Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Resposta a Alberto Dines

Resposta ao artigo “História truncada: A Inquisição não existiu, é invenção de leigos“, de Alberto Dines, divulgado na edição número 666 do Observatório da Imprensa (31/10/2011).

Sr. Alberto Dines, fique tranquilo. O senhor parece ser uma alma sensível, mas não era minha intenção aterrorizá-lo com o artigo publicado no suplemento “EU & Fim de Semana” do jornal Valor Econômico. Posso assegurar-lhe, para sua paz de espírito, que o texto não foi montado nos paradigmas de Goebbels, não se inspira, nem remotamente, na obra de Joseph de Maistre, e nada tem a ver com a Academia de Ciências da ex-URSS. Não sei de onde tirou tudo isso.

Ao contrário do que o senhor interpretou, o artigo não é aterrador. Mas, talvez levado pelo pânico, leu coisas que eu não escrevi. Em momento algum eu afirmei que a Inquisição não existiu e que foi invenção de leigos. Quem disse isso foi o senhor.

Assim como nunca afirmei que não houve censura episcopal ou censura inquisitorial e muito menos neguei a existência do Rol dos Livros Proibidos. Quem de novo, sem nenhum fundamento, me atribui essas afirmações é o senhor. De onde as tirou, não tenho a menor ideia.

“Citações manipuladas”

O objeto do meu artigo foi a implantação da tipografia no Brasil. Os historiadores asseguram que houve várias tentativas. É sobre elas que escrevi.

O senhor afirma, com uma ironia sutil como um elefante manco, que – eu, “bravo historiador” – ignoro a figura de Hipólito José da Costa. Está completamente enganado. Dedico a ele um longo capítulo em minha obra em elaboração; para prepará-lo consultei, entre outras fontes, a sua edição e de Isabel Lustosa, realmente primorosa, do Correio Braziliense. Um artigo sobre Hipólito da Costa e o Correio – um breve resumo do capítulo do livro –, que foi escrito e entregue há vários meses, será publicado num dos próximos números no “EU & Fim de Semana”.

Eu não mencionei o encarceramento do padre Vieira nem a execução de Antonio José da Silva, o Judeu, porque esses fatos não têm relação nenhuma com o objeto do artigo.

Pela sua diatribe, está claro que, em lugar de criticar ou debater, o senhor preferiu recorrer ao insulto e à calúnia. Atribui-me a fabricação de mentiras sofisticadas, e de ser revisionista e negacionista. Ao acusar-me de revisionismo, o senhor incorre num erro, pois não revisei nada: não conheço nenhum autor – além do senhor – que afirme que a Inquisição impediu a instalação de prelos e tipografias no Brasil. Existem, sim, muitas referências à censura, em Portugal e no Brasil, de obras impressas trazidas de fora – eu digo isso num dos capítulos do livro –, mas essa é outra questão.

O senhor me acusa ainda de perverso, trambiqueiro e capcioso. E de montar maliciosamente grande parte do texto em citações de “eminentes historiadores patrícios, genialmente manipuladas”. O senhor escreveu: “Difícil acreditar que na vasta bibliografia de Sérgio Buarque de Holanda e de Nelson Werneck Sodré não conste qualquer referência ao protagonismo do Santo Ofício (portanto, da igreja católica) no controle dos corações e mentes dos brasileiros e brazilienses.” O senhor não se deu ao trabalho de pesquisar essas obras para provar que estou errado. Eu estou disposto a retificar se o senhor conseguir demonstrar.

Decisões da Coroa, não da Inquisição

Mas eu fiz a pesquisa que o senhor não fez. Pode ser lido no segundo volume da História Geral da Civilização Brasileira (edição da Difel de 1960), dirigida por Sérgio Buarque de Holanda – meu professor no curso de História na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo –, que, em Portugal, “a tendência para o absolutismo monárquico fêz com que, já ao fim do Século XV, a posição da Igreja fôsse profundamente dominada pelo Estado.” (página. 51) e que “(…) a Ordem de Cristo (…) (c)onservava principalmente a competência fiscal para a cobrança dos dízimos com os quais continuava o Estado a manter a Igreja nos seus domínios.” (grifo próprio, p.55). Na verdade, tanto em Portugal como na Espanha, a Inquisição estava subordinada à autoridade real.

E ainda: “Desse rápido exame da hierarquia colonial, verifica-se que a ação dos bispos em quase todo o Brasil encontrou três sérios obstáculos”, o primeiro dos quais “o poder civil que (…) punha a todo momento empecilhos à ação fiscalizadora e disciplinar dos ordinários.” (página. 70) e, por fim, que “D. João IV, pelo alvará de 6 de fevereiro de 1649, sem considerar os protestos da Inquisição, proibia que se sequestrassem os bens dos judeus, mesmo condenados pelo Santo Ofício (…)” (página.319).

Por este breve arrazoado, do qual não se pode dizer que são frases pinçadas cirurgicamente para elaborar uma tese revisionista, nota-se um retrato bem diferente do que o senhor apresentou quando escreveu que “(a)qui, na colônia portuguesa, bispos e comissários do Santo Ofício mandavam e desmandavam, os governadores obedeciam: cuidavam de defender o território, proteger riquezas e cobrar impostos.”

Várias forças contribuíram para manter o atraso do Brasil Colônia. Entre elas a Inquisição. Mas foi a Coroa, não o Santo Ofício, quem proibiu o comércio com outros países, a entrada de navios estrangeiros, mesmo para abastecimento, e a implantação de indústrias no Brasil. A respeito do ensino na colônia: “(…) nem mesmo das (academias) que ostensivamente se propunham incentivar o culto das ciências (…) nos ficou alguma contribuição digna de nota. E assim tinha de ser forçosamente, porquanto seria inútil querer realizar nesse terreno alguma coisa útil enquanto vigorasse a proibição terminantemente imposta ao Brasil de possuir imprensa própria, e das duras penalidades infringidas aos que ousavam transgredi-la.” (páginas 169-170) E, em lugar de fundar universidades no Brasil, “(f)azia parte da política colonial portuguesa a concentração dos estudos universitários no Reino” (página 72). Foram decisões da Coroa, não da Inquisição.

Livros impressos pelos jesuítas

Em Raízes do Brasil, página 121, Sérgio Buarque de Holanda escreveu: “Os entraves que ao desenvolvimento da cultura intelectual no Brasil opunha a administração lusitana faziam parte do firme propósito de impedir a circulação de ideias novas que pudessem pôr em risco a estabilidade de seu domínio.”

Alfredo de Carvalho, em Gênese e Progressos da Imprensa Periódica no Brasil, Parte I, obra publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1908, na edição especial dedicada ao primeiro centenário da imprensa no Brasil, páginas 3 e 4, observa que, ainda no século XVI, os padres jesuítas de origem portuguesa levaram a arte tipográfica “às mais remotas paragens do Oriente”, como Japão, China e Índia, e no século XVII às colônias portuguesas, mais atrasadas, da África ocidental de Luanda e São Salvador, então a capital do Congo. Isto é, depois de a Inquisição ter sido introduzida em Portugal por insistência do rei. Alfredo de Carvalho menciona também “a obstinada oposição ao estabelecimento da imprensa” e “(n)o Brasil,o exercício da arte de Gutenberg era ciosamente vedada”. (Página 18).

No Brasil, a imprensa foi introduzida pela Corte em 1808, quando ainda existia a Inquisição, que só desapareceu em 1821.

Numa longa seção na obra que estou elaborando sobre os jornais brasileiros há uma referência ao Santo Ofício, quando a Coroa proibiu o funcionamento da tipografia de António Isidoro da Fonseca no Rio de Janeiro em 1747. A ordem régia de 6 de julho ao governador do Rio menciona a necessidade das licenças da Inquisição e do Conselho Ultramarino, “sem as quais se não podem imprimir nem correrem obras”. A decisão final de proibir foi do rei. Ele determinou que os infratores “serão remetidos presos para este reino à ordem de meu Conselho Ultramarino, para lhes imporem as penas em que tiverem incorrido”. A seguir, ele instruiu os membros do Conselho Ultramarino para que suas ordens fossem cumpridas. No entanto, menciono textualmente nesse capítulo: “Alberto Dines afirma que a ordem para o desmantelamento da oficina partiu da Inquisição, não da Coroa.”

No documentário Preto no Branco, o senhor afirma que não há registro de outras tentativas de imprimir coisas no Brasil antes da chegada de D. Pedro em 1808. Está errado. Houve outras tentativas, sim. Houve uma tentativa de levar um prelo e um impressor ao Recife durante o domínio holandês. Historiadores mencionam a possível existência de uma tipografia – não comprovada, mas muito debatida – no Recife em 1706. Na Vila Rica, em 1807, foi impressa uma obra, a pedido do governador, num prelo construído nessa mesma cidade pelo padre José Joaquim Viegas de Meneses, antes, portanto, da chegada da Corte ao Rio de Janeiro. Há ainda várias referências a livros que teriam sido impressos pelos jesuítas para os colégios da ordem, embora, de novo, não haja provas concretas. O assunto é mais complexo do que o senhor afirmou.

Outro nível

Sr. Dines, o senhor chega a insinuar alguma misteriosa ligação minha com o Opus Dei e de fazer trambiques. Lança grosseiras dúvidas sobre a autoria do texto.

Mas o senhor deu uma informação correta: que o “EU & Fim de Semana” é um dos mais sofisticados suplementos culturais da imprensa brasileira. A seguir, contudo, não resistiu a criticá-lo ao afirmar que o “EU&” não publicou um equívoco, mas uma mistificação e que “não foi acidental, foi determinação das esferas superiores – ou inspiração divina – as mesmas que decidiram há três anos que não se devia comemorar o bicentenário da imprensa brasileira para não lembrar o obscurantismo religioso que produziu nossa carência intelectual e jornalística”.

No seu texto, a sua fértil imaginação faz genéricas e mal-intencionadas alusões – falta-lhe coragem para afirmar – a nebulosas inspirações nazistas, comunistas e ultramontanas, a ligações com o Opus Dei, e me acusa de participar de uma conspiração para impedir a comemoração do bicentenário da imprensa brasileira. Numa obra de ficção, isso seria parte de um roteiro inverossímil e alucinado. Num artigo que pretende ser sério, sente-se o cheiro do macartismo: character assassination.

Quem escreve publicamente está sujeito a críticas. Eu estou aberto ao debate e disposto a corrigir eventuais erros e equívocos. Gostaria que o senhor tivesse adotado um tom mais adequado à troca de pontos de vista diferentes. Preferiu recorrer ao insulto e a injúrias grosseiras. Lamento. Teria sido mais profícuo se o senhor tivesse começado um debate em outro nível, não de panfletário mas de historiador.

Os fatos e a fantasia

Vários autores escreveram sobre a tipografia no Brasil. Nenhum deles afirmou que não foi introduzida, durante a época da Colônia, por causa da Inquisição. O senhor estenderia também a eles os insultos, calúnias e alegações que tão prodigamente me dirigiu? Ou, por algum motivo especial, os reserva para mim? Neste último caso, a verdadeira razão de seus ataques nada teria a ver com a tipografia, mas com algum outro motivo que não consigo imaginar e que o senhor deveria esclarecer.

É um espetáculo melancólico.

P. S. Para o livro sobre os jornais brasileiros que estou preparando é minha intenção entrevistar pessoas que moldaram a imprensa contemporânea. Na lista, evidentemente, está o senhor. Seu nome é mencionado em vários pontos da obra, pois foi em tempos passados uma figura importante no jornalismo. Mas não sei se agora haveria clima para uma conversa que, de sua parte, possa ser civilizada, pois já deu sua opinião ao meu respeito de maneira leviana e irresponsável. Por outro lado, ouvi-lo poderia ser do interesse do leitor, embora depois do que escreveu seria difícil separar os fatos da fantasia. O senhor, talvez sem perceber, me colocou num difícil dilema.

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[Matías M. Molina é jornalista, autor de Os Melhores Jornais do Mundo]