Na área educacional do governo Lula, um fato ninguém pode negar: os dois mandatários que passaram pela pasta ministerial são verdadeiros craques da notícia. Ocupam semanalmente as páginas dos principais diários e revistas, sempre com factóides de causar inveja ao factóide-mor César Maia.
De 2 a 5 de maio terá lugar em Recife o 5º Congresso Nacional de Educação (5º Coned), organizado pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, justamente para debater e avaliar as políticas educacionais dos últimos anos. No evento, estarei colaborando especialmente para a mesa de debates número 5, do eixo ‘Financiamento da Educação Nacional’, sob o seguinte tema: ‘As políticas de financiamento e pesquisa e a privatização do conhecimento’. Vou discutir a pertinência das atuais agências de fomento à pesquisa, assim como as políticas e programas de financiamento (tal como a utilização dos fundos setoriais), a lei de propriedade intelectual, o projeto de inovação tecnológica e a proposta de reforma universitária que o atual governo vem esboçando. Em linhas gerais, defender a hipótese de que o progressivo desmonte do atual sistema público de ensino superior, assim como o de produção de ciência e tecnologia, terá como resultado o esgotamento das possibilidades de inserção autônoma do país no cada vez mais competitivo mercado internacional.
Interesses dos ‘sócios’ maiores
A despeito da legitimidade constitucional do investimento privado (de empresas educacionais ou não) na área de ensino, é fundamental o investimento público em educação superior – como bem defendeu Edson Nunes, pró-reitor de Extensão da Universidade Cândido Mendes e integrante do Conselho Nacional de Educação, em artigo publicado recentemente em jornal carioca – para, no mínimo, servir de baliza ao próprio setor privado, que precisa de referências de excelência e qualidade para que sua expansão não seja feita respeitando apenas as leis controversas do mercado.
No entanto, mais do que isso, é fundamental estarmos cientes de que nossa condição ainda periférica no capitalismo internacional demanda, sim, como em muitas outras áreas, um investimento estatal condizente com as nossas necessidades socioeconômicas. Isto porque, ao bel prazer do investimento privado, não contemplaremos áreas fulcrais para nosso próprio e específico desenvolvimento. Vale lembrar que o investimento em tecnologia de ponta, por exemplo, só é possível para as grandes empresas, as chamadas global players, cujo número no Brasil é risível. Ainda assim, mesmo nos países centrais do capitalismo, o investimento estatal não é nada desprezível nessas áreas.
Por fim, os riscos da minora do investimento público na área educacional superior significa também o risco da internacionalização do sistema educacional, atendendo aos interesses das corporações educacionais estrangeiras, que contam com o apoio dos organismos multilaterais para vender seus pacotes de adestramento e ensino em escala planetária, sob um custo mínimo suficiente para desmontar não só o sistema público, como também desmontar as estruturas de ensino privado nacional.
Favorecendo os bolsos estrangeiros e sob um currículo técnico e um conteúdo pedagógico alienígena, a educação no Brasil certamente não atenderá aos nossos propósitos de desenvolvimento social e econômico. Ficaremos limitados pelos interesses dos ‘sócios’ maiores, matando de vez, talvez, o nosso principal capital social: a cultura brasileira em formação.
Factóides das políticas educacionais
Apontar esses tópicos não significa reificar o status quo do nosso sistema educacional. Tanto na área pública quanto na privada são necessárias mudanças radicais. No entanto, se essa reforma ficar limitada aos ditames dos princípios políticos-econômicos dos que apenas vêem o Brasil como mais um lugar de formação de lucros, pouco restará para que transformemos o que precisa realmente ser mudado.
Muito menos deve se entender este recado como uma proposta ‘dinossáurica’ de fechamento do país ao processo de mundialização das relações sociais. Ao contrário, o que se defende é justamente um efetivo projeto de internacionalização das potencialidades brasileiras, entendendo ‘inter-nacionalização’ no seu sentido obtuso, qual seja: o de troca igualitária entre nações, e não o de subordinação ou submissão de uma nação sobre outra. Isto não é globalização, mas apenas uma fase mais avançada do antigo e sempre renovado ‘imperialismo’.
Sob estas variáveis é que devemos olhar as propostas educacionais postas nos últimos anos, principalmente as que se referem ao ensino superior. Mas não exclusivamente para o discurso tópico da ‘reforma universitária’, como está sendo de praxe na controvertida (mas não pluralista) mídia brasileira. Como nos ensinou o professor Florestan Fernandes, os objetos ‘sociológicos’ devem ser vistos numa totalidade histórica, na sua relação com outras dimensões e para além dos supostos interesses manifestos dos sujeitos.
No caso em questão, a imprensa brasileira daria uma grande contribuição se iluminasse os factóides das políticas educacionais (a começar pela proposta de compra de vagas nas faculdades privadas – ironicamente chamada de ‘estatização’) com análises mais rigorosas sobre o significado da criação dos fundos setoriais de apoio à pesquisa, às mudanças ocorridas a partir da lei de propriedade intelectual e às falsas promessas dos projetos que querem instituir a lei de inovação e a parceria público-privada como tábua de salvação da ciência e tecnologia e base do desenvolvimento socioeconômico.
Cegueira voluntária
E não deveria ficar só nisso. Poderia também articular estas questões com os ditames da ortodoxia macroeconômica hoje vigente no panteão intelectual dos guardiões da ordem, que em nome de louca racionalidade promove a desnacionalização da economia a partir da privatização do patrimônio público – com o qual, na interpretação de Florestan, o Estado funde-se com a empresa econômica e o ‘político’ torna-se nada mais que a versão pública dos interesses privados predominantes.
É isso que está por detrás do tão propalado conceito de ‘público não-estatal’ que querem impor como modelo ao ensino superior brasileiro. É isso que a imprensa brasileira pensa ser. Entende-se, portanto, a cegueira voluntária ou estrutural no debate sobre o papel da educação (e da produção do conhecimento e informação) neste país periférico.
******
Jornalista, pesquisador do Coletivo de Estudos de Políticas Educacionais do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, autor de Os empresários da educação (Edusf, 2002) e co-autor de O empresariamento da educação: novos contornos do ensino superior no Brasil dos anos 1990 (Xamã, 2002)