A profissão de jornalismo não requer qualificações profissionais’ foi o mote para que a juíza Carla Abrantkoski Rister, da 16ª Vara Cível Federal, suspendesse a obrigatoriedade do diploma para o exercício dessa atividade profissional (ainda que a suspensão da exigência de curso de Jornalismo seja provisória, pois o caso pode chegar ao Supremo Tribunal Federal). E tendo em vista a dimensão dessa decisão para o meio acadêmico e, em especial, para o recém-criado Fórum Mineiro dos Professores de Jornalismo, no sentido de qualificação profissional, entendo ser necessário esclarecer algumas falácias nos argumentos da juíza, a saber:
‘(…) Assim verifico que o art. 13 da referida Convenção consagra a liberdade de expressão e a proibição de qualquer forma de obstáculos ou meios indiretos ao direito de informação, como se verifica com a exigência do diploma de nível superior para o exercício da profissão do jornalista’. ‘(…) tendo em vista que a profissão de jornalista não requer qualificações profissionais específicas, indispensáveis às técnicas (a de Engenharia, por exemplo), em que o profissional que não tenha cumprido os requisitos do curso superior pode vir a colocar em risco a vida de pessoas, como também ocorre com os profissionais da área de saúde (por exemplo, de Medicina ou de Farmácia)’. ‘(…) O jornalista deve possuir formação cultural sólida e diversificada, o que não se adquire apenas com a freqüência a uma faculdade (muito embora seja forçoso reconhecer que aquele que o faz poderá vir a enriquecer tal formação cultural), mas sim pelo hábito da leitura e pelo próprio exercício da prática profissional.’
Primeira falácia: a meritíssima confunde direito de expressão com o exercício da profissão. Qualquer cidadão pode se expressar livremente nas páginas de qualquer jornal em artigo assinado. O direito de expressão é inerente à existência da cidadania em qualquer sistema democrático, sendo válido para todos. Entretanto, o jornalista profissional, ao escrever uma matéria [exceção aos artigos opinativos (aqui, a utilização da expressão ‘opinativo’ não implica fazer alusão à separação dogmática entre opinião e informação, o que seria um ‘sofisma epistemológico’, tendo em vista estudos de autores como Manuel Chaparro, Robert Hackett, Gaye Tuchman, que desmontam essa antinomia)], nos quais qualquer cidadão pode exercer seu direito de expressão), se abstém do exercício de sua liberdade de expressão, em sentido estrito, para tornar-se um profissional ‘da mediação’: apura os fatos, depura fontes, estabelece relações entre os acontecimentos (‘jornalismo cardinal’) e medeia a exposição de diversos interesses e visões nas situações de conflito.
E não estou aqui fazendo apologia à reducionista Teoria do Espelho, segundo a qual o jornalista seria um mero reprodutor asséptico da realidade, portanto, capaz de garantir o rigor da ‘objetividade’ de suas informações, isentas de humanidades (subjetividades), mas defendendo que é obrigação desse profissional apurar com responsabilidade, uma vez que apurar com compromisso ético tem a ver com a explicação equilibrada (o sentido que se utiliza para objetividade) da diversidade de fatos, versões e opiniões transmitidos ao público. Portanto, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Mas tem gente que mistura as coisas.
Mas, voltando à outra coisa, o pressuposto de que a intermediação do jornalista entre o acontecimento e a notícia produzida necessita apenas de técnicas específicas faz, conseqüentemente, do segundo argumento da juíza sua outra falácia: para exercer o jornalismo pode-se prescindir da qualificação, pois, como alega a meritíssima, esse profissional ‘não requer habilidades específicas indispensáveis à coletividade ou que possa colocar em risco a vida das pessoas’, demonstrando, desse modo, que a juíza ignora o caráter singular do conhecimento jornalístico e da natureza complexa da atividade profissional, como conclui a vasta literatura dos estudos do Newsmaking, que fazem uma análise sociológica dos processos de produção das notícias. Mas pior do que a juíza ignorar que há referências ontológicas, epistemológicas e éticas para se praticar o jornalismo é ignorar que, se, por um lado, a mínima exigência de qualificação do jornalista não põe em risco a vida de pessoas, no sentido biológico, pode, todavia, pôr em risco a honra, a dignidade e outros valores que costumam dar sentido à vida de cidadãos, como para os professores e os diretores da Escola Base e para o então presidente da Câmara Ibsen Pinheiro, vítimas do jornalismo desqualificado ou do jornalismo canalha, para tomar emprestado o título do livro de José Arbex Jr.(Casa Amarela, 2003). Mas que coisa, hem?
O perfil das escolas
E, para destacar a última falácia da meritíssima Rister, pelo que sei, talento, competência, formação cultural e ética andam juntos em qualquer profissão, em qualquer ofício, isto é, não é pré-requisito apenas para se exercer o jornalismo, como pressupõe a juíza. Nesse contexto, com todas as dificuldades e limitações, o ensino superior de jornalismo tem o potencial de gerar uma imprensa mais crítica, de levar consciência social às situações indignas, formar profissionais mais proficientes do ponto de vista técnico e mais (cons)cientes de seus valores profissionais e compromissos éticos com os cidadãos. Mas também não vamos confundir alhos com bugalhos, pois é preciso fazer diferença entre diploma e canudo, escolas de boa qualidade e fábricas de títulos, estabelecimentos que vivem para a educação e os que vivem da educação.
Assim, é sintomático que o perfil do profissional vai depender de como as escolas de Jornalismo querem formar os futuros jornalistas, pois o papel de uma instituição de ensino superior não se reduz à capacitação profissional para o mercado, estende-se a formar cidadãos críticos, agentes de transformação social. Ou seja, formação acadêmica e formação profissional não são ‘campos’ de conhecimentos excludentes, mas complementares, de acordo com a concepção de práxis, em Paulo Freire: ‘O modo como funciona sua teoria e o que ela faz mudar lhe dirá melhor o que é sua teoria’.
Isso implica dizer, em termos de mercado de trabalho, que espírito crítico e proficiência técnica são indicadores de remuneração profissional, afinal, de nada valeria à empresa e muito menos à sociedade um jornalista crítico sem a capacidade ético-técnica para se expressar. Entretanto, de acordo com o perfil profissional adotado nessas escolas, certamente a exigência do diploma pode tornar-se ilegítima quando a instituição que confere ao estudante tal documento não disponibiliza conhecimentos práticos e teóricos que, efetivamente, contribuem para o exercício competente da profissão. Aí, sim, a decisão da juíza terá respaldo. Existem, portanto, parâmetros éticos, técnicos e científicos que desafiam o amadorismo para o exercício do jornalismo.
Debate de interesse público
Com efeito, o exercício da profissão não é redutível a um adestramento técnico, segundo os pressupostos pragmáticos tanto da Teoria Funcionalista quanto da Escola de Frankfurt (neste caso, de uma leitura distorcida dos filósofos da Teoria Crítica). Mas é assim que Rister também entende o jornalismo, limitando-o a manuais de redação e a uma ‘ética idiossincrática’. É necessário, portanto, nos desalienarmos dessas generalizações teóricas (mal formuladas) e do senso comum (mal entendido), a fim de refletirmos sobre o perfil moralmente imprescindível e criticamente indispensável desse profissional na contemporaneidade. Assim, jornalista qualificado é aquele que saberia conectar teoria e prática, segundo a noção de práxis jornalística, isto é, aquele profissional que reflete filosoficamente sobre si mesmo, seu trabalho e seu papel político-social numa sociedade democrática (ou democratizante), tendo em vista os conflitos éticos a enfrentar diante de um cenário mundial de mega(con)fusões midiáticas.
Em termos práticos, seria aquele profissional que saberia entender que a decisão da juíza é contrária ao interesse público, uma vez que, ao retirar a exigência mínima de formação profissional, vai comprometer a qualidade de informação divulgada a toda a sociedade. Explicando: teoricamente, na prática profissional, a habilidade técnica não se separa dos princípios ou valores éticos profissionais, pois jornalismo é conflito, e quando não há conflito no jornalismo, um alarme deve soar, nos alerta Eugênio Bucci. Aliás, as teorias construcionistas são válidas ao mostrarem que jornalistas, por meio da construção de notícias, têm grande importância na realização dos fatos sociais presentes, pois torna-se cada vez mais visível o papel ativo que exercemos na construção da realidade social. Daí que compreender esse poder implica conhecer os pressupostos ontológicos, ético-filosóficos, epistemológicos e técnicos do jornalismo, para se refletir quanto à responsabilidade política, social e ética do jornalista, como sugere a Teoria do Gatekeeper.
E, tendo em vista a vocação democrática de sua atividade (e, caso contrário, que soem os alarmes!), o jornalista profissional com boa formação saberia que esse debate, sendo de interesse público, deveria estar na agenda da mídia, a fim de que a sociedade pudesse também questionar sobre essa questão que muito lhe diz respeito. Assim, a partir dessa constatação, esse profissional perceberia que uma forma de se refletir sobre essa ‘falha técnica’ da própria mídia poderia ser explicada por uma outra teoria do jornalismo, que afirma que os meios de comunicação agem sobre seus receptores, mas o fazem associados entre vários outros fatores. E uma das formas possíveis de incidência da mídia (no caso, da omissão) sobre o público é a Teoria do Agendamento, desenvolvida pela sociologia norte-americana, segundo a qual a mídia não é capaz de determinar a maneira como o público pensa, mas condiciona os assuntos sobre o que pensa, definindo a agenda social.
Algo diferente é possível
Explicando: podemos fazer uma ligação do agenda-setting com o não-agendamento da questão do diploma de jornalismo pela mídia, isto é, a não-divulgação de notícias sobre o assunto, a fim de que a sociedade não discuta o tema. Afinal, a questão do diploma também passa pelo problema de controle dos proprietários dos meios de comunicação sobre seus profissionais, uma vez que os empresários da mídia, em sua grande maioria, desejam um descompromisso com um jornalismo profissional qualificado crítico e ético. Com efeito, o desconhecimento do público em geral sobre a decisão dessa juíza faz com que esse assunto seja condenado à inexistência social, reforçando a máxima de que só se torna notícia, de fato, aquilo que é divulgado pela mídia.
Portanto, por todos os motivos acima expostos – a partir da decisão de uma juíza que tomou como pressuposto a separação do jornalismo de sua função política-social e o empobreceu filosoficamente – e com todas as dificuldades e limitações nas condições de ensino em Jornalismo, defendo que a formação superior não é apenas moralmente defensável, como também imprescindível. E se ainda temos muitos obstáculos que desafiam um ensino superior de qualidade, o que deve ser eliminado são os obstáculos, não o ensino. Nesse sentido, por acreditarmos que o ensino de jornalismo pode ser diferente e melhor do que é, foi criado o Fórum Mineiro dos Professores de Jornalismo, a fim de que diretores e coordenadores de escolas, professores, profissionais de imprensa, representantes do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais (SJPMG) e alunos possam debater, refletir, (re)agir, mobilizar, (re)pensar alternativas que contribuam para melhorar as condições de ensino, por meio da teorização da prática profissional (práxis jornalística), que leve em conta o conhecimento singular proporcionado pelo jornalismo (perspectiva epistemológica crítica), que exige o emprego de particularidades técnicas, ética universal mas específica – como demonstra Francisco Karam, em seu livro Jornalismo, ética e liberdade (Summus, 1997) –, além da reflexão sistemática do processo de produção da notícia.
Enfim, na prática, a criação do Fórum Mineiro dos Professores de Jornalismo parte dos princípios da Teoria da Contingência, segundo a qual toda ação social ou evento é sempre uma seleção de um campo de possibilidades, de modo que a realidade poderia ter sido e deve ser diferente. Isso implica dizer que a possibilidade de coerência entre a epistemologia e a doxologia no ensino de Jornalismo pode vir como um desdobramento natural das experiências trocadas durante os fóruns, uma vez que a contingência diz que algo diferente também é possível…
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Jornalista, coordenadora do Núcleo Ensino, Pesquisa e Extensão em Jornalismo do Fórum Mineiro dos Professores de Jornalismo e professora das instituições Newton Paiva/BH-MG e Funcec/João Monlevade-MG