Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Paulo Machado

‘O leitor Thiago Godoy escreveu para esta Ouvidoria reclamando da falta de imparcialidade da Agência Brasil na cobertura sobre o aborto. Segundo ele, o veículo ‘tem estampado notícias que induzem os leitores a serem favoráveis à legalização total da prática abortiva no país’.

Entre os dias 28 e 30 de maio foram publicadas 13 matérias e um gráfico sobre o assunto. Para analisarmos seu conteúdo, temos que nos reportar à agenda da sociedade e aos fatos que marcaram os últimos dias de maio no que tange à saúde pública e ao aborto.

No dia 28 foi comemorado o Dia Internacional de Combate à Mortalidade Materna. O presidente Lula lançou em São Paulo a Política Nacional de Planejamento Familiar. A agência cobriu o evento e publicou cinco matérias sobre o programa governamental. Todas tratam da responsabilidade do Estado brasileiro no que se refere à preservação da saúde da mulher. Apenas uma matéria fala sobre aborto como uma das causas de morte materna. Nenhuma fonte emite opinião sobre o aborto.

Em Recife, no mesmo dia, a Secretaria Estadual de Saúde promoveu um encontro para debater o assunto. A única fonte ouvida na matéria sobre o evento foi a coordenadora do Comitê Estadual de Estudos da Mortalidade Materna, que destacou, com base em dados estatísticos, a necessidade da ‘oferta de assistência médica de qualidade à saúde sexual e reprodutiva’. Com isso, chamou a atenção para um problema de saúde pública. A fonte em momento algum se pronunciou contra ou a favor do aborto.

Em comemoração à data, outra matéria anunciava a realização de uma manifestação em São Paulo. A única fonte ouvida foi uma assistente social, militante do movimento feminista, que defendeu o aborto como um serviço público de saúde, como uma maneira de colocar em igualdade de condições as mulheres que têm dinheiro e praticam o aborto em clínicas particulares e as que não têm e se submetem ao aborto em clínicas clandestinas com alto risco.

No dia 29, a agência ouviu a ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, repercutindo o lançamento do programa governamental no dia anterior. Ela defendeu a adoção de uma política pública de planejamento familiar como uma forma de o governo incentivar métodos contraceptivos e evitar a prática de abortos clandestinos.

Finalmente, no dia 30, ocorreu o lançamento da pesquisa ‘Morte e Negação: Abortamento Inseguro e Pobreza’ pela Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF), na siga em inglês. A agência cobriu o lançamento do relatório da IPPF com quatro matérias. Ouviu uma fonte ligada ao governo, uma assessora da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM), uma diretora da IPPF, um professor da Universidade Estadual de Campinas, ligado à pesquisa e uma médica ligada a uma rede nacional de saúde cujos vínculos institucionais não são esclarecidos. Todas as fontes defendem o aborto do ponto de vista de ser uma questão de saúde pública.

A diretora da entidade internacional e a assessora da SEPM fazem afirmações sobre o comportamento de parlamentares que agem sob ‘pressões religiosas’ no tratamento da questão no Congresso Nacional. Nenhum parlamentar foi ouvido sobre tais afirmações. A mesma fonte da IPPF critica a posição da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),que também não foi ouvida.

Finalmente, o gráfico publicado na página da Agência Brasil no mesmo dia 30 apresenta uma série de dados aparentemente desconexos. Um ‘Panorama do Aborto Inseguro no Brasil’ é citado como fonte da informação sem dizer qual a sua origem ou por quem foi elaborado. Esses dados foram extraídos do relatório divulgado pela IPPF ou diretamente do Sistema Único de Saúde (SUS)? Um gráfico mostra o número de curetagens nos SUS. O que isso tem a ver com o tema? Um mapa do Brasil mostra o número de óbitos maternos por cada 100 mil nascidos vivos só para as Regiões Nordeste e Sudeste. O que significa isso? Se as mães tiveram os bebês, então elas não fizeram aborto. Um pequeno texto diz que o SUS gastou R$ 33 milhões em 2006 com mulheres que abortaram de maneira insegura. Se as mulheres tivessem abortado de maneira segura o SUS não gastaria o montante? Gastaria mais ou menos? Um outro quadro, ainda no mesmo gráfico, fornece o número de internações pós-aborto por regiões. São números absolutos apresentados sem termos de comparação para saber o que significam. Todas essas informações reunidas, sem contextualização, sem outros números que revelem tendências no tempo e no espaço ou parâmetros de referência que permitam ao cidadão concluir se isso é muito ou pouco, não colaboram para que se chegue a qualquer conclusão. Segundo a Editoria Multimídia da agência esse tipo de infográfico tem uma função complementar, para esclarecer os assuntos tratados nas matérias, e sua conexão deve ser feita com os conteúdos ali abordados.

A agenda da saúde pública no período analisado foi protagonizada por atores favoráveis à legalização do aborto como uma questão de saúde pública, enquanto os atores contrários à institucionalização da prática mantiveram-se aparentemente calados. Será que esse silêncio se deve à força dos argumentos que deslocaram a discussão do campo político-religioso para o campo da saúde pública ou será que os atores contrários à legalização do aborto estão calados porque não tiveram chance de se manifestar nas matérias da agência? De qualquer forma só saberemos a opinião deles se forem procurados, tal como aconteceu por ocasião de outros momentos recentes em que a Agência Brasil ouviu diversas opiniões divergentes sobre o assunto.

Assim como o aborto, outras questões polêmicas têm envolvido o cidadão brasileiro e suas relações consigo mesmo, com a sociedade, com o governo e com o Estado. Uma agência de notícias se constitui em um espaço público de debate para onde devem convergir as diferentes opiniões que refletem a diversidade de interesses e de valores da sociedade brasileira. Buscar e dar voz a essa diversidade é uma das principais funções do jornalismo. Esteja ela onde estiver, organizada ou não, reunida em maiorias ou minorias. Todos têm igual direito a participar e a contribuir para que sejam contemplados seus interesses na construção de uma organização social democrática.

Até a próxima semana.’