Quando a saudade invade o coração da gente
Pega a veia onde corria um grande amor
Não tem conversa nem cachaça que de jeito
Nem um amigo do peito que segure o chororô
Que segure o chororô
Que segure o chororó
Como na música Lembrança de um beijo, de autoria de Accioly Neto e interpretada pelo cantor Fagner, não tem conversa, nem cachaça que dê jeito, nem um amigo do peito que segure o chororô da Fenaj e seus sindicatos afiliados em virtude da derrota no Supremo Tribunal Federal que, por 8 x 1, afirmou que a exigência do diploma universitário de jornalismo para o exercício da profissão não foi recepcionada pela Constituição de 1988.
No Senado, o senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE) colheu 30 assinaturas para uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) alterando a redação do artigo 220 para que a obrigatoriedade do diploma seja recepcionada pela atual carta magna. Para que ela valha, ela precisa ser aprovada por 49 senadores (60%) e 308 deputados (3/5), em dois turnos em cada casa, ou seja, quatro votações. Pois para uma alteração da Constituição ser votada, primeiro precisa passar por várias comissões, (CCJ, especial etc.) nas duas casas, isto se não houverem medidas provisórias trancando a pauta (coisa que sempre acontece). Mas ela tem caráter terminativo e pode ser arquivada, pois esbarra numa cláusula pétrea (que não pode ser alterada) tangente à liberdade de expressão.
‘Reserva de legitimação’
É triste ver que a instancia máxima sindical dos jornalistas defenda que a liberdade de imprensa e de expressão seja apenas para aqueles que cursaram o curso superior de Jornalismo. É sabido que no Brasil o acesso ao nível superior ainda é para poucos, apesar das cotas nas universidades e bolsas de estudos através do ProUni. Nem todas as pessoas podem pagar um curso de jornalismo ou arcar com um bom cursinho para poder tentar uma vaga em jornalismo numa USP, UFRJ ou UFSC. Por trás das alegações que a obrigatoriedade do diploma garante um jornalismo ético e de qualidade e que os barões da mídia são os grandes patrocinadores da desregulamentação, existem outros interesses muito perversos.
Os fenajistas se escoram numa legislação das trevas para preservar uma reserva de mercado, que só é interessante para manter funcionando faculdades (ou cartórios) caça-níqueis que estão mais interessadas em dar o canudo em 48 prestações do que dar um embasamento técnico, humanístico e cultural. São bacharéis em comunicação social – habilitação jornalismo no papel, mas nunca serão jornalistas na prática, muitos deles enveredarão para outras áreas, inclusive o serviço público.
Eles têm medo de concorrer com profissionais de outros setores da sociedade, tais como economistas, historiadores, filósofos, cientistas sociais, geógrafos ou até mesmo aqueles que nunca passaram pelos bancos escolares mas que adquiriram cultura por conta própria e que têm muito mais pendor e talento para o jornalismo do que aqueles que passaram por uma academia.
Em recente entrevista, a diretora da ECO/UFRJ, Ivana Bentes de Oliveira disse que ‘o diploma represente uma reserva de legitimação dos sindicatos’. Em outras palavras, ela disse que os sindicatos existiam tão-somente para fiscalizar o cumprimento da exigência do diploma de jornalista. E esses mesmos sindicatos tinham poder de polícia, a ponto de denunciar e mandar prender o cidadão que exercesse ilegalmente a profissão de jornalista.
‘O modelo de Mussolini’
A conduta cerceadora e corporativista da Fenaj foi severamente condenada pelo procurador federal André de Carvalho Ramos, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, autor da ação civil pública pelo fim da obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício da profissão. Na peça, ele diz:
‘No caso dos jornalistas, contrariando o que seria de se esperar de categoria tão oprimida no passado, é justamente isso o que ocorre. Justamente da categoria que mais violada foi pela censura e pelos atos ditatoriais provém a defesa do uso do diploma como condição para livre manifestação de idéias e pensamentos.’
Realmente é paradoxal ver que a categoria que mais comeu o pão que o diabo amassou no período ditatorial se escora numa lei desse período para sustentar privilégios corporativos. No regime militar, muitos jornalistas foram presos, torturados e até assassinados. Veículos de comunicação foram censurados e até fechados em virtude de fazerem oposição à ditadura.
No artigo ‘O fim do diploma para o exercício das profissões’, o antropólogo George Zarur aponta o que é realmente o papel da organização sindical:
‘Ora, a organização sindical a partir de privilégios conferidos por diploma é tudo menos organização de classe. Organização de classe para fins políticos é aquela que decorre das necessidades concretas decorrentes da divisão do trabalho e, não, de imposições artificiais nascidas de uma relação de poder com o estado. A organização de profissões a partir de privilégios legais é uma sobrevivência da organização sindical do Estado Novo, inspirada no modelo da Itália de Mussolini.’
Bacharelismo hipócrita e academicismo elitista
O jornalismo agora pertence a toda a sociedade, e não a uma corporação de ofício. Estamos na Idade Contemporânea, mas os sindicalistas ainda estão na Idade Média. Não querem abrir mão dos seus feudos e estão inconformados pelo fato de que seus títulos de nobreza(os diplomas de jornalismo) não serão condição suficiente para freqüentar a corte do jornalismo. O ministro Carlos Ayres Brito, em seu voto favorável pela derrubada do diploma, reforçou essa certeza:
‘O regime jurídico constitucional da liberdade de imprensa é exclusivo, não há como fazer a menor comparação com qualquer outra matéria versada pela Constituição. Isso porque subjacente à liberdade de imprensa estão em jogo superiores bens jurídicos; basta pensar na liberdade de manifestação do pensamento, na liberdade de informação, na livre expressão da atividade intelectual, da atividade científica, da atividade artística e da atividade comunicacional. Daí porque a imprensa é versada em capítulo próprio, com o nome ‘Da Comunicação Social’. Ou seja, é uma comunicação que não se dirige a ninguém em particular, nem mesmo a um determinado grupo de pessoas, mas a toda a sociedade. Ao número mais abrangente possível de destinatários.’
Fica claro que os apólogos do ‘clubinho douto’ nunca leram ou nunca ouviram falar em Daniel Cornu, professor do Instituto de Jornalismo e Comunicação da Universidade de Neuchâtel, de Lausanne, e diretor do Centro Franco-Suíço de Formação de Jornalistas, de Genebra, em seu livro Ética da Informação. Tradução de Laureano Pelegrin. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1998, pág. 19:
‘O jornalismo é uma `profissão aberta´, que não exige formação específica ou diploma. Sua definição é tautológica: é considerado jornalista quem exerce sua atividade principal na imprensa escrita ou nos meios de comunicação audiovisuais. Mais precisamente, são reconhecidos como jornalistas os agentes da mídia, independentemente dos meios ou técnicas de expressão utilizados, que satisfaçam três critérios: a concepção e realização de uma produção intelectual, uma relação deste trabalho com a informação, além do critério de atualidade.’
Os sindicalistas, ao longo desses oito anos, canalizaram seus esforços em manter uma reserva de mercado, quando na verdade, deveriam lutar por melhores condições de trabalho para os jornalistas, diplomados ou não. É mais do que na hora da Fenaj largar esse bacharelismo hipócrita (pois diploma não é atestado de honradez e tampouco de conduta moral) e o academicismo elitista (onde se acredita que só na academia o jornalista vai adquirir competências necessárias para enfrentar o mercado de trabalho) e convocar os jornalistas precários para integrar sua base sindical e pedir-lhes desculpas pelas discriminações. Jornalista ganha mal porque não tem uma categoria forte que lute por seus direitos e a categoria ganhará força se largar as picuinhas e se unir, independente de ter ou não o canudo.
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Estudante de História/UFES