Há pelo menos duas questões distintas que merecem reflexão mais aprofundada no debate sobre a profissão de jornalista e a campanha deflagrada pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) em defesa do diploma. Trato de deixar claro, logo de início, que não pretendo defender nenhuma tese do tipo contra ou a favor. Pretendo, antes, compartilhar com os colegas as inquietações que me ocorrem quando o tema se coloca diante do meu nariz e me obriga a opinar.
A primeira questão que levanto trata da regulamentação da profissão; a segunda, da necessidade de diploma de graduação em jornalismo para a obtenção de registro de jornalista profissional e para a garantia da informação jornalística. No discurso que ora se apresenta, capitaneado pela Fenaj e por sindicatos de jornalistas de todo o Brasil, os dois aspectos se confundem de forma a sugerirem que uma coisa depende da outra.
Um ‘tiro no pé’
De todos os argumentos que têm sido usados em favor da obrigatoriedade de diploma para o exercício do jornalismo, o que mais me causa desconforto é, sem dúvida, o da qualidade. O discurso de defesa adota a idéia de que uma profissão regulamentada, exercida por profissionais diplomados especificamente em jornalismo, é capaz de oferecer mais qualidade às informações que a sociedade precisa para viver.
Ocorre que o discurso da qualidade, da forma como tem sido usado, pode causar um efeito perverso nos objetivos que seus autores pretendem. Ao atrelar diploma à qualidade da informação e do jornalismo, os defensores dessa idéia não percebem que estão dando um ‘tiro no pé’, para usar uma expressão popular e bem apropriada para o momento. Não é novidade que o jornalismo tem sido colocado em xeque nos últimos meses, principalmente depois das últimas eleições.
A questão central
Por todos os lados, cidadãos comuns, que não sabem o que é, como fazer ou para que serve um lide, duvidam da boa-fé dos que oferecem informação diária seja por que meios for. A explosão de blogs – e há muitos ruins e sem um mínimo de qualidade – fez a sociedade perceber que as informações estão disponíveis em todo lugar e que qualquer um pode se apropriar delas e transmiti-las para que outros a conheçam.
O discurso da Fenaj sugere que a regulamentação e o diploma de jornalista garantem qualidade para o exercício profissional. Mas, a realidade é que quem está na linha de produção (perdoem-me a expressão) da notícia sabe que o diploma não dá qualquer garantia. E nessa hora entra em cena um outro ponto, colocado em segundo plano pelos que defendem o diploma de graduação em jornalismo, que é a formação do jornalista, esta, sim, no meu ponto de vista, a questão central de toda essa polêmica.
Instância mediadora da realidade
Quando se compara a formação do jornalista à formação de outros profissionais, os argumentos se tornam mais frágeis ainda devido às condições materiais distintas em que as profissões de médico e advogado, por exemplo, são exercidas. Noutro dia, alguém me perguntou: ‘Você deixaria um médico prático, sem diploma, retirar seu apêndice?’ Disse: ‘Não.’ Mas acrescentei que leria o que um médico escrevesse sobre apendicite, leria as divagações sobre os motivos pelos quais Deus teria inventado o tal órgão e o colocado dentro do corpo humano.
A questão da formação, e não apenas a da necessidade de diploma, nos remete ao contexto em que estamos discutindo a atividade do jornalista e o próprio jornalismo no país, entendido como um campo relativamente autônomo, uma instância mediadora da realidade. Conheço vários colegas que, registrados como jornalistas antes da lei que regulamentou a profissão, recentemente voltaram às faculdades para cursar Direito, Letras, Sociologia. Nenhum deles optou pelo curso de jornalismo.
A formação do cidadão
Há outros casos, de colegas mais jovens que, atuando há algum tempo como radialistas, foram às faculdades para fazer o curso e poder exercer o trabalho que já faziam (alguns com muita competência), agora de forma legal e devidamente registrados.
A discussão sobre a regulamentação da profissão e sobre a necessidade do diploma, sobre os dilemas éticos que o jornalismo enfrenta na atualidade, sobre as condições materiais em que se exerce a profissão, sobre a formação dos cidadãos no nosso país – e incluo aqui a formação no sentido de que ela não se dá apenas no ambiente escolar ou universitário – e sobre as mudanças tecnológicas, sociais, políticas e econômicas dos últimos anos não podem ser dissociadas.
Bagagem teórica
Quando isso ocorre, como acredito que tem ocorrido agora, as contradições escorregam para debaixo do tapete e se juntam a anos de pó e de esquecimento. Penso que a grande bandeira por mais qualidade na informação é a bandeira da formação do profissional. Dizer que o jornalista precisa de formação humanística para ser um bom profissional é dizer o óbvio ululante. Acreditar, no entanto, que em quatro anos alguém irá conseguir essa formação chega a soar ingênuo demais para se constituir em um bom argumento.
Um profissional formado em sociologia terá uma bagagem teórica em quatro anos muito superior à de um jornalista. O sociólogo pode não saber fazer um lide, editar uma página, fazer uma suíte ou dar títulos e subtítulos ao material. Mas, não tenho dúvida de que pode ser valioso na hora de estabelecer uma relação mais profunda com o que está na mira da cobertura jornalística.
Qualidade e boa informação
Já devem estar perguntando, se é que alguém chegou até este ponto do texto, se estou, enfim, defendendo que sociólogos, filósofos ou psicólogos devem ser jornalistas. Defendo que cada um deve exercer a profissão para a qual se qualificou. Mas, essa discussão de ser contra ou a favor é reducionista demais e esvazia a defesa da profissão e a luta por formação, esta sim, uma luta que não diz respeito apenas a jornalistas, mas a toda a sociedade.
A sociedade mudou, o contexto mudou. Não existe mais espaço para o jornalismo romântico de outrora, mas também não existe espaço para sectarismos que impedem que se pense honestamente sobe o assunto. Dizer que o diploma garante mais qualidade da informação não se sustenta depois de uma breve olhada nos noticiários nossos de cada dia. E não se trata de incompetência dos que estão por trás das notícias. Trata-se de uma impossibilidade. Não há jornalismo de qualidade, simplesmente porque se perdeu a medida do que sejam qualidade e boa informação.
Derrotas insuperáveis
O jornalismo encontra-se entre o declaratório, o estatístico, o serviço (???) e o espetáculo do cotidiano. As tragédias mais recentes no Brasil – a queda do Boeing da Gol e o desabamento das obras do metrô de São Paulo – mostraram sem máscaras (perdoem-me a generalização) o quanto o jornalismo pode desinformar na sua ânsia de preencher espaços vazios (na tela ou no papel).
O cerne da questão não são os cursos de jornalismo, que proliferaram como moscas nos últimos cinco ou seis anos, apesar de acreditar que há um problema relacionado a eles, sim. O cerne da questão é o diploma, é a formação. Concordo com o professor Bernardo Kucinski quando contesta o argumento de que o jornalismo praticado antigamente não era profissional.
No artigo intitulado ‘Declínio e morte do jornalismo como vocação’ (Jornalismo na era virtual: ensaios sobre o colapso da razão ética, Editora Fundação Perseu Abramo, 2005) ele afirma que o resultado de instituir a obrigatoriedade dos cursos de jornalismo no Brasil é constrangedor. Kucinski acredita que ao deixar de ser exercido por vocação e paixão, o jornalismo passou a ser apenas mais uma profissão e a auto-estima do jornalista sofreu derrotas irrecuperáveis.
Uma profissão de passagem
Nas palavras de Kucinski, o jornalista não luta mais pela verdade e pela informação de qualidade; ele luta para garantir seu emprego. E lembra a história do jornalista Jayson Blair, o repórter demitido do New York Times por ter inventado histórias e as narrado como se fossem verdadeiras. A questão da formação do jornalista e da qualidade do jornalismo não pode ser pensada sem que se leve em consideração que o profissional de hoje precisa lançar mão de estratégias de sobrevivência para permanecer no mercado, altamente competitivo e com salários cada vez mais baixos.
O resultado disso tem sido verificado por todos os que estão há algum tempo na profissão e é bem definido por Kucinski em seu artigo: ‘O jornalismo é, hoje, uma profissão de passagem, da qual a maioria procura fugir logo que consegue um emprego mais bem remunerado, menos estafante e menos controlado. Os tempos de hoje não são feitos para os jornalistas de vocação’.
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Jornalista, mestre em educação e professora do curso de jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo