Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Políticas públicas na pauta dos estudantes de jornalismo

Ao longo dos últimos anos, o contato permanente da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) com jornalistas atuantes nas redações dos mais diferentes veículos brasileiros tem revelado um consenso: a necessidade de aprofundar as discussões sobre Políticas Públicas e Direitos Humanos ainda na fase de formação universitária desses profissionais.


Uma parceria pioneira da Universidade de Brasília com a ANDI permitiu o início de uma disciplina especial que tem por objetivo aproximar os futuros jornalistas da agenda social brasileira.


A iniciativa, descrita nesta reportagem, está sendo ampliada para outras Instituições de Ensino Superior e faz parte de uma estratégia mais ampla de relacionamento da ANDI com o mundo acadêmico, por meio do Programa InFormação – Programa de Cooperação para a Qualificação de Estudantes de Jornalismo, que conta com o apoio da Fundação Kellogg.


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A mídia desempenha um papel fundamental no mundo contemporâneo, ao atuar como uma das principais instâncias de construção de valores coletivos e hábitos sociais e culturais. Não resta dúvida de que, no contexto da sociedade da informação, é a mídia quem determina amplamente a consciência coletiva humana, conforme analisa, entre outros especialistas, o presidente da União Internacional da Imprensa em Língua Francesa, Hervé Bourges.


Da mesma forma, a existência de uma imprensa livre é também fator determinante para o funcionamento adequado das sociedades democráticas, segundo ressalta o diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, Koichiro Matsuura. Isso porque os meios de comunicação, ao mesmo tempo em que podem contribuir para promover, por exemplo, a participação social e a luta contra a pobreza, desempenham ainda um papel central como instrumentos de transparência e prestação de contas por parte dos governantes.


E é em função dessa inserção da mídia na sociedade, que se amplia, sobremaneira, a responsabilidade dos jornalistas em seu trabalho cotidiano. Nesse sentido, além do evidente e necessário compromisso com a qualidade e a ética, a prática do bom Jornalismo passa a exigir também dos profissionais outras atribuições de grande relevância, entre as quais podemos destacar: a oferta de informações contextualizada – ou seja, conteúdos acurados e que tragam os diversos ângulos relativos ao tema em pauta; o agendamento responsável, e conectado à realidade local, das questões mais urgentes enfrentadas pela sociedade; e, por fim, o exercício do monitoramento e da fiscalização das ações dos diferentes atores sociais, especialmente dos governos.


Diante de tais tarefas, torna-se impossível dissociar o debate acerca das práticas jornalísticas do imenso desafio de assegurar aos profissionais de imprensa e outros comunicadores uma formação que contribua para a reflexão sobre a realidade social em que vivem. Afinal, no processo de construção e veiculação da informação, eles criam e se utilizam de ferramentas que acabam por modelar as representações coletivas, podendo tanto fomentar a consciência e a participação como, ao contrário, difundir a intolerância, o preconceito e a desinformação.


É em sintonia com essas reflexões e debates desenvolvidos em nível mundial, que vem sendo desenvolvida, em Brasília, uma experiência pioneira no ensino de Jornalismo: uma disciplina sobre a cobertura das políticas públicas sociais. Implementada como experiência-piloto na graduação em Comunicação Social da Universidade de Brasília (UnB), no primeiro semestre letivo de 2006, a iniciativa é coordenada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), em conjunto com a Faculdade de Comunicação da UnB e o Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp), ligado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam), também da UnB.


A partir da articulação entre essas instituições, uma disciplina que já existia na grade curricular do curso de Jornalismo – intitulada Crítica da Mídia/Leitura dos Meios – foi potencializada e passou a oferecer novos conteúdos, focados no papel dos jornalistas no contexto da agenda social. O objetivo da proposta, que integra o InFormação – Programa de Cooperação para a Qualificação de Estudantes de Jornalismo – capitaneado pela ANDI, com o apoio da Fundação W. K. Kellogg –, é contribuir com a formação dos profissionais de comunicação, de modo a qualificá-los para a cobertura das problemáticas que marcam a realidade social brasileira. Nesse sentido, busca estimular, de forma integrada, entre alunos de Ensino Superior, o interesse e a consciência crítica sobre a cobertura das questões sociais pela mídia.


Os porquês da disciplina


Conforme está explicitado no documento que orienta a política de relacionamento da ANDI com as Instituições de Ensino Superior, ‘há informações circulando, às vezes em excesso, mas faltam análise e pensamento crítico sobre estes contextos, de maneira a nortear novas formas de compreender os direitos, as políticas, os indicadores, o controle social e a responsabilidade das instâncias públicas e privadas’. E foi exatamente esta a premissa que inspirou a concepção do formato geral de uma disciplina com foco na cobertura das políticas públicas sociais.


É necessário ressaltar que as pesquisas realizadas sistematicamente pela ANDI apontam para uma tendência de melhoria da qualidade, bem como de ampliação do espaço da cobertura da área social, especialmente das problemáticas ligadas à infância e à adolescência. Entretanto, as deficiências ainda presentes no tratamento dispensado pela mídia brasileira às questões sociais persistem, dentre outros fatores, devido a uma lacuna na formação dos jornalistas e dos demais profissionais de comunicação. De acordo com o professor da Faculdade de Comunicação Social da UnB e coordenador da disciplina Leitura Crítica dos Meios/Crítica da Mídia, Luiz Gonzaga Motta, foi exatamente essa constatação que levou a UnB a aderir à proposta. ‘A questão social é muito negligenciada aqui. A profissão ainda dá maior valor à cobertura política e econômica’.


Na visão de Motta, tal postura revela uma falta de sintonia em relação às mudanças pelas quais a sociedade e, conseqüentemente, a Academia estão passando. ‘Nós tivemos um período, 20 anos atrás, em que a área era muito politizada, a visão marxista era muito forte. Primeiro, era preciso mudar a sociedade, para depois mudar as coisas, a imprensa. Hoje, o mundo é diferente. Toda a área acadêmica está revendo suas posições, o que faz parte do processo em curso na sociedade brasileira. Nossa sociedade se democratizou, se organizou, então a mudança é de dentro para fora e não mais de fora para dentro.’ Essa nova organização social, conclui o professor, leva ao desejo e à necessidade de qualificar os profissionais de mídia, o que justificaria a proposta da disciplina.


Para Guilherme Canela, coordenador de Relações Acadêmicas da ANDI, a concepção da disciplina está em consonância não somente com o que se esperaria de um jornalismo mais antenado com a realidade social, mas também com os mais recentes debates travados no âmbito internacional. ‘Há alguns anos, a Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia, uma das mais respeitadas do mundo, contratou o principal editor da revista New Yorker para reformular o currículo do curso de jornalismo, especialmente no sentido de aprofundar o conteúdo e diminuir o peso das chamadas disciplinas técnicas. Lembro que essa mesma universidade oferece, há anos, uma especialização em Jornalismo e Direitos Humanos. Vale ressaltar também o caso da BBC, que está criando o seu BBC College, exatamente por não estar totalmente satisfeita com a formação dos seus profissionais.’


Alunos na fase final do curso de Jornalismo da UnB corroboram essas análises e se ressentem da falta de espaço para discutir as questões sociais ao longo da graduação. ‘Em quatro anos de curso, não fiz nenhuma matéria que tratasse da parte social, só Comunicação Comunitária traz um pouco essa discussão’, comenta Carlos de Brito, 23 anos, graduando do último período do curso da UnB. A aluna Ana Guerreiro Lacerda, 22 anos, que também se encontra na fase final da graduação, diz que gostaria de ter tido contato com as questões relativas à área social ao longo de sua formação. ‘Sinto falta da base teórica para um trabalho mais voltado para a questão. É bom para quem tem preocupação em fazer notícias que não sejam meros produtos comerciais’, afirma.


Uma longa trajetória


A história da ANDI e de sua relação com as mais diversas redações de jornais, tevês, rádios, revistas e outros veículos do País, ao longo dos últimos 14 anos, foi igualmente central para a sedimentação de um programa amplo de cooperação com as universidades. Ao monitorar cotidianamente a imprensa quanto aos temas pertinentes ao universo infanto-juvenil, ao mobilizar os profissionais das redações brasileiras no tocante à relevância de se incluir permanentemente a agenda da infância em sua pauta e ao desenvolver estratégias de qualificação desses mesmos profissionais, a ANDI acumulou uma robusta bagagem de dados, experiências, histórias e conhecimentos que contribuíram decisivamente para um diálogo qualificado com as Instituições de Ensino Superior.


Até chegar à parceria com a UnB e desenvolver uma disciplina de graduação sobre a cobertura dos temas sociais, a ANDI percorreu, portanto, um longo caminho de aproximação com o meio universitário, iniciado em 1997 a partir do Programa de Formação de Estudantes Universitários em Comunicação e Mobilização Social, apoiado pela Fundação W. K. Kellog.


Em 2003, a partir de uma demanda pela ampliação das relações construídas entre a organização e as universidades, foi criada a Coordenação de Relações Acadêmicas na ANDI. Uma de suas iniciativas, desenvolvida à época em aliança com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), foi a identificação das possíveis estratégias de qualificação dos futuros profissionais de jornalismo e dos professores universitários em relação a dois eixos de reflexão: de um lado, sobre os direitos humanos da criança e do adolescente e, de outro, sobre a responsabilidade da mídia na formação de estruturas simbólicas e sociais.


Esse trabalho foi coordenado pela então coordenadora da área de relações com as universidades da ANDI, professora Regina Festa, que atualmente é consultora da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe – CEPAL. No âmbito dessas primeiras iniciativas, foram apontadas uma série de possibilidades para a atuação da área de relações acadêmicas da ANDI, sugerindo-se desde aquele momento a criação de disciplinas como a que efetivamente veio a ser implementada na UnB.


Entre 2004 e 2005, as estratégias propostas pela professora Regina Festa passaram a ser amplamente discutidas com pesquisadores, docentes e alunos de diversas instituições brasileiras. Foi a partir desses diálogos que a ANDI formulou as ações que hoje integram o Programa InFormação. Com o novo desenho de sua política de relacionamento com as Instituições de Ensino Superior, a ANDI passou não só a apoiar a criação de disciplinas focadas na agenda social, como também a oferecer bolsas para trabalhos de conclusão de curso e promover um concurso de monografias, dissertações e teses. Além disso, as atividades do Informação prevêem ainda a edição de publicações a serem utilizadas como conteúdos das disciplinas e a implementação de um sistema de ajuda permanente a estudantes e pesquisadores interessados nas relações entre a mídia e a realidade social brasileira.


Organização e estrutura


A disciplina Leitura Crítica dos Meios/Crítica da Mídia é oferecida tanto para alunos de Comunicação Social quanto para estudantes de outras áreas da Universidade de Brasília. Para os primeiros, ela faz parte do currículo obrigatório, sob o nome de Leitura Crítica dos Meios, e está sob responsabilidade do professor Luiz Motta. Para os demais estudantes, a disciplina recebe o nome de Crítica da Mídia e ganha caráter optativo, fazendo parte do rol de cursos oferecidos pelo Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política, também coordenado por Motta.


A parceria com a ANDI, explica o professor da UnB, possibilitou a mudança de foco da já existente disciplina Leitura Críticas dos Meios e a abertura de vagas para estudantes de outras áreas. ‘É uma disciplina introdutória, de primeiro semestre, que tem por objetivo dar uma visão geral. Só que ela era ministrada com outra perspectiva, ganhando um formato muito mais interessante e produtivo a partir da parceria.’


Em sua nova estrutura, a disciplina foi organizada a partir de um conjunto de palestras, ministradas por especialistas – profissionais que atuam em universidades, organismos internacionais e organizações não-governamentais – e jornalistas com experiência na cobertura social. Os convidados apresentam aos estudantes um leque diversificado de assuntos, envolvendo conteúdos sobre orçamento, legislação, processo de formulação das políticas públicas, avaliação de resultados, entre outras questões. Além disso, ao longo das aulas são abordados temas como desenvolvimento humano, diversidade e direitos da criança e do adolescente.


Também é sugerida uma bibliografia aos alunos, que incluí textos teóricos e de discussão sobre a cobertura jornalística, de maneira geral, e sobre as questões sociais. No primeiro semestre de oferta da disciplina, como forma de avaliação, os estudantes tiveram que produzir três artigos, desenvolvidos durante o curso, nos quais devem analisar o tratamento editorial dedicado aos temas sociais pelos meios de comunicação de massa brasileiros.


A receptividade à iniciativa, segundo o professor Motta, tem sido muito boa, como pode ser constatado na grande procura registrada tanto no primeiro quanto no segundo semestre de 2006. Na experiência inicial, além de 40 alunos de Comunicação Social, 19 estudantes das mais diversas áreas –Serviço Social, Medicina, Engenharia Elétrica, Ciências Contábeis, Educação Física, entre outras – cursaram a disciplina. O quadro foi bastante similar no segundo semestre de oferta do curso, quando cerca 70 estudantes se inscreveram. Para o primeiro semestre de 2007, iniciado em 12 março, já foram contabilizadas 100 matrículas.


Os resultados positivos também podem ser mensurados por meio dos resultados da avaliação realizada durante a primeira experiência promovida pela ANDI em conjunto com a UnB: 36,5% dos alunos apontaram a disciplina como ‘ótima’ e 50%, como ‘boa’. Com relação ao conteúdo programático, 80,8% consideraram ‘ótimo’ e ‘bom’. A metodologia adotada também agradou, sendo aprovada por 82,7% dos matriculados. As avaliações qualitativas ressaltam ainda a importância do contato com profissionais de outras áreas – a interdisciplinaridade – bem como com colegas estudantes de diferentes cursos da universidade. A oportunidade de interagir com profissionais da imprensa que reconhecidamente cobrem com qualidade as questões sociais brasileiras também foi elogiada pelos alunos.


Na opinião de Luiz Motta, não são somente os alunos que tiveram uma avaliação positiva da disciplina. Em reunião do Conselho Consultivo do Programa InFormação, do qual ele é membro, o professor ressaltou: ‘Houve uma procura enorme, os alunos que estão cursando essa disciplina hoje estão satisfeitos, o interesse em discutir essas questões são enormes e para nós, professores, isso é muito gratificante. A compreensão e a adesão que tenho encontrado entre os colegas que converso sobre isso é igualmente significativa. A receptividade no âmbito da universidade é grande, as pessoas já começam a ligar, querer saber, ainda que não tenhamos divulgado a disciplina no nível em que acho necessário – na própria universidade, ela é muito pouco conhecida. Podemos fazer mais porque cada uma das aulas é notícia em si, de acordo com os valores tradicionais, porque são aulas de alta compactação de informação e, ao mesmo tempo, de provocação e representação de sugestões.’


Ampliando horizontes


A opinião de Motta também encontra repercussão entre os próprios alunos. ‘Faltava uma disciplina como esta. Espero que continuem. O curso deu uma verdadeira noção da situação da cobertura acerca dos temas sociais, o que é extremamente importante para a minha formação’, diz Ana Carolina Oliveira, 19 anos, aluna do curso de Jornalismo e monitora da disciplina. Seu colega Flávio Augusto Silva, 18 anos, calouro de Jornalismo na UnB, considera a disciplina ‘fundamental’ para o currículo. ‘Ela constrói uma visão diferente; ressalta a importância do jornalismo social competente’, analisa.


Se para os alunos de Jornalismo, o conteúdo de Leitura Crítica dos Meios/Crítica da Mídia agregou aspectos tradicionalmente excluídos do processo de formação, os estudantes de outras áreas enfatizam os ganhos em termos da ampliação da capacidade de entendimento sobre o funcionamento da mídia. Cristhian dos Santos Camilo, 31 anos, aluno de História, relata que a experiência o ajudou a compreender melhor a abordagem dos órgãos de imprensa. O depoimento de Jamila Santos, 21 anos, graduanda de Serviço Social, reforça esta idéia: ‘A disciplina me ajudou a observar as reportagens, a ler os fatos e a pensar na forma como o repórter escreveu; perceber que ele falou sobre este assunto, mas deixou a desejar naquele outro aspecto’.


Márcio Campos e Silva, 21 anos, aluno de Medicina aponta que a disciplina Crítica da Mídia teve impacto sobre a sua vida profissional. ‘Vai além daquilo que eu poderia esperar. O convívio diário com médicos e estudantes de Medicina me levou à percepção de que somos muito alienados em relação ao que se passa no resto do País, no mundo. Só nos interessa a realidade em que vivemos, a da doença. No entanto, não se pode encarar a Medicina de uma maneira tão simplista, já que o processo de promoção de saúde não se resume àquilo que realizamos nos consultórios. O modo como encaramos a vida e o exemplo que passamos às pessoas, tudo isso conta. Portanto, é essencial que o médico saiba se informar, ler um jornal ou uma revista com a capacidade de dizer se é um conteúdo de qualidade ou não.’


Já Esdras Almeida, que é aluno do curso de Psicologia da UnB e cursou a disciplina no segundo semestre de 2006, ao mesmo tempo em que elogia, também cobra aprimoramentos na proposta: ‘A iniciativa é ótima, principalmente por ser interdisciplinar. Sugiro que os palestrantes respeitem mais o tempo de fala para que haja um espaço para discussão, estimulando os alunos a se envolverem mais com o conteúdo.’


Para os futuros jornalistas, a experiência pode representar uma influência relevante nos seus rumos profissionais. O calouro Flávio Silva, por exemplo, conta que pretende, por meio do jornalismo, ‘ajudar a escrever o mundo’, levando informações de todos os tipos às pessoas, a fim de colaborar para construir uma humanidade melhor. Contudo, a área social não fazia parte do seu leque de opções. ‘Nunca considerei a possibilidade de me tornar jornalista da área social, mas o interesse cresceu bastante durante este disciplina, porque ela derrubou preconceitos e trouxe conhecimentos interessantes.’


Já para Ana Carolina, o fato de ter cursado a disciplina reforçou sua escolha profissional. ‘Estou fazendo Jornalismo somente para isso: ser uma jornalista social. É esta responsabilidade social que me faz ser apaixonada pela profissão que escolhi. Quero trabalhar nessa porque certamente é esta parte que precisa ser pautada e desenvolvida no Brasil. Precisamos falar pelos excluídos ou dar voz para que eles falem.’


Novos paradigmas


O entendimento sobre o trabalho do jornalista apresentado por boa parte dos estudantes em início de graduação nos remete às reflexões do Prêmio Nobel, Amartya Sem. Em um discurso proferido à Assembléia-Geral do International Press Institute, em 2001, o economista indiano discorreu sobre os vínculos entre desenvolvimento e imprensa livre. Para Sem, na medida em que possibilita a livre expressão e a comunicação entre seres humanos, a mídia desempenha um papel na formação de valores coletivos e individuais, ao promover uma discussão pública sobre os diferentes conceitos e visões de mundo. Além disso, destaca o indiano, a imprensa atua como um fator de proteção dos cidadãos, tanto ao ouvi-los quanto ao dar voz a eles.


Essas duas funções se somam ao aspecto informativo da imprensa e ao seu papel de controle social, que pode contribuir diretamente para criar um ambiente de pressão política no qual o governo sinta-se obrigado a responder às diversas demandas da sociedade. Na opinião do economista, se o jornalismo não funcionar dentro desses parâmetros, o desenvolvimento – entendido como um processo intrinsecamente relacionado à qualidade de vida das populações – não se materializa.


Nesse sentido, está cada vez mais presente no cenário internacional a concepção de que o jornalismo de qualidade pode colaborar fortemente com os processos de desenvolvimento das nações. E isso pode ser dar, como vimos, de várias formas: ao oferecer informações contextualizadas sobre as questões pertinentes ao paradigma do desenvolvimento humano; ao agendar os assuntos que prioritariamente deveriam estar no rol de preocupação dos decisores públicos e formadores e opinião; e também ao fiscalizar e monitorar as ações dos governos e outros atores sociais.


Entretanto, assumir tal responsabilidade enquanto instituição democrática exige do jornalismo contar com profissionais bem preparados. Para Veet Vivarta, secretário-executivo da ANDI, essa condição pode ser considerada praticamente tão central quanto a liberdade de imprensa: ‘em sociedades tão desiguais quanto a nossa, o direito à livre expressão de idéias deve necessariamente estar associado a uma ação socialmente responsável por parte dos meios de comunicação – o que só ocorrerá a partir de uma decisão institucional das empresas e de jornalistas capacitados a manejar minimamente os conceitos e informações relacionados às estratégias e políticas que podem embasar um desenvolvimento sustentável e inclusivo’, aponta.


Qualificar para quê?


Nesse sentido, o investimento na formação dos futuros jornalistas e comunicadores, por meio de iniciativas como a disciplina Leitura Crítica dos Meios/Crítica da Mídia, é uma estratégia central para a qualificação da cobertura sobre as questões sociais e para a consolidação de um campo de atuação que, atualmente, ainda é incipiente. Na visão de uma das palestrantes do primeiro semestre, a oficial de Comunicação do Unicef, Rachel Mello, a disciplina ‘coloca os debates sobre os temas sociais num novo patamar’, ajudando a ‘abrir a cabeça’ desses estudantes. ‘Durante todo o curso, eles vão estar mais atentos e mais bem preparados para buscar informações, ‘navegarem’ por outros departamentos da universidade de forma a encontrar outras visões de mundo, mais complexas, mais amplas’, diz Rachel.


O coordenador do curso, Luiz Motta, aposta que o impacto vai além da formação individual. Os estudantes que tiverem ‘o lustro da disciplina’, afirma, irão atuar como agentes de mudança no currículo como um todo. ‘Aos pouquinhos, o tema vai entrar nas outras disciplinas por pressão dos alunos e até por sensibilidade dos professores. A gente não está apenas formando um grupo de alunos. Estamos contaminando a Faculdade inteira com esse pensamento, essa orientação. Isso terá um reflexo’, analisa ele.


Um fator que favorece esse impacto é o fato de a disciplina estar sendo oferecida no início da graduação, no primeiro semestre. ‘O aluno que conhece esses conteúdos, nunca mais vai esquecer. Ele é diferente do aluno que não fez a disciplina. Nós falamos sobre aspectos que utilizamos no dia-a-dia, como direitos ou desenvolvimento humano. São coisas que tocam as pessoas e os alunos estão marcados por isso.’


Nova cultura profissional


O raciocínio de Vicente Faleiros, outro colaborador da disciplina, segue uma linha semelhante. ‘O impacto é o próprio conteúdo, pois o que a gente recebe na formação, passa para o resto da vida’, analisa a partir de sua experiência como professor da Universidade Católica de Brasília (UCB), pesquisador da UnB e também como coordenador do Centro de Referência e Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria).


Para ele, a disciplina Leitura Crítica dos Meios/Crítica da Mídia representa uma estratégia importante no sentido de despertar o interesse dos futuros jornalistas para a área social, ainda desprestigiada pela mídia. ‘Há um grupo mais interessado em economia ou política e as questões sociais ficam um pouco de fora da pauta. Não se vê nenhum comentarista de políticas sociais, mas há comentaristas de economia e política.’


Mais do que despertar interesse pela cobertura dos temas sociais, José Geraldo de Sousa Junior, professor da Faculdade de Direito da UnB e palestrante do curso, acredita que a disciplina pode favorecer a criação de uma nova ‘cultura da profissão’, em que o impulso pela busca da notícia não implique relegar a cobertura das questões sociais a um plano secundário. É por esse tipo de cultura, continua Sousa, que a perspectiva dos direitos acaba sendo desqualificada pela imprensa. Ele cita como exemplo a maneira como vêm sendo tratados os direitos humanos. ‘Uma série de políticas de emancipação que mudariam a lógica da sociedade são colonizadas, carnavalizadas, recebem um discurso de desqualificação’, analisa.


O arquiteto e urbanista Claudius Ceccon, um dos criadores do Pasquim e atualmente diretor do Centro de Criação da Imagem Popular (CECIP), ministrou um dos módulos da disciplina já no seu segundo semestre. Claudius, convidado a abordar a relação entre as questões sociais e outros formatos midiáticos para além do jornalismo, comenta a sua participação na iniciativa: ‘A experiência foi muito interessante já que o grupo de estudantes se mostrou extremamente receptivo, simpático e interessado. A disciplina possibilita que esses estudantes tenham uma visão diferenciada e crítica da profissão que estão escolhendo. Particularmente, por ter trabalhado em redações de jornal desde a adolescência, sinto-me à vontade para fazer uma série de afirmações, ser crítico e explicar quais as deficiências e os pontos a serem trabalhados na cobertura de temas da agenda social’.


A formação dos alunos de Jornalismo para lidar com as problemáticas sociais e da ordem do direito e da cidadania pode resultar, portanto, no surgimento de profissionais mais capazes de cobrir essas questões com o nível de complexidade que exigem, contribuindo assim para fomentar o debate público.


Desdobramentos


A disciplina Leitura Crítica dos Meios/Crítica da Mídia faz parte de uma estratégia maior da ANDI no sentido de inserir as temáticas relativas à área social nos currículos universitários e, conseqüentemente, nas agendas dos professores responsáveis pelas disciplinas. A idéia é que Instituições De Ensino Superior de várias partes do País também passem a oferecer cursos sobre a cobertura de políticas públicas sociais.


Conforme está explicitado no documento que orienta a política da ANDI de relacionamento com o Ensino Superior, a difusão dessas disciplinas poderá criar um ‘círculo virtuoso’: aumentará o número de alunos e professores interessados no tema e a necessidade de bibliografia sobre o mesmo e, por conseguinte, a produção e publicação de trabalhos acadêmicos.


Tal expectativa já tem encontrado correspondência nos resultados gerados pela iniciativa da ANDI em parceria com a Universidade de Brasília. A disciplina da UnB começará, na segunda quinzena de março de 2007, seu terceiro semestre de existência e o objetivo do professor Luiz Motta é fazer uma inserção cada vez mais orgânica com outras disciplinas da Faculdade de Comunicação. Nesse sentido, uma idéia é abrir o curso para alunos de disciplinas técnicas mais avançadas. ‘Eles podem fazer a disciplina como repórteres, podem fazer matérias sobre os conteúdos das aulas para os jornais da Faculdade’. Essa é, de acordo com Motta, uma maneira de repercutir e divulgar internamente a experiência.


Na mesma semana, a Universidade Federal do Rio de Janeiro dará início a iniciativa semelhante. O professor Evandro Ouriques, da UFRJ, explica as razões da implementação da disciplina no curso de jornalismo da sua universidade: ‘Criamos esta disciplina, na UFRJ, pois sustentamos no NETCCON um programa acadêmico que investiga as relações entre a não-violência e o vigor da experiência de comunicação, da auto-construção da cidadania e do desenvolvimento socioambiental. Assim, queremos estimular nos alunos uma consciência crítica e construtiva a respeito da cobertura dada às dramáticas questões sociais brasileiras: de maneira a que eles, desvitimizando-se, assumam suas responsabilidades pessoal, histórica e ética frente a si mesmos e a esta sociedade que clama pela transformação de suas crenças e valores, de seus estados mentais, de sua atitude perante a vida’.


Ainda segundo Ouriques, a criação da disciplina apresenta resultados antes mesmos de oficialmente inaugurada: ‘em relação a este semestre, as vagas estão esgotadas, já há uma fila para o próximo e temos também inscritos de outras universidades e empresas de comunicação. Estamos avaliando a possibilidade de fazer desta disciplina também uma atividade de extensão, de maneira a que possamos contribuir para o desempenho de qualquer pessoa e/ou profissional’.


A Faculdade Social da Bahia, a partir do empenho do professor Walter Garcia, também se inspirou na disciplina realizada pela ANDI e UnB. ‘O desenvolvimento da disciplina Mídia e Políticas Públicas pela faculdade foi um sucesso. No intuito de ampliar a abrangência do programa, decidimos não restringir a disciplina apenas ao campo teórico. Para melhorar o entendimento dos conteúdos dados em sala por mim e por diferentes palestrantes, abrimos amplas discussões sobre os assuntos, incentivamos debates internos, analisamos as matérias produzidas por jornais locais e instigamos os alunos a produzirem reportagens, evitando os deslizes cometidos pelos colegas já profissionais. Após o primeiro mês de aulas, alguns reflexos já puderam ser sentidos. As matérias produzidas pelos alunos já apresentavam novas preocupações. As reportagens, sem dúvida, ficaram mais profundas, melhor contextualizadas e mais críticas. Ao final do semestre não foram poucos os que me procuraram para destacar que sentiam pena dos alunos que haviam se formado sem entrar em contato com o conteúdo e que haviam saído da faculdade sem saber como e o quanto a mídia é capaz de influenciar na criação de políticas públicas necessárias’.


Estratégia mais ampla


Paralelamente à divulgação da disciplina propriamente dita, a estratégia desenvolvida pela ANDI e pela Fundação W.K. Kellogg para trazer os temas sociais para os currículos e as agendas das faculdades de comunicação inclui outras atividades. Uma delas é o lançamento, em 2007, de um livro-texto, em dois volumes, que irá abordar os vários aspectos que envolvem a cobertura das questões sociais. A idéia é que a publicação seja composta por artigos relativos aos próprios módulos da disciplina, funcionando como um suporte para que instituições de ensino possam colocar o projeto em prática de acordo com suas particularidades.


Outra iniciativa, também a ser realizada em 2007, é um concurso de monografias de graduação, dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre comunicação e a agenda social brasileira com o objetivo de estimular alunos e docentes de todas as instituições de ensino do País a pensar, com profundidade, nessas questões.


Além disso, outra frente do projeto prevê a oferta de bolsas para trabalho de conclusão de cursos que envolvam a interface mídia/agenda social. No primeiro semestre de 2007, foram divulgadas as 27 bolsas inicialmente oferecidas, contemplando alunos de 19 Instituições de Ensino Superior, localizadas em 12 estados brasileiros. Finalmente, fechando o ciclo de atividades, a ANDI pretende realizar um evento que terá como objetivo refletir sobre a produção acadêmica relacionada à mídia, infância e adolescência.


Todas as iniciativas que integram o Programa InFormação estão registradas em um portal interativo de serviços voltado para a comunidade acadêmica.

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Jornalista; reportagem produzida para a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI)