Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Privação de alimentação ou anorexia?

A imprensa – até mesmo aquela ‘fantástica’ – tem falado e discutido acerca da anorexia. Um assunto de saúde pública, sem sombra de dúvida, importante. Atrás dessa temática estão coisas, bem o sabemos, como a pouco falada corpolatria – o cuidado excessivo para com o corpo –, chegando àquele comércio de produtos de emagrecimento que produzem cifras astronômicas.

Em suma – arriscando um pouco um marxismo –, a transformação do corpo em mercadoria a ser consumida, o que exigiria do lado dos produtores – os donos dos corpos – um ‘padrão de qualidade’, uma ‘especificação de qualidade’; e a conseqüente produção, do lado dos consumidores, de uma mentalidade’ – poderíamos até dizer ‘ideologia’ – na qual o consumo de corpos se torna um imperativo. Claro que há mais coisas dentro disto. Se há um padrão de corpos a serem consumidos – entendam: corpos que vão ser desejados, adorados, venerados, olhados etc. –; há também a angústia e a depressão daqueles que não conseguem se adequar a esse mesmo padrão.

‘Gordinhos’, ‘robustos’, ‘obesos’… Não importa muito se a denominação é leiga, técnica ou erudita. Falo de todo o resto das pessoas que infelizmente sucumbem aos outros ‘apelos’; àqueles do consumo de mercadorias: refrigerantes, chocolates, doces, massas etc.

Poderia continuar traçando os fundamentos para uma exegese psicológica da anorexia, mas outro aspecto me chamou a atenção.

Nem emprego, nem renda

Agora, talvez o leitor se impressione. Uma vez reconhecida a gravidade da anorexia, pensei por um momento no recente fato noticiado sobre a determinação judicial de internar uma jovem da cidade de Feira de Santana, no estado da Bahia. Pensei no sofrimento dos pais, na preocupação dos psicólogos dos CAPs (centros de atenção psicossocial) e da própria justiça que, em defesa da ‘integridade da pessoa’, resolveu deliberar acerca do assunto. Entretanto – e esta era a finalidade do meu preâmbulo – precisamos contextualizar mais esta história.

Estamos em Feira de Santana, a primeira grande cidade próxima à terceira maior cidade do país que ocupa a posição de campeã nacional do desemprego: trata-se da ‘Cidade da Bahia’, como já fora chamada um dia a cidade de Salvador. A cidade de Feira de Santana constitui a porta de entrada para a verdadeira miséria e pobreza que caracteriza o interior da Bahia. De repente, diante de todo o alvoroço – justo – acerca dos distúrbios da alimentação, a imprensa e a ‘opinião pública’ parecem omitir ou pouco atentar para o fato de que, enquanto alguns adolescentes são fagocitados pela lógica da corpolatria e padecem concretamente da mesma, há, por outro lado, uma legião de homens, mulheres e crianças no estado da Bahia que estão privados da alimentação, não por um distúrbio, mas pelo fato concreto de não conseguirem emprego e renda – para falar aqui como os economistas.

Problema fundamental

Numa época em que o marxismo – certamente por culpa dos próprios marxistas – ‘saiu de moda’, um tempo em que ‘questões étnicas’, ‘de gênero’, ou mesmo a da ‘anorexia’ são tidas como prioritárias, acho sem dúvida impressionante como a saudosa ‘questão de classe’ é colocada de lado.

Como a imprensa e todos aqueles que, quer enxerguem ou não, estão envolvidos ativamente nesta situação e que, apesar disto, sequer mencionam a questão da fome. De repente, como que um véu de pudor ou anacronismo parece pairar sobre esta temática. Não se ousa mais falar na obviedade concreta de uma situação que perdura, sempre de maneira crescente, dentro dos estados do Nordeste e também do país como um todo. Para finalizar, mudando um pouco as palavras de Camus: se há um problema sociologicamente fundamental, este seria o problema da fome.

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Químico, psicólogo e mestre em Sociologia, Salvador, BA