A coluna de Mário Prata no Estado de S.Paulo (‘O repórter e o linotipo’, 7/4/04 ) suscita uma boa discussão argumentativa, apesar de o tema fulcral em si causar-me espanto por inadvertidamente, até hoje, levantar a hipótese de se discutir a obrigatoriedade do diploma de jornalista. Conheço grandes profissionais que desempenham o papel de jornalistas com talento e capacidade não adquiridos nos cursos. Profissionais que conquistaram o respeito na profissão diante de uma inegável habilidade e profundo conhecimento de causa. Assim como conheço, talvez em bem maior número, jornalistas que chegam ao mercado de trabalho depois de concluírem a graduação superior que – se comparados àqueles citados anteriormente – não seriam dignos de ostentar o título.
É evidente que, como em qualquer profissão, há bons e maus profissionais. E o jornalismo, como a maioria das carreiras, nasceu antes da sua regulamentação. Como as demais, a necessidade de se instituir um ensino de nível superior (portanto acima das habilidades técnicas) veio para legitimar a classe, com os pressupostos teóricos que justificam a sua incursão entre as ciências humanas. Assim não fosse, bastaria o jornalismo ser considerado um ofício. Por isso é fundamental exercitar o ‘pensar’ jornalístico, não apenas o saber.
Afinal, é inegável que, com a orientação de profissionais considerados ‘velhos de guerra’, num ambiente em que seja permitido aprender, é possível formar uma pessoa para o ‘ofício’ do jornalismo. Não seria de se estranhar se, em pouco tempo, aqueles que demonstrassem razoável capacidade de aprendizado pudessem exercer a prática sem ter passado por uma universidade. Do mesmo modo que, por exercícios de repetição, outras pessoas poderiam extrair dentes, engessar pernas, construir casas, legislar, advogar, dar aulas, examinar a visão… entre tantas infinitas capacidades e habilidades que se pode desenvolver com uma boa instrução prática.
Viagem saudosista
A questão está acima deste exercício mediano da função. Já que o argumento que sustenta o texto de Mário Prata é o desconhecimento da palavra linotipo, parece-me raso demais e irresponsável condenar as instituições de ensino em detrimento de duas alunas que realmente não honram as preocupações mínimas em se conhecer a trajetória do jornalismo até os dias de hoje. Seria interessante – e jornalístico – sustentar tal argumentação com base empírica, comprovada em pesquisas que apontassem a falência do ensino de Jornalismo no Brasil, assim como a OAB fez recentemente um ranking das piores faculdades de Direito do país. Aí os argumentos ganham dados estatísticos e, portanto científicos, para uma posterior cobrança social de resultados.
Outro ponto levantado na coluna se refere a um possível desconhecimento de algumas regras gramaticais entre os jornalistas recém-formados. Considero superficial a abordagem, uma vez que aí seria preciso questionar não só o ensino superior, como toda a base educacional do país, e chegaremos a questões políticas e sociais que, para mim, nem cabem tão fugazmente numa coluna de jornal. São muito extensas e complexas para a minimista dicotomia vírgula vs. reticências.
Ainda em uma seqüência de ponderações a respeito do ‘novo’ jornalista, Mário Prata faz uma viagem saudosista aos tempos do romantismo jornalístico de meados do século passado. De fato, há que se concordar com o articulista que muito da essência romântica, filha do mito da transparência, herdeira da Filosofia das Luzes, se perdeu. Perdeu-se mesmo, confundida entre o fetiche da velocidade das novas mídias e a necessidade de não perder o timing de uma agenda setting social calcada num sem-número de releases que bombardeiam as redações. Neste ponto, o artigo merece atenção.
Resultado de vida
Retomando a questão da legitimidade da profissão, parece-me inocente também ignorar que existem centenas de veículos de comunicação e centenas de jornalistas que são antiéticos e prestam um desserviço à profissão. Claro que não se pode perder o senso crítico. Como não se pode deixar de mencionar que existem outras centenas de médicos, cirurgiões, engenheiros, juristas, advogados, entre outros mais, que são grandes fraudes e, muitas vezes, criminosos que envergonham a categoria. Volto a dizer, a questão está acima de discussões superficiais.
O fim da obrigatoriedade do diploma não pode ter uma abordagem tão periférica, esquecendo-se de mencionar como foi que toda esta discussão começou; sob quais pretextos políticos no favorecimento das concessões e em que pretenso lastro de impunidade estaria o cerne deste despropósito. Era de se esperar que até mesmo os intelectuais que não passaram pela faculdade tivessem condições – já pelo próprio aprendizado no tempo – de discernir entre incoerente e coerente, não com poder de julgamento, mas usando apenas de bom senso.
Um jornalista não se faz só de prática, nem só de teoria. Um jornalista verdadeiramente se faz de conhecimento, técnica, inteligência, ética e, sobretudo, humanismo. Há muito mais entre saber o significado da palavra linotipo e ter anos dedicados ao trabalho. Talvez, o que Mário Prata não tenha percebido é que há uma sutil diferença entre fazer jornalismo e ser jornalista. E este último, na minha opinião, só pode ser o resultado de vida daqueles que passam, sim, pelos bancos da escola onde os preceitos das ciências humanas são ensinados, mas sabem, acima de tudo na própria vida, a distinção fundamental que separa um homem de ofícios de um verdadeiro profissional.
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Jornalista, 34 anos