‘Eu quero entrar na rede/ promover um debate/ juntar via internet/ um grupo de tietes de Connecticut’ (Gilberto Gil – Pela internet, 1997)
No Brasil, a crítica de mídia fica reservada a poucos espaços, geralmente de caráter alternativo e sem maior alarde junto ao grande público. É uma espécie de confinamento, que relega ao segundo plano a reflexão sobre as práticas e a natureza dos meios de comunicação de massa. Em outros países, como os Estados Unidos e a França, a mídia cobre a mídia, e a discussão acerca dos procedimentos de profissionais e de empresas é aberta, alcança diversas camadas da sociedade e interfere de maneira decisiva na engrenagem social.
Organizações não-governamentais como a FAIR (Fairness and Accuracy in Reporting) e o Media Watch podem já ser consideradas instituições norte-americanas do livre pensamento e da liberdade na expressão. Na França, o Le Monde Diplomatique é uma publicação que enfrenta os temas que rondam o universo midiático, possibilitando que seu editor, Ignácio Ramonet, fale inclusive de um Quinto Poder, instância que fiscalizaria a imprensa e os demais meios.
Em terras brasileiras, não há tradição, ousadia nem tampouco disposição para espalhar iniciativas massivas que atuem no sentido de imprimir uma leitura crítica aos meios. As experiências que vigoram subsistem em alguns exemplos isolados da iniciativa privada, no terceiro setor e na academia.
No primeiro caso, destaca-se a instituição do ombudsman pela Folha de S.Paulo desde 1989 e que vem transcendendo a expectativa de fator de marketing que o cargo inspirava pensar. Passados mais de quinze anos e oito jornalistas na função, o ombudsman da Folha foi bem absorvido pelo mercado e chegou a motivar criações semelhantes em jornais de médio porte. Além disso, a consolidação dessa instância de avaliação do produto jornalístico assegurou um pequeno terreno de crítica e autocrítica na empresa jornalística.
Entre as organizações não-governamentais, há esforços que resultaram no coletivo Observatório da Imprensa – que começou na internet, duplicou-se na televisão e tem recentes investidas no rádio – e na Agência Nacional dos Direitos da Infância, a ANDI, que monitora os veículos, elabora pesquisas, sugere fontes e pauta jornalistas para a cobertura dos problemas que cercam a infância a adolescência no país.
Entretanto, é no meio acadêmico que a crítica de mídia parece encontrar mais condições para se implementar enquanto prática reflexiva e como ação propositora de novos procedimentos. E isso se explica pelo fato de que a universidade é um ambiente seguro (com relativa imunidade às pressões mercadológicas), fértil (pois dele se espera soluções para problemas e explicações para fenômenos e situações), reflexivo (por se constituir num pólo gerador de conhecimento) e plural (reunindo variedades de público e de perspectivas teóricas).
Quatro sinais
Quatro experiências distintas demonstram a viabilidade e as potencialidades de laboratórios de observação da mídia nas universidades: o Canal da Imprensa, o S.O.S. Imprensa, o Observatório Brasileiro de Mídia e o Monitor de Mídia [para uma análise comparativa mais detalhada entre media watchers nacionais e internacionais, ver Christofoletti (2005)].
O Canal da Imprensa se define como uma revista eletrônica, surgida em 2002 no Centro Universitário Adventista (Unasp), de Engenheiro Coelho, no interior de São Paulo. É produzida por alunos dos dois últimos anos do curso de Comunicação Social – Jornalismo, e tem como supervisor o professor Ruben Holdorf. É quinzenal e temática e sua linha editorial ‘orienta os articulistas a analisar e criticar o papel da mídia brasileira e internacional’, informa o site. ‘Suas abordagens não permitem o proselitismo religioso nem a propaganda política’, e o compromisso da publicação é ‘lutar pelos direitos de expressão e consciência’. O Canal da Imprensa é bastante semelhante ao Observatório da Imprensa por seu enfoque nacional e por sua preocupação analítica.
O S.O.S. Imprensa é um outro exemplo de iniciativa no campo da crítica de mídia, mas não se trata propriamente de um media watcher, pois realiza um serviço de assessoramento público ao usuário da mídia em casos de erros e abusos. Produzido desde 1996 na Universidade de Brasília (UnB), o projeto funciona como uma ouvidoria pública. O website oferece clipping de notícias sobre a mídia, publica artigos e relaciona mais de uma centena de casos de erros e abusos na mídia nacional. Recentemente, produziu uma cartilha sobre comunicação e cidadania, voltada ao leitor comum não especializado na área. Projeto de extensão universitária, disponibiliza um telefone que atende a população e orienta os usuários do sistema, o Disque-Imprensa.
Surgido no segundo semestre de 2004, o Observatório Brasileiro de Mídia é uma iniciativa do Núcleo de Jornalismo Comparado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) em parceria com a ONG Observatório Social e o Media Watch Global, provocada pelas discussões do Fórum Social Mundial. Além de artigos e reportagens sobre jornalismo, o website realiza pesquisas de olho na cobertura midiática. A única desenvolvida até agora enfocou as eleições municipais em São Paulo, medindo e classificando as orientações das matérias de cinco jornais diários com relação aos candidatos (positiva, negativa ou neutra). Como diferencial metodológico, o Observatório Brasileiro de Mídia utiliza o ‘morfômetro’, dispositivo criado pelo professor José Coelho Sobrinho, que classifica a posição da matéria na página dos jornais, pontuando-a conforme o destaque.
O Monitor de Mídia é um projeto que desenvolvo desde 2001 pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), na faixa litorânea de Santa Catarina. Trata-se de um grupo de pesquisa que reúne professores e alunos para o desenvolvimento de estudos e para o acompanhamento sistemático da imprensa do estado. Com uma interface num website, o projeto disponibiliza diagnósticos quinzenais que analisam os produtos jornalísticos e avaliam as condutas éticas dos profissionais. Até o momento, o projeto concluiu três pesquisas de iniciação científica [são elas: ‘Imprensa e Desenvolvimento Social: presença dos jornais em dez municípios do Vale do Itajaí’ (realizada em 2002-2003); ‘Direitos Humanos nos jornais catarinenses’ (desenvolvida em 2003) e ‘O erro como aspecto ético e como fator de comprometimento da qualidade técnica no jornalismo: incidência, percepção e correção nos jornais catarinenses’ (de 2004-2005)], veiculou mais de setenta análises da imprensa local e disponibilizou mais 130 textos no site pelo menos. Atualmente, dá prosseguimento a outras duas pesquisas: Monitoramento e crítica de mídia da imprensa catarinense (permanente) e Liberdade de imprensa em Santa Catarina nos 20 anos da redemocratização brasileira,1985-2005 (iniciação científica).
Essas quatro experiências acadêmicas estabelecem relações críticas com a mídia na medida em que propõem uma leitura atenta e questionadora dos meios e que se posicionam para entender a comunicação como um problema que demanda compreensão, estudo e reflexão. Distintos em suas realidades, os projetos apontam para a variedade de formatos que os observatórios podem assumir tendo como base o ambiente acadêmico. Duas das iniciativas se dão em universidades públicas (UnB e USP) e incrustadas em realidades de capitais brasileiras, metropolitanas, complexas e caóticas. As demais se caracterizam por estar à periferia dos acontecimentos (o interior paulista e Santa Catarina) e por estarem vinculadas a instituições de ensino superior particulares. O contraste entre os dois pólos de produção dessas experiências traz à tona pelo menos dois questionamentos: É possível ter laboratórios de observação da mídia em qualquer instituição e em qualquer geografia? E qual a possibilidade de se estabelecer uma rede nacional de cooperação entre grupos de pesquisa e extensão, universidades e pesquisadores atentos a tais demandas?
Algumas bases
A idéia de se constituir uma rede nacional que interligasse diversos observatórios de mídia instalados em universidades não é um objetivo novo. Já desde a criação do Observatório da Imprensa, em 1996, a intenção era ter uma presença maior no meio acadêmico, fomentando debates e contribuindo de maneira direta na formação dos jovens jornalistas. Porém, de lá para cá, pouco se foi na direção de um projeto de rede nacional. Os avanços são pontuais, difusos e desarticulados, fruto dos grupos de pesquisa que trabalham na área. Não há um movimento para a criação dessa rede, mas também não existe um projeto que estabeleça as bases de seu funcionamento. A seguir, lanço alguns pontos que podem auxiliar num debate para formação dessa rede.
Os nós da rede
Uma rede nacional de observatórios de imprensa pode aproveitar a capilaridade do sistema de ensino superior para se difundir pelo país. Assim, faculdades e universidades podem funcionar como os nós que dão rigidez e formato à rede. Como já observamos exemplos de instituições públicas e particulares desenvolvendo experimentos de crítica de mídia, não há um padrão único para que a escola se credencie no projeto da rede. É desejável que cada instituição que componha o coletivo tenha um projeto local de operações, e que este convirja com o empreendimento nacional de oferecer um mosaico de leituras críticas dos meios de comunicação brasileiros.
Cada instituição formadora constitui um nó da rede. E cada nó reúne professores, pesquisadores e alunos de graduação e/ou pós-graduação em torno de linhas de ação claras e objetivas. Por isso, a vinculação dos observatórios de mídia a grupos locais de pesquisa (devidamente certificados pelas instituições e credenciados no CNPq) é outra condição desejável que facilita a operacionalidade das ações dos nós da rede. A ancoragem dos observatórios aos grupos dá continuidade aos projetos originais, permite a orientação dos trabalhos por meio das linhas de pesquisa e ainda garante perenidade aos estudos iniciados. Com isso, os observatórios de mídia podem produzir e desenvolver pesquisas científicas dirigidas.
Pelo caráter da rede, cada observatório deve se concentrar na realidade regional, produzindo análises da mídia e do noticiário local, abastecendo a rede com conteúdos originais e exclusivos. É importante que os observatórios funcionem como pólos difusores de uma cultura de leitura crítica de mídia e que sejam células disseminadoras desses padrões de consumo informativo. Assim, além de pesquisas e monitoramento dos meios de comunicação local, os nós da rede podem propor eventos, atividades, campanhas de educação para a mídia. Os observatórios atuam em nível local, mas difundem o conhecimento que geram em escala nacional, global.
Em termos concretos, os observatórios de mídia podem se apoiar em estruturas pequenas, com equipes enxutas e com baixos custos. A idéia é que a rede possa ser uma configuração plural de projetos locais, buscando a organicidade, o movimento e a retroalimentação informativa. Cada observatório de mídia, por exemplo, pode contar com equipamentos mínimos (um ou dois computadores com acesso à internet), dispor de instalações modestas (uma sala ou mesmo um ambiente compartilhado, mas que sirva à sua funcionalidade) e se organizar à base de uma equipe restrita [para se ter uma idéia, em agosto de 2001, o projeto Monitor de Mídia começou com um computador, um professor à frente dos trabalhos, e quatro alunos voluntários numa sala dividida com outros dois projetos; aos poucos, a iniciativa foi crescendo, conquistando equipamentos e bolsas para os alunos], tendo à frente um professor que lidere as ações e outros membros que demonstrem dinamismo, acuidade e compromisso com a difusão nacional dos conteúdos gerados.
As próprias universidades podem arcar com os custos de implantação, manutenção e expansão dos observatórios locais de imprensa, seja oferecendo infra-estrutura física, bolsas de estudo para os alunos e disponibilizando horas de pesquisa para os professores que neles atuam. Além disso, outras fontes de recursos podem ser buscadas pelos observatórios, seja na iniciativa privada ou mesmo em órgãos de fomento de pesquisa em ciência e tecnologia.
A malha da rede
A estrutura de uma rede como a de observatórios de mídia não é mensurável em termos concretos. Isto é, mais importante do que máquinas e equipamentos são as relações estabelecidas, os trânsitos e os movimentos gerados. Por isso, os nós da rede precisam estar bem conectados, trocando informações, repassando orientações e atualizando seus conteúdos. É imprescindível que vigore no sistema um clima de cooperativismo e senso de responsabilidade em torno dos interesses comuns dos participantes.
Para maior mobilidade e dinamismo, uma estrutura como essa não deve centralizar custos ou concentrar ações como a captação de recursos. Essas atribuições criam uma cabeça no sistema, uma espécie de centro de controle que desmonta o conceito de rede, hierarquizando funções e espaços.
Uma rede nacional de observatórios de mídia precisa trabalhar em dois focos de difusão dos conteúdos recolhidos: no atacado e no varejo. Assim, o sistema necessita que todos os observatórios façam a divulgação de suas análises e materiais em suas bases locais e ainda que haja um veículo comum a todos. De maneira prática, todo observatório pode ter seu próprio site para tornar público o seu trabalho, mas é preciso que um outro site reúna as produções (semanais ou mensais) de todos os nós da rede. Em termos de sugestão, penso que o Observatório da Imprensa, por exemplo, poderia ceder espaço de uma seção fixa – como a Diretório Acadêmico – ou mesmo criando uma em específico para este fim. Assim, a cada atualização semanal do Observatório da Imprensa, novos conteúdos de observatórios locais seriam disponibilizados, permitindo uma intensa circulação de informações e análises críticas das mídias em diversas partes do país. Caso essa sugestão deixa-se essas linhas e viesse a se tornar viável, seriam necessários movimentos que agilizassem a coleta e o fechamento do material recebido em tempo hábil, conforme a rotina do Observatório da Imprensa. Editores por região brasileira, cinco no total, poderiam se encarregar disso, atuando também como catalisadores da rede.
Com relação ao trabalho analítico publicizado pela rede, penso que não se deva buscar uma uniformização de metodologias de crítica de mídia. Primeiro, porque a escolha de uma única matriz teórica para as análises soterraria a diversidade cultural e conceitual expressa na rede. As realidades regionais que podem se reunir numa rede nacional como essa caracterizam-se pela pluralidade, pela diferença, pela heterogeneidade.
Neste sentido, cada observatório de mídia deve escolher os meios que irá monitorar; cada observatório deve refletir sobre sua realidade e encontrar uma metodologia de leitura adequada da mídia. Só assim, com ampla liberdade de ação, mas um único propósito – a crítica de mídia a serviço do aperfeiçoamento dos processos e dos procedimentos jornalísticos – é que uma rede nacional de observatórios de imprensa pode oferecer um mosaico em movimento do jornalismo e da comunicação brasileiros.
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As considerações que trouxe neste artigo foram formuladas no calor do cotidiano e na pressa dos corredores universitários. As pontuações de como se deva dar uma rede de observatórios de imprensa em universidades são transitórias e temporárias, cabendo a elas não apenas um rigoroso julgamento como também um necessário movimento de questionamento permanente. As sugestões e as bases destacadas aqui precisam não apenas do chacoalhar de outros leitores e pensadores do tema e da devida ação do tempo para uma maior maturidade das proposições. Só o diálogo e a verdadeira convicção da necessidade, da oportunidade e da viabilidade de um projeto como esse pode torná-lo concreto e operante. Os nós que apresentei são iniciais, preliminares, afinal qualquer rede começa de uma pequena trama.
Bibliografia
CHRISTOFOLETTI, Rogério. Nos intestinos da mídia: a prática dos observadores na internet. Anais do CD-ROM do 9º Colóquio Internacional sobre a Escola Latino-americana de Comunicação (Celacom), 2005.
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Professor de Legislação e Ética em Jornalismo na Univali; mestre em Lingüística e doutor em Ciências da Comunicação, criou em 2001 o projeto Monitor de Mídia, de acompanhamento da imprensa catarinense, cujo site disponibiliza todas as pesquisas realizadas pelo grupo