Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os mortos e os outros que não sabem esperar

Quando o avião da TAM caía em São Paulo, eu estava em Petrópolis (RJ) e visitava outra vez a casa em que morou o brasileiro Santos Dumont, o inventor do avião, cuja vida também terminou em tragédia: ele se suicidou no Guarujá, entristecido e deprimido por ver seu invento servindo como arma de guerra civil que se abatera sobre o Brasil.

A casa onde ele morou em Petrópolis, transformada em museu, é pouco maior do que uma quitinete. Além da famosa escada que obriga a quem sobe entrar com o pé direito, há um pequeno terraço, pouco maior do que uma arapuca, em cima do telhado, onde se chega por uma escadinha toda original: lá ele passava horas contemplando o céu noturno, pois instalara ali um pequeno telescópio.

Depois da visita à casa do inventor do avião, fui ao cemitério visitar o túmulo do escritor austríaco, de ascendência judaica, Stefan Zweig, que também se suicidou, não no Guarujá, mas em Petrópolis, juntamente com a mulher, Charlotte. A casa em que o escritor morou está tombada, mas continua fechada, pois as obras de restauração ainda não foram iniciadas.

Proibido de reger

Stefan Zweig foi um dos dois oradores do funeral de Freud, a quem muito admirava. Os dois trocaram muitas cartas. A mulher de Freud reprovara o casamento com Charlotte, muito mais jovem do que Zweig.

Alberto Dines escreveu notável biografia sobre o escritor, intitulada Morte no Paraíso, título muito apropriado, pois o escritor, apaixonado por nosso país, que escolhera para seu exílio, escreveu um livro intitulado Brasil, país do futuro. E um filme muito bem cuidado sobre o biografado, como é próprio desse cineasta, está ainda longe dos cinemas, apesar de pronto há algum tempo. É Lost Zweig, de Sylvio Back. Estive numa exibição especial, no Rio, em que Alberto Dines e o cineasta debateram com o público. A sensação era de quem, em meio aos livros de auto-ajuda nas livrarias e de filmes dispensáveis nos desertos em que se transformaram livrarias e cinemas, chegáramos a um belo oásis para alguns momentos de refresco.

Depois que eu publiquei uma pequena novela intitulada A Mulher Silenciosa, baseada na história real de u’a mulher que eu conheci em Ijuí (RS), acusada injustamente de mandar matar o marido, e mesmo assim condenada e, depois de muitos anos de prisão, indultada por Getúlio Vargas, soube que este era também o título de uma ópera de Richard Strauss, cujo libreto é de autoria de Ztefan Zweig.

Às vésperas da estréia, em Dresden, em 1935, Goebbels mandou retirar o nome de Zweig, mas Strauss revoltou-se e disse que então a obra não estreava. Pagou caro pelo gesto. Deu-se a estréia sem a retirada do nome de Zweig, mas também Strauss foi depois demitido do seu cargo e proibido de reger na Alemanha e na Áustria. Strauss não era bem visto pelos nazistas porque seu filho era casado com uma judia. Seus dois netos eram portanto judeus.

Outros medos

Não resisto e transcrevo um trecho da carta de despedida do escritor Stefan Zweig:

‘Meu amor por este país (Brasil), aumentou dia após dia, e em nenhum outro lugar eu teria preferido reconstruir uma vida nova, hoje que o mundo da minha língua desapareceu para mim e que meu lar espiritual, a Europa, destruiu a si mesmo. Mas, depois de sessenta anos, é preciso ter uma força incomum para fazer um começo inteiramente novo. A que possuo esgotou-se nos longo anos de perambulação sem teto. Assim, julgo melhor concluir, em tempo hábil e de cabeça erguida, uma vida na qual o trabalho intelectual representou a mais pura alegria, e a liberdade pessoal, o bem mais precioso da Terra. Saúdo todos os meus amigos! Possam eles ter a graça de ainda ver a alvorada depois da longa noite! Eu, impaciente demais, sigo na frente’.

Os suicidas têm pressa. Nós precisamos ter paciência. Outro dia Nelson Sargento declarou: ‘A vida só é ruim para que não sabe esperar’.

Mesmo tendo o livro de Alberto Dines em casa, como ia ficar alguns dias em Petrópolis, tentei comprar outro exemplar e passei a procurá-lo nas livrarias. Não encontrei Morte no Paraíso. De volta ao Rio e depois em São Paulo, tornei a procurá-lo. Nada!

Em algumas livrarias moderníssimas encontrei um sistema de busca por computador que dá todos os dados do livro e informa que não há um único exemplar naquela livraria. O vendedor, solícito, me garante em que em dez dias, seu eu pedisse o livro, ele chegaria. Dez dias? Livro é como pão! Fui à internet e obterei o livro em 24h… se os aviões partirem no horário, o que é improvável!

Registro, pois, em meio à tragédia do avião da TAM e dos três suicídios históricos, certos traços de nossa modernidade torta, que provê aviões sofisticadíssimos, mas não faz sua manutenção mecânica; que informa que qualquer livro está (no catálogo) e não está na livraria (na estante); que condecora autoridades notoriamente incompetentes, como se o poder fosse um meio de mimar amigos e áulicos, mas é incapaz sequer de disciplinar a construção de prédios ao redor de aeroportos, como vem de acontecer em Congonhas.

Na Folha de S.Paulo de domingo, (22/7, pág A3), Frei Betto resumiu o drama, depois de desembarcar do avião que pousara imediatamente antes do da tragédia: ‘Não é de viagem de avião que tenho medo. É das autoridades responsáveis pela nossa segurança aérea’.

Mas há outros medos pairando no ar, de que é exemplo o nível intelectual dos quadros do governo que vão aplicar os critérios de faixas etárias à programação da televisão. Não é impróprio supor que terão competências assemelhadas às das autoridades que cuidam do outro espaço aéreo, dados os critérios desse governo para preencher seus quadros dirigentes em muitas áreas.