadas na prova.
A página com os elementos para a redação oferecia aos estudantes uma charge de Carlos Galhardo, datada de 2001– uma família desmaiada na sala de estar diante de um aparelho de televisão transformado em lata de lixo fétida –, a leitura de três textos e de dois incisos do artigo 5° da Constituição. Pela data da pesquisa de páginas na internet (30 de maio), a questão teria sido elaborada bem antes do envio ao Congresso, pelo governo Lula, na primeira semana de agosto, do projeto de criação de um Conselho Federal de Jornalismo com atribuições de ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’ o trabalho de imprensa no país.
O primeiro texto citado na prova do Enem, extraído do livro Sobre ética e imprensa, publicado em 2000 pelo jornalista Eugênio Bucci, atual presidente da Radiobrás, é uma crítica a programas sensacionalistas na televisão (‘As câmeras invadem barracos e cortiços, e gravam sem pedir licença a estupefação de famílias de baixíssima renda que não sabem direito o que se passa: um parente é suspeito de estupro, ou o vizinho acaba de ser preso por tráfico, ou o primo morreu no massacre do fim de semana no bar da esquina. A polícia chega atirando; a mídia chega filmando’).
O segundo texto, cuja fonte é o site www.eticanatv.org.br, é o seguinte: ‘Quem fiscaliza [a imprensa]? Trata-se de tema complexo porque remete para a questão da responsabilidade não só das empresas de comunicação como também dos jornalistas. Alguns países, como a Suécia e a Grã-Bretanha, vêm há anos tentando resolver o problema da responsabilidade do jornalismo por meio de mecanismos que incentivem a auto-regulação da mídia‘.
A terceira citação é um trecho dos Objetivos deste Observatório, que foram colocados na rede com a primeira edição, em abril de 1996: ‘Os meios de comunicação de massa são majoritariamente produzidos por empresas privadas cujas decisões atendem legitimamente aos desígnios de seus acionistas ou representantes. Mas o produto jornalístico é, inquestionavelmente, um serviço público, com garantias e privilégios específicos previstos em vários artigos da Carta Magna, o que pressupõe imperiosas contrapartidas em deveres e responsabilidades sociais‘.
Os dois incisos do artigo 5° foram citados várias vezes em artigos do OI:
‘IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’.
Segundo noticiário da Agência Estado, ‘o tema da redação agradou aos 1,5 milhão de estudantes que participaram’ do exame. Caso entidades interessadas tenham permissão para estudá-las, o universo dessas redações poderá ser um elemento notável de mapeamento das percepções e concepções dos jovens que vão tentar entrar na universidade. Não se acharão respostas unívocas. Esse conjunto de redações será capaz, também, de mostrar quanto trabalho ainda há pela frente antes de se chegar a propostas democráticas capazes de garantir efetivamente os dois preceitos constitucionais transcritos acima.
MTV usa português estropiado para incentivar leitura
No mesmo domingo da prova do Enem, o caderno Telejornal, do Estadão, publicou reportagem sobre oportuna campanha da MTV para incentivar a leitura. Um anúncio silencioso, em fundo preto, recomenda ao telespectador que desligue a TV e vá ler um livro.
Por delicadeza ou desatenção, a reportagem do Estadão não aponta, na reprodução da imagem do anúncio, grotesco erro de português (‘desliga a televisão e vá ler um livro’), embora ele mesmo, Estadão, tenha feito a correção no título da reportagem: ‘‘Desligue a TV e vá ler um livro’, diz a MTV’.
Vê-se que a campanha é mais do que oportuna. O padrão de redação já foi melhor nas agências de publicidade. Tem toda razão o criador da idéia, André Mantovani, diretor-geral da MTV Brasil: o jovem hoje ‘lê muito pouco e escreve muito mal’. Tomara que Mantovani mande corrigir logo o texto do anúncio.
Maus conselhos
A economista Hazel Henderson comentou em almoço na Câmara Americana de Comércio de São Paulo, no dia 27: os economistas que receitam remédios errados e levam países à ruína não sofrem qualquer sanção. Não são responsabilizados por suas lambanças.
No Brasil também acontece, e não é por falta de corregedoria. Existe uma entidade com nome de remédio para tosse, Cofecon, Conselho Federal de Economia, criada por lei em 1951 e cujo objetivo final é ‘garantir à sociedade serviços de qualidade na área de economia, de tal modo que a população esteja protegida de eventuais prejuízos que possam ser provocados por profissionais despreparados’.
A entidade ainda imagina, ha-ha-ha, o seguinte: ‘Dessa maneira, o Conselho Federal de Economia contribui para o desenvolvimento econômico do país’.
Os economistas, como se sabe, não conseguiriam ter grande influência na condução das políticas públicas se não dispusessem da mídia para divulgar suas opiniões.
Vigiar e punir
Ao perfilhar o projeto corporativista de criação da corregedoria nacional de jornalismo, o governo federal revelou uma concepção bisonha de vida social e democracia (alguns dirão perigosa, mas esses em geral estão juntando alhos com bugalhos num tour de force oposicionista).
Se vigiar e punir resolvesse as questões essenciais do convívio em sociedade, a humanidade já teria conseguido evitar conflitos armados, extermínios (de povos, grupos sociais, até de idiomas), fome, subnutrição, analfabetismo, violência contra crianças e mulheres, preconceitos e discriminações.
Pode ter faltado vigilância, porque o chip ainda não existia ou ainda não era ubíquo, como será em breve, mas punição, amparada ou não em leis, é que não faltou.
Joseph de Maistre, talentoso corifeu do reacionarismo contra-iluminista, considerava o carrasco ‘a pedra angular do arco social sobre o qual se apoiava toda a sociedade européia’ (Isaiah Berlin, ‘Joseph de Maistre e as Origens do Fascismo’, em Limites da Utopia, de onde se extrai a citação a seguir):
‘(….) E, contudo, toda grandeza, todo poder, toda subordinação repousa no carrasco: ele é o horror e o vínculo da associação humana. Excluam do mundo esse misterioso agente: em um segundo, a ordem dará lugar ao caos, os tronos cairão, a sociedade desaparecerá’.
Toda essa filosofia do medo só jogou água no moinho da violência, até desembocar nos episódios que marcaram o sangrento século XX e o sangrento começo do século XXI.
Que tal pensar em vertente mais criativa? A atividade deste OI não é mais sábia do que a de qualquer corregedoria?