A regulamentação profissional dos jornalistas vem sendo questionada por setores que deveriam ser os primeiros a defendê-la, em particular magistrados, promotores, advogados e médicos, por estarem comprometidos com uma sociedade mais justa, menos desigual e transparente. Médicos e advogados compõem duas categorias profissionais bem organizadas, sob o comando de duas entidades pelas quais tenho o maior respeito: o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ambas com a preocupação de defender intransigentemente sua atividade profissional.
Sob o slogan de que é preciso garantir a liberdade de imprensa, alguns médicos e advogados – felizmente uma minoria – confundem os conceitos de direito à comunicação, direito à informação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Não compreendem que à medida que a sociedade se torna cada vez mais complexa, faz-se ainda mais necessário o jornalismo como atividade profissional. O processo de produção, circulação e consumo da informação exige um profissional qualificado e com formação de nível superior em Jornalismo.
A elaboração da notícia requer um especialista, com formação teórica e prática, que tenha condições de estabelecer mediações entre a realidade global e o público, ou audiência interativa, que se serve de jornais, rádios, tevê e da internet. O cotidiano social retratado, ou construído pela imprensa – conforme a corrente teórica – extrapola o universo da família, dos vizinhos, do trabalho. Graças ao jornalismo sabemos um pouco do que se passa em todas as partes.
De forma alguma o jornalismo e as políticas de comunicação, que estabelecem um controle social sobre as empresas jornalísticas e sobre a informação, representam um ataque à liberdade de imprensa. Trabalhadores, sindicatos, movimentos sociais, ONGs, advogados, médicos, dentistas, políticos têm o direito de se manifestar das mais diversas formas em jornais, rádios e tevês e na internet. Não é só um direito constitucional, mas um princípio ético fundamental nas sociedades democráticas.
No entanto, não devemos confundir isso com jornalismo, com produção de notícias, essa sim uma atividade dos jornalistas. O campo do jornalismo, e aí reside também a grande confusão que se faz sobre a atividade, não se limita à prática profissional. O jornalismo é um campo científico, um campo de ensino e um campo de práticas profissionais. Com relação ao primeiro, entendo o jornalismo como um campo com objeto, metodologias e teorias próprios, o que não exclui em nenhum momento a atividade multidisciplinar com outras áreas do conhecimento. Em um segundo momento, o jornalismo envolve toda uma atividade de ensino que contribui decisivamente para a formação de novos profissionais. Por fim, é um lugar de práticas profissionais em que se exerce uma série de funções, todas ligadas à produção da notícia.
Diferenças vitais
Essa breve reflexão foi provocada por duas decisões recentes da Justiça brasileira que nos permitem concluir que nem o Judiciário não tem muito clara a diferença entre o direito à comunicação, o direito à informação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu há pouco que os jornalistas devem ter diploma universitário. A decisão ocorreu no julgamento de um mandado de segurança impetrado pelo médico José Eduardo Marques contra portaria do Ministério do Trabalho que declarou inválidos os registros precários. O médico trabalhava no Programa de TV Prevê Saúde, da TV Bauru, de São Paulo, e tinha um registro precário de jornalista concedido por ação civil pública. Marques alegava que a Constituição Federal autoriza o livre exercício de qualquer trabalho ou profissão desde que as exigências legais sejam atendidas.
A decisão do STJ é muito importante para dar, pelo menos momentaneamente, um basta à tentativa dos donos do poder de desregulamentar completamente a atividade jornalística e controlar definitivamente o processo de produção da notícia. O voto do ministro Paulo Delgado, do Superior Tribunal de Justiça, é esclarecedor. Delgado foi categórico ao manifestar que a Constituição também prevê o cargo de colaborador, profissional remunerado e sem vínculo empregatício que produz trabalhos técnicos, científicos ou culturais de acordo com sua especialização. ‘O jornalismo encontra-se cada vez mais diversificado, e formados em outras áreas naturalmente acabam por se dedicar à elaboração de artigos e matérias específicas de sua formação’.
Dias depois o Supremo Tribunal Federal (STF), em liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes – que, estou convicto, não representa o pensamento do conjunto da mais alta Corte do Brasil – manteve a autorização ao exercício da atividade jornalística sem diploma até que o STF julgue o mérito da ação. O STF e o STJ são instituições pelas quais tenho a maior consideração. É, portanto, de importância fundamental que os magistrados do Supremo demonstrem que conhecem a diferença entre direito à comunicação, direito à informação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa e a regulamentação profissional dos jornalistas.
Nação cega
O comentário do presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Sérgio Murillo, sobre a decisão do STJ, pouco antes da liminar do ministro do STF, Gilmar Mendes, mostra que os jornalistas não são corporativos nem desejam usufruir do monopólio da fala e da voz no País. Querem sim contribuir para a qualidade da informação, que exige um profissional altamente qualificado e com formação universitária: ‘Não é uma quebra da liberdade de expressão, pelo contrário. Qualquer pessoa – e a confusão acaba provocando erros de interpretação – pode expressar-se de maneira livre. O que a Constituição garante é que só jornalistas possam fazer jornalismo’.
A confusão sobre essa questão semeada e regada cotidianamente pela elite política tradicional – muitos deles proprietários de empresas jornalísticas – só interessa a quem se beneficia da concentração de poder. Já frisei que tenho bons e fraternos amigos médicos e advogados, e respeito as duas categorias profissionais. No entanto, não encontro uma explicação nobre sobre por que uma minoria investe volta e meia contra a regulamentação profissional dos jornalistas. E só dos jornalistas. De nenhuma outra profissão de curso superior. Um estrangeiro que chegasse ao país poderia imaginar que desfrutamos de excelentes condições de trabalho, prestígio e recebemos altos salários, tal a voracidade com que investem contra a obrigatoriedade do diploma de Jornalismo. Por que a profissão desperta tamanha cobiça? Temos aqui uma bela pauta para apurar.
Quando trabalhava em redação – hoje leciono Jornalismo numa universidade pública e me orgulho disso –, ouvi certa vez de um colega que não se permite ao jornalista a ingenuidade profissional. Vou além. Médicos, advogados e outros formadores de opinião também não podem ser ingênuos. Que interesses essa minoria, contrária à regulamentação da profissão de jornalista, defende? Uma nação sem informação de qualidade, sem jornalistas qualificados, com formação universitária em Jornalismo, é uma nação cega, refém de seus algozes. A decisão agora está nas mãos da Justiça. Ao final deste texto gostaria de agradecer, particularmente, ao colega e amigo João Batista Abreu Junior, chefe do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), pela leitura atenta deste trabalho bem como pelas contribuições.
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Professor do Departamento de Comunicação Social da UFPE e jornalista