Um ex-cunhado meu foi economiário durante toda sua trajetória profissional. Entrou office-boy e acabou gerente.
Certa vez me contou que, quando sua agência era assaltada, a maior preocupação dos funcionários era apressarem os bandidos, para que dessem o fora com a grana antes da chegada da polícia: sabiam que os brucutus da lei mandariam bala para todo lado, sem consideração pela vida deles e dos clientes.
Também fiquei conhecendo o massacre do Carandiru em detalhes porque trabalhava na omprensa do Palácio dos Bandeirantes quando o episódio ocorreu.
A soldadesca atirou porque estava apavorada com a fumaça, gritaria e confusão. Então, por despreparo, descarregou o medo no gatilho. Oficial que se colocasse entre os matadores fardados e seus alvos acabaria recebendo bala também. É o que já aconteceu um sem-número de vezes nas guerras. Na do Vietnã, por exemplo, havia mais oficiais estadunidenses mortos pelo fogo amigo do que pelos disparos do inimigo…
Ética levada de roldão
O coronel Ubiratan, coitado, nada pôde nem poderia fazer para controlar a tropa. Ele não era nenhum celerado fascistóide, mas sim, um comandante de perfil burocrático, contando os dias que faltavam para a aposentadoria e torcendo para que não surgisse nenhum contratempo nesse meio-tempo. Tirou o azar grande.
O grande culpado, claro, foi o governador Fleury, que ordenou uma invasão desnecessária para exibir seu muque e depois convenceu o secretário da Segurança Pública a segurar o rojão.
Enfim, para quem sabe das coisas, nada há a estranhar que a ação policial em Santo André tenha sido mais uma comédia de erros com final trágico. A polícia tem pelo menos uma atenuante: incompetência não chega a ser crime.
Já os abutres da imprensa não têm nenhuma.
Passaram o tempo todo capitalizando um drama em benefício próprio, para saciar a bisbilhotice doentia de seu público. Comprovaram que a ética do jornalismo foi levada de roldão pela competição e ganância. Está tão morta quanto a menina Eloá.
A vida retoca a arte
Não se preocupando em momento algum com a vida dos patéticos personagens alçados à atração momentânea da arena de gladiadores do capitalismo putrefato, os coleguinhas na ativa fizeram-me até lembrar um dos grandes clássicos de Hollywood: A Montanha dos Sete Abutres, de Billy Wilder (1951).
O filme mostra um mineiro preso em velhas ruínas indígenas e um repórter ambicioso (Kirk Douglas) que o encontra. Pode resgatá-lo de imediato, mas o convence a ficar lá, enquanto extrai todos os dividendos jornalísticos dessa situação. Manipula tudo e todos: a esposa do mineiro, que faz melodrama, posando de semiviúva; o xerife, que lhe concede o direito de controlar como bem entender o acesso ao local; o empreiteiro responsável pela obra de salvamento, para que vá pelo caminho mais longo, esticando ao máximo a duração do espetáculo.
Na véspera do grand finale, entretanto, o mineiro morre de pneumonia. E o abutre responsável pelo desfecho trágico acaba também destruído, pelos remorsos.
O episódio de Santo André também tendia a ser resolvido muito antes, sem tragédia, caso a imprensa não montasse seu circo. A partir do momento em que virou atração de mídia, o tal Lindemberg passou a representar um papel diferente; afinal, não é qualquer zé mané que tem essa raríssima chance de desfrutar não uns minutinhos ocasionais de fama, mas nada menos do que 100 horas!
Deu no que deu. Agora a ex-namorada está enterrada no caixão e ele passará o melhor de sua vida enterrado numa prisão, se os outros detentos não o matarem antes.
O pior é que se deu uma multiplicação dos abutres. No filme havia apenas um; o título brasileiro se refere ao nome indígena da montanha em que o mineiro ficou meio soterrado. Em Santo André eram bem mais do que sete. E nenhum deles demonstrou o mínimo remorso, ao contrário do personagem cinematográfico.
A vida não apenas imitou a arte, mas também a retocou. Para pior.
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Jornalista e escritor, São Paulo, SP