‘Começou o tiroteio. Antes de completar sua primeira semana no ar, ‘Bang Bang’, a nova novela das sete da Globo, já está provocando uma polêmica danada. Ambientada na imaginária Albuquerque, uma cidade de faroeste do século retrasado, a história do meu amigo Mário Prata já provocou a ira da ‘bancada da bala’, como são conhecidos os deputados da Frente Parlamentar pelo Direito da Legítima Defesa, que defende o ‘não’ à proibição do comércio de armas.
‘Bang Bang’ trouxe de volta à TV o humor cáustico de Prata no melhor estilo de Henfil e Angeli, mas os nobres parlamentares não acharam graça nenhuma e entraram logo com um pedido de liminar para suspender a exibição da novela. No comando da tropa a favor do comércio de armas no país, o deputado Alberto Fraga (PFL-DF) alegou que o autor declarara em entrevista ser a favor do ‘desarmamento social’, como se alguém pudesse ser contra. Além disso, alega, a novela comete o crime de colocar no cenário placas como ‘aqui não usamos armas’ e ‘proibido o uso de armas’.
É incrível como, nos turbulentos dias em que vivemos, ficção e realidade se confundem em nosso país. Outro notório defensor do bangue-bangue tupiniquim na vida real, o dublê de militar e deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), mesmo admitindo que ainda não teve tempo de assistir à novela, não viu e não gostou. Saiu em defesa de Fraga e partiu para o ataque à TV Globo por ser a emissora, segundo ele, favorável ao desarmamento.
Por coincidência ou não, sei lá, a novela estreou na mesma semana em que começou a campanha do referendo na televisão. Se a ‘bancada da bala’ está preocupada com a influência que o folhetim pode ter para induzir a população a votar ‘sim’, de outro ganhou a generosa contribuição da revista ‘Veja’, que, em editorial de capa – um caso, para mim, inédito na imprensa brasileira – apresentou sete motivos em defesa do voto no ‘não’.
No meio deste barulho todo, lembrei-me de que vi nascer esta novela em dezembro do ano passado. Sem ninguém combinar nada, encontrei Pratinha, como é chamado pelos conhecidos, no Spa São Pedro, em Sorocaba, no interior de São Paulo. A simples presença dele, um sujeito magro que beira o raquítico, num spa, lugar onde as pessoas fazem enormes sacrifícios para perder peso, já era de chamar a atenção. O motivo da sua estada, então, deixou a mulherada mais assanhada: todas queriam saber em primeira mão como seria a nova novela.
Junto com Prata, estava hospedado no spa outro amigo, o jornalista-escritor Fernando Morais, que também tem o hábito de se internar lá para poder escrever. Ao mesmo tempo em que um começava a montar sua história, o outro estava terminando de escrever seu mais recente best-seller, ‘Na Toca dos Leões’, a biografia autorizada do publicitário Washington Olivetto e da sua premiada agência, a W/Brasil.
Fernando e Pratinha já tinham se cruzado lá outras vezes, com o mesmo objetivo de poder escrever em paz. Embora o biógrafo, ao contrário do autor da novela, bem que necessitasse entrar na programação do spa para perder peso, os dois não faziam outra coisa a não ser passar o dia trancados em seus quartos, escrevendo.
Só saíam para comer – pouco, é claro. Pratinha até já publicou dois livros muito engraçados sobre o mesmo tema – ‘Diário de Um Magro’ – para contar como é a vida no spa e as estrepolias de seus robustos personagens para contrabandear comida para dentro do São Pedro, todas frustradas pela implacável equipe do doutor Chico, o médico responsável pelo cumprimento das regras.
Já que era assim, também resolvi alugar um computador para poder escrever. Tinha acabado de voltar de Brasília, depois de dois anos trabalhando no governo. Só pensava em descansar, me desintoxicar, e aproveitar para emagrecer um pouco. Governo, como se sabe, não faz bem à saúde. Falei aos dois dos planos de escrever um livro de memórias sobre os meus 40 anos de jornalismo, que acabara de completar, em outubro de 2004, pegando o período que vai do Golpe de 64 à vitória de Lula, que levou muitos da minha geração ao Palácio do Planalto.
Os dois me deram algumas dicas e comecei ali mesmo a preparar uma sinopse do livro, que ainda hoje estou escrevendo. Diante disso, achei-me no direito de também dar uns pitacos no livro de Fernando e na novela do Pratinha. A novela já estreou com boa audiência e muita polêmica, o livro do Fernando entrou na lista dos mais vendidos antes da Justiça mandar apreendê-lo a pedido do deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), e eu ainda continuo às voltas com as minhas memórias. O drama todo é esse: quando você é jovem, tem boa memória, mas lhe faltam histórias para contar; mais velho, tem muitas histórias, mas a memória já não ajuda.
Consolo-me ao lembrar que Mário Prata levou vinte anos para levar sua história ao ar – exatamente o tempo que passou desde a novela ‘Um Sonho a Mais’, seu último trabalho para a televisão. Quando pensou pela primeira vez na trama de ‘Bang Bang’, ele não sabia se seria uma peça de teatro, uma minissérie ou um filme. Quem o convenceu a desenvolver a história para uma novela, no ano passado, foi Luiz Fernando Carvalho, o ousado diretor da Globo, que bancou a idéia na emissora.
Contemporâneos no jornalismo e cúmplices em outros caminhos pela vida, Pratinha, Morais e eu tomamos rumos diferentes na carreira. Eles conquistaram há muito tempo a liberdade de trabalhar por conta própria, sem chefe nem patrão, fazendo seus próprios projetos e horários, e me animaram a fazer o mesmo. Como diz o bordão da propaganda, poder trabalhar de bermuda e chinelo, fazendo só o que gosta, sem ficar ninguém no cangote te cobrando, poder ver a neta todo dia, não tem dinheiro que pague.
Se bem que, dependendo da safra e da tarefa, não é sempre assim. Fernando, naquele final de 2004, estava agoniado porque vencera há tempos o prazo para entregar o livro. Pratinha, mesmo com a retaguarda global que lhe forneceu meia dúzia de auxiliares, tem que dar conta agora de entregar umas 40 páginas por dia, e novela tem dia e hora para entrar no ar. Eu mesmo, que recebi um adiantamento da Companhia das Letras para poder trabalhar no livro, descobri outro dia que está chegando o final do ano, prazo para entregá-lo pronto ao editor.
É verdade que o editor, Luiz Schwarcz, outro companheiro velho de muitos livros e histórias comuns, levou seis anos para concluir a sua primeira obra para adultos, ‘Discurso sobre o Capim’, lançado no mês passado – assim mesmo, porque foi implacavelmente cobrado pela própria filha, que trabalha com ele.
Estas coisas, como diria o Tutty Vasques, a ‘bancada da bala’ não vê.’
Nelson Ascher
‘O referendo’, copyright Folha de S. Paulo, 10/10/05
‘O referendo sobre a comercialização de armas de fogo e munição no Brasil é, de um ponto de vista prático, uma bobagem: uma perda de tempo e dinheiro, um desperdício de saliva e tinta.
Caso as previsões se confirmem e se limite ainda mais o acesso legal dos cidadãos a revólveres, pistolas etc., a melhor conseqüência que advirá disso, se formos otimistas, será uma redução marginal no número de acidentes letais e, com muita sorte, uma baixa mínima no índice de alguns poucos tipos de homicídio.
As preocupações que, no fundo, movem a maioria das eleitores bem-intencionados, a saber, a criminalidade, a sensação realista ou exagerada de insegurança sobretudo nas grandes metrópoles, essas mal serão afetadas pelo voto, pois, como diria o poeta T.S. Eliot, entre a criação de uma lei e sua implementação, cai a sombra. Não faltam em parte alguma leis maravilhosas que, por mais esperançosamente tenham vindo à luz, nunca passaram de letra morta.
Com um litoral do tamanho do nosso, com a extensão das fronteiras nacionais, para nem falar das nações que estão do outro lado delas, nem o mais totalitário governo de esquerda ou direita nem a força policial mais numerosa, honesta e eficiente do mundo conseguiriam manter sob controle o influxo de armas ilegais provenientes do exterior.
Trocando em miúdos, se ninguém é capaz de impedir, por exemplo, a entrada de drogas ou de imigrantes sem papéis inclusive em terras decentemente administradas, os criminosos autênticos darão, quando preciso, um ‘jeitinho’ de, desde um trivial ‘três-oitão’, passando pela Kalashnikov padrão até um lança-mísseis de última geração, obter tudo o que considerem instrumento imprescindível de trabalho.
Nada de novo até aqui. Mas, então, qual a função desse referendo, o que é que está, de fato, sendo discutido?
O direito individual de possuir e portar armas de fogo é, como o aborto ou a pena capital, uma dessas questões espinhosas que envolvem muito mais do que o observador ingênuo ou desinformado supõe, questões que definem o caráter de uma sociedade.
Há duas maneiras fundamentais, não mutuamente exclusivas, de pensar as leis: de acordo com os princípios (éticos, morais, políticos) que levaram à sua promulgação, ou segundo os resultados que se espera que produzam.
Alguém pode ser contra o aborto mesmo sabendo da infelicidade que um rebento indesejado tende a gerar, ou ser a favor dele embora não ignore que, a longo prazo, sua generalização contribui em diversos países para a importação de uma mão-de-obra cuja proliferação potencialmente acirra conflitos etno-religiosos. De forma semelhante, outros apoiariam ou não a execução de criminosos independentemente de seus efeitos positivos ou negativos sobre os níveis de criminalidade. Trata-se, nesses casos diversos, de opções que, malgrado amiúde serem defendidas com dados e estatísticas que apontam para tais ou quais conseqüências, enraízam-se em princípios que as antecedem nem seriam abandonados perante evidências objetivas que os contradissessem.
Existe, assim, gente que julga qualquer violência, seja no atacado, seja no varejo, ilegítima. Para um pacifista radical, até um ato indiscutível de autodefesa constitui uma abominação, quando não significa pura e simplesmente que a vítima, ao reagir, se confunde com o agressor. Tal alergia à violência, encarnada na recusa a distinguir entre a legítima e a ilegítima, tornou-se, nos dias atuais, uma espécie de religião laica que, nas elites bem-pensantes, atrai legiões crescentes de seguidores. Doutrinários que são, eles também entendem que suas doutrinas, se aberta e claramente formuladas, jamais convenceriam o grosso de tanto faz qual população.
Muitas mulheres, em particular aquelas que são mães, acreditam que a propensão à violência é algo alheio à natureza humana, isto é, a imposição exógena dos ditames de uma cultura machista ou, pelo menos, masculina a pequenos ‘bons selvagens’ que, imaturos, não descobriram ainda seu próprio pacifismo de base, sua vocação inata a virar a outra face. Impedindo seus filhos de adquirirem armas de brinquedo, elas lhes menosprezam a imaginação sem levar em conta que, nas mãos de um garoto, um cabo de vassoura se converte numa espada, uma tábua num escudo, uma lanterna num disparador de raios laser.
Diante da expectativa de escassos resultados verificáveis, é lícito presumir que os idealizadores do referendo tinham e têm em mente antes a difusão dos princípios nos quais crêem do que suas improváveis virtudes pragmáticas. A rigor, suas possíveis motivações decorrem da certeza de que áreas cada vez mais amplas do comportamento individual devem ser supervisionadas pelo Estado. Para eles, as benesses da intromissão estatal, do direito estatal de se imiscuir na vida privada dos cidadãos, normalmente lhes eclipsam os prejuízos, se é que estes existem. Um objetivo importante, nas circunvoluções cerebrais dos que sustentam tais teses, é o de perpétua e ininterruptamente ‘educar’ as ‘massas ignaras’, o ‘povão’ que, desconhecendo seus lídimos interesses, só pode agradecer o nobre empenho de uma elite ou vanguarda que os esclareça e ilumine.
O referendo que, para a cidadania, se resume num pequeno passo (nem para frente, nem para trás, talvez apenas para o lado), será, porém, para os ideólogos de plantão, para as elites menos iluministas que ‘iluminadas’, um grande salto, nem o inicial, nem o derradeiro, rumo à realização de suas metas, metas que o século 20 definiu e, com justiça, estigmatizou como ‘engenharia social’.’
Folha de S. Paulo
‘Pelo ‘Sim’ No Referendo’, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 9/10/05
‘No próximo dia 23, os eleitores brasileiros serão convocados a responder à seguinte pergunta: ‘O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?’. Esta Folha defende o voto ‘sim’. Chega a essa decisão, porém, sem nenhum tipo de ilusão.
A proibição não será capaz de conter as ações ousadas de bandidos e associações criminosas. Tampouco restringirá o acesso desses grupos aos armamentos -para tanto, o poder público teria de adotar medidas, como o controle rigoroso das fronteiras, em áreas em que tem falhado.
A eventual vitória do ‘sim’ mudará pouco em relação às normas em vigência, dadas pelo Estatuto do Desarmamento. Quem tem arma legalizada em casa poderá mantê-la, mas não conseguirá mais adquirir balas. Já as pessoas que pelas regras atuais podem ter porte -policiais, militares e agentes de segurança privada, entre outros- manterão o direito de andar armadas e comprar munição.
Nesse contexto, até a realização do referendo pode ser questionada. Com ele, o Estado gastará algo em torno de R$ 250 milhões para decidir o que o Congresso poderia ter feito sozinho. Perdeu-se ainda a chance de aproveitar a ocasião para levar outros temas a consulta popular.
Apesar das restrições que devem ser feitas ao processo, as vantagens da proibição superam os problemas por ela acarretados. O principal benefício da proscrição está na possibilidade de reduzir alguns tipos específicos de homicídio -aqueles motivados por conflitos interpessoais ou por causas fúteis-, bem como os acidentes com armas de fogo.
Esse ganho seria importante. Na Grande São Paulo, segundo dados da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa, 60% dos assassinatos são cometidos por pessoas sem histórico criminal e por motivos banais, como brigas de trânsito, discussões em bares e outras situações em que o destempero e os efeitos do álcool se associam à existência de uma arma à mão para produzir uma tragédia.
A esse respeito, a campanha do desarmamento, que recolheu mais de meio milhão de armas, já produziu importantes resultados. O Ministério da Saúde informa que os homicídios por armas de fogo caíram 8,2% em 2004 em relação a 2003. Foram de 39.325 assassinatos em 2003 para 36.091 no ano seguinte. É a primeira queda nesse indicador desde 1992.
Reforça a sugestão de que o desarmamento teve impacto na baixa dos homicídios o fato de que, nos Estados em que a taxa de recolhimento de armas foi alta (mais de 150 para cada 100 mil habitantes), o recuo médio do índice de mortalidade foi de 14,5%. Nas unidades em que a coleta foi baixa, a redução média foi de 2%.
A interpretação de que o veto às armas seria limitação abusiva do direito de autodefesa não procede. É atribuição do Estado definir regras para o exercício de certas atividades e fixar requisitos para a concessão de licenças. Se o referendo determinar que o poder público deve restringir a comercialização, circunscrevendo-a às categorias que fazem jus ao porte, não haverá um atentado aos direitos e às garantias fundamentais, apenas mais uma regulamentação.
Aqueles que insistirem ter acesso a armas e munição poderão ingressar num clube de tiro, hipótese em que a lei autoriza concessão de porte. De modo análogo, quem vive em área rural poderá declarar-se caçador e, nesse caso, conservar espingardas de calibre igual ou inferior a 16.
O argumento de que a limitação do comércio gerará grande desemprego tampouco parece razoável. Os grandes consumidores de armas e munições -Forças Armadas e polícias- permanecerão os mesmos. A produção para exportação não será afetada.
O melhor é votar ‘sim’ no referendo. Uma restrição mais forte às armas e às balas, sem contrariar direitos fundamentais, deve contribuir para poupar mais algumas vidas, no que a opção já terá valido a pena.’