Daqui a menos de dois meses, precisamente no dia 5 de julho, todos os conselheiros do Conselho Nacional de Educação (CNE) voltam a se reunir e, embora a pauta ainda não esteja definida, é provável que as Diretrizes Curriculares Nacionais de Jornalismo entrem na discussão. O tema é polêmico, pois a proposta elaborada por uma comissão de nove especialistas, e chancelada pelo Ministério da Educação (MEC), prevê a transformação da habilitação de Jornalismo em um curso específico, o que pode culminar com a extinção do curso de Comunicação Social. Além disso, a comissão também propõe algumas mudanças que inclinam substancialmente este “novo” curso na direção das demandas do mercado de trabalho. E pior: para um mercado em constante transformação, que já não é mais aquilo que foi nas décadas passadas e, muito provavelmente, continuará mudando nas próximas.
É indiscutível o direito de uma categoria profissional ou de um campo acadêmico, através de suas entidades, reivindicar mudanças no curso responsável por formar os profissionais daquela área. Assim como também é legítima a defesa da manutenção de um curso que pode fornecer mão de obra qualificada para as novas funções, atribuições e profissões da área da Comunicação Social. Profissionais estes que assimilem as transformações pelas quais este campo profissional, político e acadêmico vêm passando nos últimos anos.
O longo silêncio do MEC e dos conselheiros do CNE preocupa. Nenhuma palavra foi proferida em público sobre o assunto desde a audiência realizada em outubro do ano passado e, quando se tenta contatar diretamente os relatores do projeto (conselheiros Reynaldo Fernandes e Arthur Roquete de Macedo), a assessoria do CNE informa que os mesmos não querem falar sobre o assunto, pois ainda estão analisando o projeto. Também preocupa ver tanta gente trabalhando direta ou indiretamente pela extinção do curso de Comunicação Social – entre estes estão o MEC e uma significativa parte da comunidade científica da comunicação, da qual faz parte o “campo do Jornalismo”, que também conta com a aderência de seu braço sindical. Os interesses podem ser distintos, mas, ao que parece, atuam de forma articulada. Analisemos os fatos.
Proposta “padronizadora” do MEC
Em ofício do dia 23 de abril de 2010 (OF. CIRC-SE/Andifes nº 064/2010), a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) enviou às universidades um documento elaborado pela Secretaria de Ensino Superior (Sesu) do MEC intitulado “Referenciais Curriculares Nacionais dos Cursos de Bacharelado e Licenciatura”. Não se sabe ao certo quais universidades receberam e quantos professores realmente chegaram a tomar conhecimento do tal documento. O que sabemos é que com ele o MEC pretende: 1) limitar a menos de 100 o número de cursos de graduação que poderão funcionar no Brasil; 2) padronizar a nomenclatura dos cursos; 3) exigir que as universidades adotem currículos padronizados. Impressiona o poder de síntese e a eficiente técnica “padronizadora” do Ministério. No documento, cada um dos noventa e poucos cursos merece exatamente uma página de “referenciais curriculares”, divididos em quatro partes: perfil do egresso; temas abordados na formação; ambientes de atuação; e infraestrutura recomendada. Cada um destes itens não conta com mais do que seis linhas.
Com relação especificamente ao curso de Comunicação Social, outra surpresa: as seis habilitações vigentes desde 2001 (Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Cinema, Relações Públicas, Produção Editorial e Rádio e TV) se transformam em cinco cursos isolados. Os quatro primeiros ganham “independência”: Produção Editorial desaparece; e Rádio e TV passa a se chamar Rádio, TV e Internet. O questionamento quanto ao destino da habilitação de Produção Editorial também se faz em relação a cursos da área de comunicação que não são habilitações de Comunicação Social, como Produção Cultural, Estudos de Mídia, Midialogia, Educomunicação, Comunicação Integrada, entre outros.
Mas por que o MEC se esforça tanto para padronizar os cursos superiores e, por consequência, limitar a função da Universidade de perceber as demandas sociais para criar cursos que atendam a estas demandas? Já ouviram falar em Reforma Universitária, Reuni, imposições do FMI e do Banco Mundial para nossa educação?
Interesses acadêmicos ou academia interesseira?
A transformação das habilitações em cursos isolados não tem fim em si mesma, ou seja, não significa apenas um movimento de reorganização da formação dos diferentes profissionais da área de comunicação. É, sim, um movimento político-acadêmico, coordenado pela elite do campo acadêmico da comunicação no Brasil. Esta elite atuou na criação da maioria das entidades científicas do campo no país e, nos últimos anos, vem batalhando pela afirmação do pesquisador brasileiro e latino-americano perante a comunidade acadêmica internacional do setor, historicamente hegemonizada pelos “falantes” do inglês e do francês (não por acaso estes idiomas concentram a maior parte da bibliografia mundial do campo da comunicação e são exigidos na maioria dos cursos de mestrado e doutorado em Comunicação no Brasil).
No entanto, este processo de afirmação internacional depende, e muito, de movimentações nacionais. Para ser mais claro e objetivo, depende de financiamento público. Financiamento é um problema para a pesquisa científica em países subdesenvolvidos e só se consegue com o crescimento do reconhecimento, do prestígio, da importância. Veja-se o que ocorre na maioria das universidades brasileiras, onde as ciências biológicas e exatas, sobretudo a Medicina, a Engenharia e a Informática, recebem muito mais recursos que as ciências humanas. Deste cenário nada favorável surge um projeto de financiamento público da pesquisa científica em Comunicação com o objetivo de trazer reconhecimento internacional a este campo: tirar o curso de Comunicação Social do “guarda-chuva” das Ciências Sociais Aplicadas e transformá-lo num novo “guarda-chuva”. Assim, na concepção destes pesquisadores, a transformação das habilitações em cursos isolados se tornou indispensável.
O “campo do Jornalismo”
Não há como negar que os maiores entusiastas da transformação da habilitação de Jornalismo em curso isolado são as entidades autodenominadas como integrantes do “campo acadêmico-profissional do Jornalismo”. Para a Fenaj (jornalistas), o FNPJ (professores) e a SBPJor (pesquisadores), o Jornalismo já amadureceu suficientemente para ser alçado do limbo comum dos objetos de estudo para a pomposa seara dos campos acadêmicos. Até um mestrado específico em Jornalismo, da UFSC, estas entidades e seus dirigentes já ajudaram a criar.
Também não há como negar a relação entre a principal bandeira do movimento sindical dos jornalistas e o processo de reforma das Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso. É visível que a luta pela obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão fez com que a elite (sempre elas) dos sindicalistas do Jornalismo investisse num processo de (super)valorização do curso, como se não houvesse vida inteligente antes de seu tardio surgimento no Brasil, em meados da década de 1940. Como se não houvessem graves problemas nas universidades, nos cursos, nas grades curriculares, na estrutura laboratorial, no corpo docente e, não menos importante, no mercado de trabalho. Como se a questão fosse dar mais status ao curso, incentivar cada vez mais jovens a cursá-lo e restringir o exercício profissional aos possuidores do diploma universitário. Uma concepção, no mínimo, burguesa, da profissão e da sociedade.
Projeto único
Sem projeto concreto que se contraponha, ou pelo menos que se apresente como alternativa, ao projeto do MEC, entidades que foram protagonistas da última reforma curricular do curso de Comunicação Social, aprovada em 2001, acabaram ficando à margem do processo. A Intercom, a mais importante instituição científica de Comunicação, não se envolveu nas discussões tanto como há dez anos, ou melhor, se envolveu, mas apenas por meio da atuação particular de alguns de seus dirigentes na comissão de especialistas do MEC, como o próprio presidente da comissão, o notável professor José Marques de Melo, fundador e conselheiro da Intercom. Já a Compós, que representa os cursos de mestrado e doutorado em comunicação, fez uma discussão aprofundada e divulgou um documento em que faz algumas críticas ao projeto do MEC. No entanto, a entidade não demonstrou interesse em pressionar o governo a paralisar o atual processo. A posição das outras entidades acadêmicas varia entre algo parecido com a Intercom e a Compós e a completa indiferença.
Com este quadro, a única voz dissonante, claramente exposta tanto por meio de posicionamentos públicos como também nas audiências convocadas para discutir o projeto, vem da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (Enecos). Durante o ano de 2010, a Enecos promoveu a campanha “Somos Todos Comunicação Social”, na qual incentivaram os estudantes de Comunicação Social de todo o país a debater sua formação e avaliar a qualidade do ensino ofertado por suas faculdades. Além disso, a entidade publicou documentos criticando a proposta da comissão de especialistas e apontando suas principais divergências com o documento do MEC. Estas críticas e divergências também foram apresentadas nas audiências públicas realizadas no Rio de Janeiro, em 2009, e em Brasília, em 2010, para debater o assunto junto à sociedade. No entanto, ainda não foi apresentado, por nenhuma entidade, um projeto que acabe com o status de proposta única do documento chancelado pelo MEC.
Em defesa do curso de Comunicação Social
Longe de querer esgotar o assunto e apresentar um projeto acabado para ocupar este vazio, apresentamos aqui uma argumentação em defesa do curso de Comunicação Social. Em primeiríssimo lugar, ressaltamos que nenhuma das propostas que dizem respeito única e exclusivamente ao que acontece dentro das universidades, como currículos, laboratórios e professores, terá sentido se o mundo e o mercado de trabalho continuarem exatamente como estão. É mais do que urgente lutarmos por outro modelo de sociedade, menos capitalista e mais socialista, pela efetiva democratização das comunicações, pela construção de um grande e eficiente sistema público de comunicação, além das lutas específicas dos trabalhadores como redução da jornada sem redução nos salários, fim do assédio moral, salários dignos, mais benefícios e mais empregos. Neste sentido, é imprescindível a unidade dos trabalhadores da comunicação, desde os gráficos até os blogueiros, passando por jornalistas, fotógrafos, ilustradores, publicitários, cineastas, call centers e todos os demais. Não perceber a grande influência que os problemas do mundo e da profissão exercem sobre o processo de formação dos profissionais é simplesmente não compreender por completo a questão em discussão.
Com relação à latente possibilidade de extinção do curso de Comunicação Social, volto ao segundo parágrafo deste artigo. É legítimo, embora haja controvérsias, a reivindicação de “independência” de qualquer habilitação. O Cinema já a conquistou em 2006 e as Relações Públicas também estão em processo semelhante. Muito em breve será a vez de Publicidade e Propaganda, Rádio e TV e Produção Editorial (este último, se não for extinto pelos amargos “Referenciais Curriculares Nacionais” do MEC). No entanto, estamos propondo a manutenção do curso de Comunicação Social, como opção acadêmica, para os que não se identificarem com os cursos específicos, e como opção profissional, para as diversas funções, atribuições e habilidades as quais os cursos específicos não conseguirão contemplar.
É só nos debruçarmos atentamente ao atual mercado de trabalho da área de comunicação, mesmo com todas as deficiências que tem, e veremos que boa parte (prefiro não me arriscar a dizer que são a maioria, embora eu acredite mesmo que seja) dos profissionais atua em algo que não pode ser rotulado como Jornalismo, Publicidade ou Cinema, por exemplo. São produtores de mídia, analistas de mídias sociais, assessores de comunicação, “marqueteiros virais”, educomunicadores, entre tantas outras denominações. Lembro-me de um professor que, ao questionar a burocracia dos diplomas, explicava que no mercado de trabalho são muito poucos os que se formam com um “rótulo” (curso) e trabalham neste mesmo rótulo durante toda a vida pós-universitária. E isso é tão verdade que a maioria dos jornalistas já fizeram outra coisa na vida que não pode ser considerado Jornalismo.
Para os que consideram esta realidade da profissão o resultado da precarização da profissão de Jornalista, sugiro uma reflexão: qual é a melhor forma de se combater a precarização? Defendendo um duvidoso fortalecimento da formação profissional (digo duvidoso, pois apenas o curso específico e a obrigatoriedade do diploma não mudam em nada a qualidade da formação) ou lutando pelo cumprimento da legislação trabalhista, contra o assédio moral que assola as redações, por políticas públicas que criem empregos qualificados para os jornalistas e pela democratização dos meios de comunicação? Qual caminho parece mais eficiente? Bom, na dúvida, porque não seguirmos os dois?
Poderíamos elencar algumas propostas concretas para melhorar os cursos de Comunicação Social, sugestões sobre currículo, laboratórios, estágio, corpo docente etc. Mas não é este o propósito deste artigo. Limitamos-nos a defender a importância social, acadêmica, política e profissional dos cursos de Comunicação Social. Não sei se conseguimos atingir o objetivo. De qualquer forma, o que importa é o debate. Vamos a ele?
Documentos citados
**Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Comunicação Socialvigentes desde 2001
**Posicionamento da Compóssobre a proposta da Comissão de Especialistas do MEC
**Posicionamento da Enecossobre a proposta da Comissão de Especialistas do MEC
**OF. CIRC-SE/Andifes nº 064/2010 (não disponível na internet)
**Referenciais curriculares nacionais dos cursos de bacharelado e licenciatura (não disponível na internet)
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Estudante de Jornalismo, Rio de Janeiro, RJ