A argumentação que serviu de base para o Supremo Tribunal Federal (STF) votar favorável à não obrigatoriedade do diploma para exercício da profissão de jornalista tem premissas contestáveis que abrem caminho para que uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), visando a reverter a situação, seja aprovada no Congresso Nacional. Protestos de diversas entidades profissionais ligadas ao jornalismo contra a decisão do STF ecoaram por todo o país. Respaldado por essas manifestações, o senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE) apresentou no último dia 1º de julho uma PEC que restabelece a obrigatoriedade do diploma, mas torna facultativa sua exigência para jornalistas habilitados que já possuam registro no Ministério de Trabalho e Emprego (MTE). A PEC em tramitação faculta também a exigência de diploma para colaboradores, tal como previa o decreto-lei impugnado pelo STF.
O STF julgou a legalidade da regulamentação da atividade jornalística com base no preceito constitucional da ‘liberdade de expressão’. O ministro relator do processo, Gilmar Mendes, ignorou os argumentos da União, Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo em defesa do diploma, os quais se basearam na interpretação conjunta do inciso IX do artigo 5º: ‘É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’ e do inciso XIII, ‘é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer’.
Nota dos professores de Jornalismo
Ele alegou não ser razoável vincular as qualificações para a profissão à obrigatoriedade estabelecida pelo decreto-lei de 1969 – que tratava do exercício da profissão de jornalista –, uma vez que a formação superior específica em jornalismo não seria condição necessária nem suficiente para o exercício dessa profissão, com base em seus preceitos éticos e técnicos.
Desvela-se na argumentação do ministro relator do STF uma visão arcaica e romântica do profissional de jornalismo, só cabível em contexto dos primórdios da imprensa em nosso país, no século 19, bem antes da criação da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em 1908. Para o jornalista Janio de Freitas, o termo ‘liberdade de expressão’, usado sem moderação pelos magistrados e advogados que defenderam a causa acolhida pelo STF, é falacioso e não passa de uma ‘fórmula cuja utilidade política está em encobrir limitações e condicionantes do direito de expressão’ (‘A liberdade das más escolhas’, Folha de S.Paulo, 21/6/2009).
Para o respeitável colunista, dizer que o diploma obrigatório de jornalista fere a Constituição no quesito liberdade de expressão ‘é um argumento rústico’. Ele considera falsa a idéia de que ‘o jornalismo profissional seja o repositório da liberdade opinativa’. Além disso, é convincente ao alegar que o jornalismo contemporâneo é feito muito mais de notícias do que de opiniões. Parece plausível essa avaliação, feita por quem exerce jornalismo profissional há várias décadas. Assim sendo, como pode a exigência legal de qualificação atentar contra o direito fundamental da liberdade de expressão?
Como contestar, como fez o ministro relator do STF, a afirmação de que profissionais formados em jornalismo comportam-se de forma mais responsável e menos abusiva? É justamente nas escolas de Comunicação Social que o futuro profissional de jornalismo aprende não apenas fundamentos e técnicas de comunicação, mas também ética e legislação. Esses ensinamentos vão habilitá-lo tecnicamente para o exercício do jornalismo e também torná-lo ciente dos seus limites na difusão de informação. Uma quantidade massiva de professores e profissionais de jornalismo considera que a Suprema Corte impugnou a necessidade legal de diploma com base em premissas equivocadas. Em relação ao caráter intrínseco da atividade jornalística profissional, o Fórum Nacional de Professores de Jornalismo expressou taxativamente em nota oficial, emitida em 18/6/2009, no site fnpj.org.br que ‘o jornalismo foi julgado pelo que não é’.
Dados que derrubam argumentação
Além de desatualizado e, portanto, incorreto, o conceito atual da profissão de jornalista elaborado pelo ministro Gilmar Mendes para embasar sua argumentação contrária à obrigatoriedade do diploma, desdobra-se em duas questões subjetivas e mal interpretadas. Uma delas é invocar um caráter supostamente restritivo da legislação até então em vigor. A outra é alegar sua incompatibilidade face à Convenção Americana de Direitos Humanos, em vigor desde 1978, da qual o Brasil é signatário. O órgão jurídico responsável pela aplicação e interpretação dessa convenção é a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede em Washington, Estados Unidos. Essa corte decidira em 1985 que a exigência de diploma universitário para o exercício da profissão de jornalista viola um dos artigos da convenção por ela arbitrada.
Objetivamente, o decreto-lei que dispunha sobre a profissão de jornalista em nosso país, não impedia a livre expressão do pensamento e liberdade de informação, uma vez que a lei não determinava exclusividade ao jornalista na prestação de informação. A legislação previa situações em que se dispensava a exigência de diploma para o exercício da profissão. Uma delas se aplicava à figura do colaborador que, respaldado na lei, podia produzir trabalhos de natureza técnica, científica ou cultural, relacionados com sua especialização, para ser divulgado com seu nome e qualificação. Outro profissional não diplomado que podia atuar como jornalista amparado por lei é o provisionado, desde que em sua localidade não houvesse curso de Jornalismo reconhecido pelo MEC. Ao prever essas exceções, a legislação ao mesmo tempo em que resguardava a necessidade de requisitos técnicos para o exercício profissional, atendia aos princípios constitucionais da livre manifestação de pensamento e de informação.
Em seu artigo ‘Uma decisão danosa‘ (publicado no Observatório da Imprensa, em 18/6/2009), o jornalista Alberto Dines fornece dados estatísticos de três grandes jornais impressos relativos a uma edição bastante singular: aquela fechada no dia em que a decisão do Supremo foi tomada. Segundo Dines, dos 29 artigos regulares assinados, cerca de 60% eram de autoria de jornalistas profissionais e o restante de não-jornalistas. Esses dados derrubam a argumentação de que a exigência legal de diploma fere o preceito constitucional da liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que confirmam o caráter não restritivo do decreto lei impugnado pelo STF.
As diferentes realidades sócio-econômicas
A alegação de incompatibilidade com uma convenção internacional apoiada pelo Brasil é discutível, uma vez que nosso ordenamento jurídico não restringe o exercício do direito à informação e a lei reguladora da profissão de jornalista não ia contra qualquer direito fundamental. Ao contrário, o decreto-lei impugnado não podia ser interpretado de outra maneira senão de forma sistêmica face a outros dispositivos constitucionais que garantem os direitos fundamentais do cidadão. A exigência do diploma de jornalista não deixa de ser um mecanismo eficaz de proteção de toda a sociedade para que ela receba informação de qualidade e com responsabilidade. A interpretação do STF de que essa exigência implicasse em violação ao direito à informação é frágil e não se sustenta perante uma ampla massa de profissionais de jornalismo, como também da opinião pública. Na verdade, aquela legislação infraconstitucional assegurava maior eficácia ao direito fundamental à informação, contribuindo para sua função social e agindo como um arcabouço contra excessos e falta de respeito aos princípios éticos inerentes à profissão de jornalismo.
Quanto ao fato da corte que arbitra questões no âmbito da Convenção Americana de Direitos Humanos ter declarado que a obrigatoriedade de diploma para exercício da profissão de jornalista viola ‘a liberdade de expressão em sentido amplo’, como consta do relato do ministro Gilmar Mendes, há que considerar as diferentes realidades sócio-econômicas dos países signatários e, portanto, as conseqüências de sua aplicabilidade em território nacional. Não é razoável ater-se meramente aos aspectos jurídicos da decisão de uma corte internacional, quando se põe em risco o interesse maior de nossa sociedade. Assim não fosse, não teríamos a obrigatoriedade de diploma vigente em outros países signatários, como a Colômbia, cuja realidade sócio-econômica e cultural é muito mais próxima da nossa do que a dos Estados Unidos, país em que não há exigência legal de diploma de jornalista.
Uma análise comparativa
O primeiro curso de Jornalismo do qual se tem notícia no mundo começou em 1912 na Universidade de Columbia, Estados Unidos. Foi idealizado por Joseph Pulitzer. O público-alvo eram repórteres e editores e o curso visava a suprir as deficiências técnicas desses profissionais. Até então, eram os intelectuais que dominavam os espaços mais importantes das redações dos jornais, mas faltava a eles uma formação técnica que possibilitasse produzir matérias de forma mais eficiente. Esse curso pioneiro surgiu como apoio à atividade jornalística, mas não era obrigatório para aqueles que quisessem atuar profissionalmente nos Estados Unidos. É assim até hoje.
Como é em outros países?
Apesar da não exigência legal de diploma, os norte-americanos contam com 400 cursos de graduação em Jornalismo, 120 de pós-graduação e 35 doutorados. Outro dado importante: cerca de 80% das redações são ocupadas por profissionais diplomados em jornalismo. Vários outros países adotam o modelo norte-americano, principalmente os mais ricos e com elevado índice de desenvolvimento humano (IDH), como Alemanha, França, Inglaterra, Itália, Japão e Suíça. Em todos esses países, os cursos de Jornalismo são altamente qualificados e bastante concorridos. As informações acima foram extraídas de um artigo de José Paulo Cavalcanti Filho, reproduzido no blog de Marcos Alencar (marcosalencar.com.br), colunista das revistas Plural (Norte/Nordeste) e Bites (SP).
De acordo com os dados disponíveis, entre os países onde há obrigatoriedade legal do diploma de jornalista, poucos têm IDH superior ao do Brasil (70), entre eles, Bélgica (17) e Croácia (45). Os demais estão abaixo no ranking do IDH, a exemplo de Equador (72), Turquia (76), Colômbia (80), Tunísia (95) e África do Sul (125). O IDH é uma escala comparativa adotada pelo Programa de Desenvolvimento da ONU desde 1993, que leva em conta três aspectos de um país: riqueza, educação e expectativa média de vida. Após análise dos dados, a ONU publica um relatório anual com o ranking de 179 países; o melhor recebe o número 1 e o pior, 179. Os dados de IDH acima constam do relatório de 2008/2009. Este parece ser o índice mais adequado para uma análise comparativa do nível de desenvolvimento dos países, inclusive no contexto em questão, o da exigência legal do diploma de jornalista.
Um analista político e social
A discussão sobre a validade ou não do diploma de jornalista em nosso país não pode se restringir apenas ao aspecto jurídico, inclusive quando se compara nossa legislação com a de outros países. Uma análise criteriosa dos dados de IDH revela que nossa realidade sócio-econômica é mais próxima à realidade dos países com legislação semelhante àquela disposta no decreto-lei impugnado pelo STF do que à dos países com elevado IDH e onde não há restrição legal para a prática profissional do jornalismo. No momento, o resultado prático da decisão do STF é a imposição de um modelo de desregulamentação total da profissão de jornalista, uma vez que junto com a derrubada do diploma, o STF eliminou também a necessidade de fiscalização e registro em órgão de Estado (MTE).
Conforme informações do blog de Marcos Alencar, há um amplo grupo de países que não exigem diploma mas que admitem algum tipo de exigência prévia para o exercício da profissão, segundo padrões culturais não uniformes: idade mínima, escolaridade, ausência de condenação penal, algum curso médio ou superior, curso preparatório específico e estágios compulsórios. Por outro lado, em muitos desses países as empresas requerem o diploma no momento de contratar um jornalista. Na Alemanha, por exemplo, quase todos os jornais importantes só contratam jornalista diplomado. Mas essa é a realidade de um país rico, com alto IDH. No Brasil, assim como em outros países com IDH baixos e próximos ao nosso, não se pode afirmar que ser titular de um diploma significa maiores chances de se obter emprego e/ou salário melhor, quando não há respaldo de uma regulamentação trabalhista. Num país de dimensões continentais como o nosso, onde em várias regiões a prática patrimonialista nas empresas de comunicação é corrente e as concessões públicas de TV e rádio são ditadas pelo poder político, contemplando apenas um punhado de famílias, o fim do diploma só atende aos interesses de uma minoria privilegiada.
A profissão de jornalista foi regulamentada há 70 anos e os primeiros cursos de Jornalismo no país foram criados há mais de 40 anos. É uma conquista da categoria e da sociedade como um todo. Apesar da transformação tecnológica radical observada nas últimas décadas na área da comunicação, o jornalista nos dias de hoje é cada vez menos um técnico e cada vez mais um analista político e social.
Relações clientelistas
Por outro lado, a Constituição Federal garante a liberdade de informação jornalística e do exercício das profissões e reserva à lei dispor sobre a qualificação profissional. A regulamentação das profissões é salutar em qualquer área do conhecimento. Não deixa de ser um meio legítimo de defesa corporativa, mas acima de tudo é uma certificação social de qualidade e segurança ao cidadão. Ao impor ao jornalista o atendimento de requisitos mínimos indispensáveis ao bom desempenho profissional, longe de ameaçar a liberdade de expressão, fornece ao Estado democrático de direito um meio de garantir à população qualidade na informação prestada.
Com a democracia se consolidando em nosso país e a ampliação do acesso às novas tecnologias de informação, o Jornalismo tornou-se o espaço público por excelência – um espaço de mediação democrática – que precisa contar com profissionais bem preparados para intermediar e interpretar os conflitos vivenciados pela sociedade brasileira. Esses profissionais devem ser formados pelas universidades. Não é razoável correr o risco de ver esse espaço público ser intermediado por profissionais moldados em relações clientelistas com empresas descompromissadas com a função social da comunicação.
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Professor universitário (UFPB), pesquisador bolsista do CNPq e estudante de Jornalismo da UFPB, João Pessoa, PB