A decisão do STF que tornou desnecessário o diploma universitário para exercer a profissão de jornalista gerou diversas reportagens, artigos e editoriais em todos os veículos de comunicação e também neste Observatório. Porém, o que mais me intrigou neste debate foram os argumentos e as justificativas utilizadas pelos defensores da decisão que confundiram conceitos e termos e, assim, realizaram uma interpretação equivocada da sociedade e, principalmente, das novas formas de comunicação.
Reinaldo Azevedo, em artigo publicado em seu blog, justifica a decisão utilizando como argumento central de seu texto o ‘talento’ que o jornalista deve ter e que não se aprende na universidade. Talento, porém, não é uma premissa válida apenas para a profissão de jornalista, mas sim, para toda e qualquer profissão. Afinal, independente de toda a formação que obteve, caso um médico não tenha ‘talento’ para exercer a profissão, certamente ele não irá exercer corretamente o seu ofício. Talento é uma palavra que carrega uma imensa carga subjetiva, que diz que o seu portador tem uma predisposição nata para determinada função. Assim, não podemos usar ‘talento’ como um argumento científico que justifique ou invalide determinada posição, pois por conta de sua subjetividade ele não é um determinante.
Atuar no ramo e ser jornalista
Outra confusão ocorrida é com a famosa muleta de nome ‘liberdade de expressão’. Liberdade de expressão é um direito de todo e qualquer cidadão. Através dele, garante-se que o povo possa expressar sua opinião sobre qualquer acontecimento. Esta opinião não necessita em hipótese alguma ser fundamentada em qualquer princípio específico e até não necessita de nenhuma coerência. É puro e simplesmente o direito do povo de, a grosso modo, compartilhar aquilo que pensa. Para isso, ele não precisa de diploma de jornalista e também a ausência do diploma não interfere em absolutamente nada na ‘liberdade de expressão’. Ela é aquém do jornalismo e este apenas se fundamenta nela para `reivindicar´ o seu papel como ator social, ou seja, uma coisa é totalmente diferente da outra. Assim, o debate do diploma do jornalista não é em nenhum momento um debate sobre a liberdade de expressão.
Estes argumentos dos defensores da proposta não são coerentes como também não é coerente a afirmação, daqueles que são contra a decisão, de que com a anulação da necessidade de diploma os veículos de comunicação, devido ao teórico aumento da procura, irão reduzir o salário dos pretensos jornalistas (que ainda serão representados pelo seu sindicato). Hoje, os jornalistas já enfrentam um mercado imensamente saturado pelo grande contingente de universitários que se sujeitam a, mesmo depois de formados, ganhar salários de estagiários e até mesmo menores. Na outra ponta, também há, como sempre houve, diversos profissionais que atuam na área jornalística sem formação superior equivalente e recebem salários muito superiores ao piso da categoria. E aqui reside uma outra grande confusão, pois há uma diferença entre atuar no ramo jornalístico e ser jornalista.
A ‘proliferação do jornalismo’
A imensa maioria dos profissionais que atuam no ramo jornalístico sem diploma equivalente são comentaristas, articulistas e críticos – em outras palavras, são pagos para emitir em seus textos suas opiniões, seus juízos de valor. Uma tarefa completamente diferente da tarefa do jornalista que, por princípio ético e social, deve evitar ao máximo emitir opinião em seus textos. Cabe ao jornalista articular as suas frases com a finalidade de informar o cidadão sobre determinado fato e os diferentes pontos que envolvem este acontecimento. Para isso, dele se exige uma formação técnica e humanística que lhe conceda os princípios básicos para executar aquela ação. No outro extremo estão os profissionais do início deste parágrafo, que não necessariamente precisam ter uma formação técnica em jornalismo, mas, ao contrário, precisam dominar conhecimentos em áreas especificas como cinema, sociedade, geopolítica etc., ou apenas serem verborrágicos e, em alguns casos, ter uma boa aparência e dicção.
Um outro argumento equivocado é o que qualifica o ‘jornalismo pela internet’. Blogs, Twitters, mensagens pelo Orkut, imagens do YouTube e tantos outros textos e vídeos intitulados jornalísticos que circulam pela rede, postados por usuários, são o pleno exercício da democracia. Podemos acompanhar, pelos recentes acontecimentos no Irã, como estas novas possibilidades da comunicação são importantes ao revelar conteúdos diversificados e, de certa forma, mais próximos do ‘real’, porém isto não qualifica estes produtos como produtos jornalísticos, pois eles emitem, ao seu modo, uma opinião sem um compromisso com a exibição do outro lado. O que ocorre na internet não é uma ‘proliferação do jornalismo’, como diz a Folha em seu editorial de 19/06 (a não ser que este seja o modelo de jornalismo da Folha), mas uma proliferação da liberdade de expressão e da comunicação em escala global; uma proliferação da diversidade de opiniões em seus diferentes formatos. Jornalismo é outro assunto e envolve outros fatores que não dizem respeito a apenas postar um vídeo sobre determinado acontecimento em Teerã, por mais importante que seja este acontecimento.
O atual dilema do STF
Também é equivocada a afirmação de que a contribuição de profissionais de diversas áreas irá ‘aperfeiçoar o jornalismo’, pois este não é um ganho que seja mensurável, além do que o jornalista, em seu trabalho cotidiano, já tem contato com a colaboração de diversos profissionais de todas as áreas do conhecimento. Ele não vive isolado na redação apenas mantendo contato com aqueles que atuam próximos a si, tanto pelo exercício da profissão em si como, justamente, pela pluralidade que a internet propicia este contato com o outro ocorre a todo o momento em uma incidência maior do que em qualquer outra profissão.
O jornalista não é apenas um ‘carteiro’ de informações e é certo que o diploma não garante a formação de um bom profissional, mas também a falta dele não garante nem um pouco. Os cursos superiores de Jornalismo não ensinam a escrever, mas não é certo que saber escrever e elaborar um bom texto faça de alguém um jornalista. Ou seja, a questão é muito mais ampla do que fizeram parecer as declarações dos membros do Tribunal.
Ao contrário do que dizem alguns partidários contrários à decisão do STF, não creio que esta seja um ‘vitória do patronato’, pois assim como ocorre com a publicidade, as agências, em sua maioria, não contratam o ‘irmão do filho do meu amigo que sabe `mexê-in-CorioDraw, ou Ilustrato´’. Elas exigem um profissional que tenha conhecimentos específicos na área e que possa contribuir com o hall da empresa, e isso não descarta a existência de profissionais que não sejam formados especificamente nas áreas próximas a publicidade e design. O que ocorreu com o jornalismo, foi na verdade um ataque aos jornalistas pelo reducionismo do debate e pela falta de qualidade na argumentação que tornou desnecessário o diploma. Esta argumentação desconectada da realidade pode ser comprovada no atual dilema que vive o Supremo Tribunal Federal, que não sabe ainda se deve exigir o diploma dos jornalistas que serão contratados pelo concurso público a ser aberto pela secretaria do órgão.
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Documentarista e diretor de Comunicação, Jundiaí, SP