Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Rotinas produtivas e
suas interferências

Este artigo busca identificar os diferentes tipos de rotinas produtivas que influenciam a construção de reportagens especiais e documentários televisivos. As reflexões desenvolvidas nesta pesquisa demonstram o interesse em dimensionar o papel das rotinas na determinação e caracterização dos gêneros audiovisuais.

Semelhanças e diferenças

Em nenhum período histórico anterior, os recursos e produtos audiovisuais foram utilizados com tanta freqüência para disseminação de informações e apreensão da realidade. Noticiários, programas educativos, filmes de ficção, entrevistas, reportagens especiais e documentários veiculados pela televisão, por exemplo, têm sido intensamente ‘consumidos’, na medida em que oferecem a possibilidade de ampliar o universo cognitivo do público a partir de um suporte bastante atraente, como é o caso da TV – capaz de aglutinar imagens (em movimento ou não), sons e novas tecnologias.

Entretanto, cada tipo de produto audiovisual possui características e formas particulares de atender/atingir o público. Esmiuçar e analisar os processos de confecção de cada um deles se faz necessário para entender quais são os fatores que interferem na construção da ‘realidade’ midiática por nós apreendida.

No universo abrangente da TV, escolhemos para análise dois formatos que, vistos superficialmente, podem ser confundidos, mas que, na verdade, possuem pontos de aproximação e distanciamento. São eles os documentários e as reportagens especiais (REs) – cuja caracterização veremos mais adiante.

O jornalismo e o documentarismo televisivos têm funcionado como dois importantes canais de conhecimento e atualização de fatos e temários do cotidiano. Ambos, nos últimos anos, têm ganhado espaço nas grades das emissoras, na medida em que se prestam a retratar a realidade de forma mais aprofundada – ao contrário do telejornalismo diário que, normalmente, funciona como mero indexador dos fatos de maior relevância para o grande público.

Buscamos estudar os processos de confecção de reportagens especiais e documentários televisivos a partir de um fator considerado por nós como primordial: as rotinas de produção.

A perspectiva adotada compreende que a ‘tradução da realidade’ – um dos pressupostos básicos do jornalismo – pode ser encarada como atividade fim desses dois produtos, ou melhor, o ponto de convergência entre eles. No entanto, documentários e reportagens especiais possuem características específicas. Daí que a freqüência ou intensidade com que as rotinas incidem sobre eles é naturalmente diferente.

Nosso interesse é avaliar em que medida as reportagens especiais e os documentários sofrem interferência de rotinas pré-estabelecidas e até que ponto elas são importantes para determinar as particularidades desses dois produtos audiovisuais. Com isso, pretendemos identificar as semelhanças e diferenças existentes entre REs e documentários e perceber a influência das rotinas de produção na definição e caracterização dos gêneros da linguagem audiovisual.

Reportagens especiais

Este artigo é resultado do subprojeto ‘As rotinas de produção e suas interferências nos documentários e nas grandes reportagens’, que passou a integrar, em 2001, a pesquisa ‘Gêneros jornalísticos em região de fronteira: estudo comparativo entre o documentário e a grande reportagem’, desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa em Comunicação e Discurso da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Entre 1999 e 2000, o Grupo de Pesquisa se dedicou a reconhecer as características apenas do documentário televisivo. Para delimitar com mais clareza as propriedades do objeto de estudo, foi proposta, no ano seguinte (2001), a análise comparativa entre documentários televisivos e as chamadas grandes reportagens a partir do estudo das rotinas de produção – recorte considerado imprescindível pelo Grupo de Pesquisa e que ainda não havia sido estudado com profundidade. Além disso, a pesquisa busca servir de base para novos estudos no campo da linguagem audiovisual. (Neste artigo e na pesquisa desenvolvida, as nomenclaturas ‘grande reportagem’ (GR) e ‘reportagem especial’ (RE) são sinônimas. No período inicial da pesquisa, utilizamos, sobretudo, o primeiro termo. Entretanto, para não caracterizar o tipo de produto com o qual estamos trabalhando apenas pelo ‘tamanho’, decidimos mudar a terminologia e dar ênfase ao caráter ‘especial’ desse formato audiovisual.)

Para empreender este estudo, foi desenvolvida, inicialmente, a revisão das referências bibliográficas utilizadas nos dois primeiros anos da pesquisa. Passamos, então, a incluir materiais sobre os Estudos do Jornalismo que versam sobre as rotinas de produção, dos quais são referência Alfredo Vizeu, Miguel Rodrigo Alsina, Mauro Wolf, Nelson Traquina, Gaye Tuchman, Mar de Fontcuberta e Luiz Gonzaga Motta. Tomamos por base, ainda, os artigos elaborados pelo Grupo de Pesquisa em Comunicação e Discurso da UFPE, que tratam das principais conclusões sobre as especificidades do gênero documentário televisivo. Nesta etapa, verificamos que nossa proposta de estudo é por demais complexa, já que o pouco material acadêmico de que dispomos para analisar as rotinas de produção diz respeito, sobretudo, às notícias diárias do jornalismo impresso e, em menor quantidade, ao telejornalismo e aos documentários televisivos.

Na fase seguinte, foi realizada a gravação de reportagens especiais, e, posteriormente, a seleção e transcrição do corpus. No caso dos documentários, foram utilizadas as transcrições dos títulos que já haviam sido estudados nos primeiros anos da pesquisa. A essas etapas, seguiu-se a análise do corpus em função das rotinas que permeiam a produção das REs e documentários.

A hibridez

Apesar da intenção comum de funcionar como relatos diferenciados da realidade em relação às notícias diárias, por exemplo, as reportagens especiais e documentários televisivos apresentam aspectos que os diferenciam entre si.

Para embasar esta nossa premissa, estamos utilizando como referencial de apoio o conceito lingüístico de gênero. Partimos do pressuposto de que os gêneros são formas estabilizadas de discurso, definidas e ajustadas pela história e pelos contextos sociais. Trata-se, na verdade, de categorias que suscitam e orientam expectativas nos interlocutores de mensagens. Vejamos, então, o que Melo (2001) afirma:

‘(…) gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo modo de organizar as idéias, meios e recursos expressivos, suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades futuras. Num certo sentido, é o gênero que orienta todo o uso da linguagem no âmbito de um determinado meio, pois é nele que se manifestam as tendências expressivas mais estáveis e mais organizadas da evolução de um meio, acumuladas ao longo de várias gerações de enunciadores’.

Assim, documentários e reportagens especiais podem ser considerados gêneros da linguagem audiovisual. Por reportagem especial, compreendemos os materiais de cunho jornalístico, produzidos por jornalistas ou não, que apresentam características diferentes das notícias televisivas, tais como o tempo de duração – normalmente maior que nas notícias diárias – e o temário. Consideramos, entretanto, que esses não são os únicos critérios de diferenciação entre notícias e reportagens especiais e, em nossa pesquisa, pretendemos analisar outros elementos que influenciam essa distinção. Como exemplos de programas voltados para a produção de REs, citamos o Fantástico e o Globo Repórter, da Rede Globo de Televisão; e o SBT Repórter, do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Os dois primeiros programas foram utilizados para a captação do corpus da nossa pesquisa e deste artigo

(Os programas da Rede Globo de Televisão foram escolhidos devido: 1) à audiência superior em relação aos programas jornalísticos da outra emissora; 2) ao tempo de permanência na grade da televisão – uma vez que, no formato atual, o Globo Repórter já existe há 30 anos, e o Fantástico, há 25 anos; e 3) à bibliografia existente, ainda que parca, sobre os programas selecionados.

Já os documentários são tipos de produção que não estão ligados exclusivamente ao universo jornalístico. As conclusões do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Discurso da UFPE – dentro do qual foi desenvolvida esta pesquisa – apontam que os documentários são essencialmente híbridos, pois apresentam elementos tanto do jornalismo como do cinema.

(Após dois anos de estudos, o Grupo de Pesquisa em Comunicação e Discurso da UFPE concluiu que o gênero documentário televisivo possui um padrão relativamente estável de estruturação, caracterizado, sobretudo, pela hibridez. Relatos sobre a realidade, utilização de recursos ficcionais, presença de caráter autoral, discurso polifônico com efeito monofônico e organização tópica irregular são algumas particularidades encontradas nos documentários e que não nos permitem dizer que ele seja apenas um produto jornalístico ou um produto de ficção. Para mais informações sobre esses assuntos, consultar o site (www.welcometo/documentarios), elaborado pelo referido Grupo de Pesquisa).

Vejamos, agora, os títulos que integram o corpus desta pesquisa:

Reportagens especiais e programa

Dor Humana-Globo Repórter

Futebol-Globo Repórter

Tim Lopes-Globo Repórter

China-Fantástico

Plantas medicinais-Globo Repórter

11 de setembro-Globo Repórter

Documentários

Temática

Títulos

Direção

Biográfico

Duas Águas: João Cabral de Melo Neto

Dom Hélder – Um Dom sem Fronteiras

Cristina Fonseca

Luísa Brito, Roberta Duarte e Patrícia Araújo

Social

Ilha das Flores

Notícias de uma Guerra Particular

O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas

Jorge Furtado

João Salles e Kátia Lund

Paulo Caldas e Marcelo Luna

História, Artes e Cultura

Arquitetura do Lugar

Música para Rituais de Antropofagia Tecnocultural

Aurélio Michiles

Hermano Viana

Considerando, portanto, que documentários e reportagens especiais são gêneros distintos, capazes de gerar expectativas diferentes nos espectadores, buscamos estudar seus processos de confecção a partir de um fator preponderante: as rotinas de produção.

Verificamos que essas rotinas ganham forma e força a partir de duas variáveis. A primeira diz respeito às condições técnicas, às orientações das empresas que realizam produtos audiovisuais e aos constrangimentos organizacionais (termo usado por TRAQUINA) ‘impostos’ por elas. A segunda variável está diretamente ligada à força de trabalho e às idiossincrasias que cada realizador imprime no produto ao longo do seu processo de produção, isto é, aos elementos que escapam às determinações das empresas porque são típicos de um modus operandi que está longe de ser puramente objetivo.

Cabe considerar que chegamos a esses resultados a partir do estudo das rotinas de produção nas notícias diárias – impressas e televisivas. Nesse sentido, faz-se necessário percorrer o caminho traçado em relação às notícias para, posteriormente, aplicar nossas conclusões na análise da influência das rotinas em reportagens especiais e documentários televisivos.

A noticiabilidade

Partimos do pressuposto de que o jornalismo – seja ele impresso, televisivo ou produzido por outros meios – é uma atividade imersa em procedimentos caóticos, sobretudo porque lida com o imprevisível e a novidade. Segundo Wolf apud Motta (2002) ‘a organização do trabalho jornalístico está orientada para captar mais os acontecimentos pontuais, que representam ruptura, do que os constantes, que representam permanência, estabilidade’.

Na sociedade contemporânea, notícias são produzidas ‘em série’ considerando três fatores, de acordo com Golding e Elliot apud Rodrigo Alsina (1989): audiência, acessibilidade e conveniência. Para estar em consonância com esses fatores, o jornalismo precisa definir critérios de noticiabilidade e técnicas de planejamento capazes de apreender os fatos da realidade.

Sobre os critérios de noticiabilidade, Motta (2002) afirma, baseando-se em Mauro Wolf, que, ‘para adquirir o estatuto de notícia (…), o fato necessita ter os atributos chamados valores-notícia’. E completa:

‘Citando diversos autores, Wolf fala em nível hierárquico dos indivíduos envolvidos, impacto, sobre a nação, proximidade, quantidade de pessoas envolvidas, significância futura, novidade, recenticidade ou atualidade, e interesse público (critério abstrato e difícil de ser definido, segundo ele). Estes ‘valores-notícia’ não são igualmente importantes, sua hierarquia e combinação variam de lugar, circunstâncias e meio de comunicação. A noticiabilidade de cada fato parece ser produto da complementaridade e reciprocidade de seus atributos’.

Outros ‘valores-notícia’ citados por Motta podem ser mencionados, como a disponibilidade (ou acessibilidade); capacidade do fato de ser visualizado (sobretudo no caso da televisão); exclusividade; e equilíbrio ou seleção de um tema apenas para equilibrar um noticiário. Entretanto, é importante considerar que os critérios de noticiabilidade não se estabelecem apenas pelos atributos dos fatos em si, mas também pelas circunstâncias e exigências da natureza do trabalho jornalístico.

Assim, Wolf apud Pereira Júnior (1998) aponta que a noticiabilidade pode ser entendida como ‘um conjunto de critérios, operações e instrumentos com os quais os órgãos de informação enfrentam a tarefa de escolher, quotidianamente, entre um número imprevisível e indefinido de fatos, uma quantidade finita e tendencialmente estável de notícias’. Tuchman (1938) reitera esse conceito lembrando que ‘a noticiabilidade de um fato é um fenômeno extremamente negociado, construído pelas atividades de uma completa burocracia definida para supervisar a rede informativa’.

Essa ‘burocracia’ necessita definir estratégias de previsibilidade e planejamento, as quais se refletem e se efetivam, muitas vezes, pela rotinização do trabalho dos profissionais. Pereira Júnior (2000) é bastante enfático nesse sentido ao apontar que, numa redação, ‘tudo é organizado no sentido de que fatos imprevistos não afetem a produção diária do telejornal’. Vejamos o que diz Vieira (1991) sobre os procedimentos técnicos do jornalismo:

‘Eu tenho a concepção de que um jornal é uma questão de criar uma cultura orgânica (grifo nosso) jornalística uniformizada por critérios básicos (…) a atividade jornalística é muito contraditória: trata-se de uma atividade regida pela imperfeição. Por isso acho que procedimentos técnicos são vitais para circunscrever a possibilidade até estatística de erros (…).’

Novamente se baseando em Wolf, Motta (2002) explica:

‘(…) a noticiabilidade introduz práticas estáveis numa matéria-prima (os fatos que ocorrem no mundo), que é por natureza variável. E estabiliza a rotina da produção industrial nas empresas jornalísticas. Assim, faz notícia aquilo que é suscetível de ser trabalhado pela empresa jornalística sem demasiada alteração do ciclo produtivo normal. A noticiabilidade de um fato é avaliada quanto ao seu grau de interação aos processos rotineiros de produção industrial da notícia. Segundo este raciocínio, os ‘valores-notícia’ operacionalizam as práticas profissionais nas redações, sugerindo o que deve ser escolhido, omitido, realçado. São regras práticas que guiam os procedimentos profissionais nas redações, fácil e rapidamente aplicáveis, orientados para a eficiência produtiva.’

Para dar conta da cobertura dos fatos que atendem aos critérios de noticiabilidade do jornalismo, os profissionais dessa área criam mecanismos de previsibilidade que levam em consideração o fato em si, as exigências do trabalho jornalístico e o material humano que o desenvolve. Entre os vários mecanismos estabelecidos nas redações, citam-se a definição de pautas do dia; produção de matérias ‘frias’; divisão das notícias em blocos; entrevistas realizadas antecipadamente; definição de escalas de pessoal para coberturas jornalísticas especiais; recomendações das chefias para eventos previstos, datas comemorativas e/ou desdobramentos de fatos que já tiveram repercussão na TV ou em outras mídias; entre outros.

Isso significa que, pelas suas características de dinamicidade, registro e formação de um presente contínuo (termo usado por GOMIS), o jornalismo requer medidas que sistematizem a ‘linha de produção’ de notícias, a fim de que o material ganhe ordem, forma, e se adapte às normas que o suporte determina.

Dessa forma, esses dois fatores – os critérios de noticiabilidade e as estratégias de planejamento típicas do jornalismo – influenciam diretamente a maior ou menor presença das rotinas de produção. E, graças a estas, notícias factuais prescrevem formas de organização e estruturação bem específicas, sobretudo no caso da TV.

Porém, cabe lembrar que, sobre os critérios de noticiabilidade e mecanismos de previsibilidade/planejamento, atuam vários elementos: linha editorial; relação tempo X espaço na elaboração das notícias; temário dos fatos; fluxo de informações que chegam às empresas; quantidade de pessoas envolvidas no processo de produção; infra-estrutura disponível; relação com a publicidade e patrocinadores; experiência dos profissionais de comunicação; natureza dramática do fato a ser noticiado; definição da grade de programação; compromisso com a audiência; controle e aferição dos materiais produzidos; transformações tecnológicas, entre outros.

Documentários e reportagens especiais

Com base no que foi exposto acima, passamos agora a classificar as rotinas de produção do jornalismo e a analisar como essas mesmas rotinas podem se efetivar no processo de construção de formatos audiovisuais, sobretudo reportagens especiais e documentários.

Concebemos que as rotinas de produção não são uniformes. Elas se estabelecem pelas/nas macroestruturas e se refletem na microestrutura. Por macroestrutura entendemos o conjunto de orientações e limitações definidas por empresas – sejam elas de comunicação e/ou de outra natureza – que acabam por influenciar os produtos jornalísticos.

A microestrutura, por outro lado, pressupõe fatores intrínsecos ao ato de produzir, com todas as implicações objetivas e subjetivas decorrentes de um processo criativo, considerando o formato e o suporte de cada um dos produtos finais. O ato de construir uma narrativa midiática, por si só, já indica que cada realizador estabelecerá um processo de produção próprio. Entretanto, sobre cada um recaem diferentes níveis de restrições impostas pela macroestrutura.

Nossa análise aponta que, na macroestrutura, encontram-se as rotinas reconhecidas como verticais, enquanto que na microestrutura temos as chamadas rotinas horizontais. A partir daí, já é possível analisar os casos ou as situações em que documentários e reportagens especiais se aproximam, afastam-se ou coincidem.

Embora as rotinas verticais e horizontais se entrecruzem com freqüência no documentário e nas reportagens especiais, percebemos que no primeiro caso prevalecem as rotinas típicas dos produtos em que há um espaço maior para a subjetividade e índices de autoria do realizador, isto é, as rotinas horizontais. No segundo, incidem com mais propriedade as rotinas ligadas às empresas de comunicação, ou seja, as verticais.

As rotinas verticais parecem ‘cortar de cima para baixo’ o processo de construção dos produtos audiovisuais, como se elas fossem impostas e assimiladas. Já as rotinas horizontais são definidas pelo(s) profissional(is) ao longo do próprio processo de produção, ou seja, sua incidência está relacionada aos vestígios de subjetividade ‘distribuídos’ durante a confecção do produto. Por isso, podemos dizer que cada profissional irá delinear suas próprias rotinas, seu próprio modo de criar, sem deixar de considerar que este ‘modo’ sofrerá influência das rotinas verticais.

Essas perspectivas podem ser mais bem compreendidas quando levamos em consideração três fatores – bastante interligados entre si – que apresentam influências expressivas na caracterização das REs e documentários. São eles a presença do caráter autoral, a função social do jornalista e do documentarista, e o temário. A partir deles podemos verificar a incidência dos diferentes tipos de rotinas de produção nesses dois gêneros veiculados pela TV.

Inicialmente, vamos tratar do fator caráter autoral. Conforme foi observado pelo Grupo de Pesquisa em Comunicação e Discurso da UFPE nos dois primeiros anos de estudo, o documentário é um gênero que conserva características-padrão relativamente estáveis, mesmo quando consideramos documentários de diferentes temáticas (sociais, culturais, ecológicos, biográficos etc). Um dos elementos que nos permite dizer isso é o caráter autoral. Nos documentários, o caráter autoral é bastante evidente por conta da predominância do ponto de vista (ou defesa de uma tese) do diretor. Assim, vejamos o que diz o documentarista João Moreira Salles (Folha: 2001):

‘Da mesma forma que estou disposto a ler qualquer livro de, digamos Calvino, porque é de Calvino, verei qualquer filme do Coutinho, porque é de Coutinho. Não importa o assunto: o que eu quero de um filme do Coutinho é saber como ele, Coutinho, percebe a realidade. Um documentário ou é autoral ou não é nada.(grifo nosso) Ninguém pode confundir um filme de Flaherty com um filme de Joris Ivens. A autoria é uma construção singular da realidade. Logo, é uma visão que me interessa porque nunca será a minha. É exatamente isso que eu espero de qualquer bom documentário: não apenas fatos, mas o acesso a outra maneira de ver.’

Acreditamos que os documentários apresentam marcas de caráter autoral mais patentes do que outros tipos de produtos audiovisuais, como as reportagens especiais, por exemplo. Estas, por sua vez, sendo produtos ligados ao universo jornalístico, primam (ou dizem primar) pela imparcialidade e objetividade – mitos quase sagrados do jornalismo. Nesse sentido, as REs prescrevem formatos e padrões típicos da atividade jornalística que são responsáveis por passar a idéia de uma realidade ‘pura’, ‘objetiva’.

Cabe lembrar que consideramos ser impossível que produtos midiáticos estejam livres de elementos de subjetividade ou de marcas de autoria, já que qualquer tentativa de traduzir a realidade significa descontextualizar os fatos reais de seus locus e recontextualizá-los a partir de estrutura pré-definidas. Segundo Wolf (1994):

‘a fragmentação dos conteúdos e da imagem da realidade social situa-se exatamente, entre esses dois movimentos: por um lado, a extração dos acontecimentos do seu contexto; por outro a inserção dos acontecimentos noticiáveis no contexto constituído pela ‘confecção’, pelo formato do produto informativo’.

Assim, nem mesmo as notícias e as reportagens especiais – produtos tradicionalmente tidos como relatos da realidade – podem ser considerados puramente objetivos. Sobre isso, vejamos o que diz o Manual de Redação da Folha de S. Paulo (1984):

‘Não existe objetividade em jornalismo. Ao redigir um texto ou ao editá-lo, o jornalista toma uma série de decisões que são em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições pessoais, hábitos e emoções. Isto não o exime, porém, da obrigação de procurar ser o mais objetivo possível. Para retratar os fatos com fidelidade, reproduzindo a forma em que ocorrem bem como suas circunstâncias e repercussões, o jornalista deve procurar vê-los com distanciamento e frieza, o que não significa apatia nem desinteresse(..)’

Em relação às reportagens especiais, a aparente neutralidade das informações proporciona uma ilusão de imparcialidade e, por conseqüência, conquista a credibilidade da opinião pública. De acordo com Melo (1985), ‘a objetividade se converteu em sinônimo de verdade absoluta e é vendida como ingrediente para camuflar a tendenciosidade que existe na prática cotidiana dos veículos de comunicação’. Assim, numa análise comparativa, é mais difícil perceber as marcas do caráter autoral nas REs do que nos documentários.

Distinções

Isso pode ser mais bem entendido quando se considera a distinta função social do jornalista e do documentarista. Apesar de ambos construírem ‘discursos sobre a realidade’, o jornalista assume uma vocação pública específica, um ‘compromisso ético’ de ser, essencialmente, um tradutor objetivo dos fatos de interesse público; enquanto o documentarista tem a função de, por meio de sua própria visão de mundo, ‘dar’ noticiabilidade ou despertar o interesse sobre um determinado assunto.

(Consideramos que existe a possibilidade de um jornalista atuar em uma produção independente como documentarista e vice-versa. Entretanto, nossa principal colocação diz respeito ao papel que esses profissionais assumem quando estão realizando reportagens especiais e documentários.)

No caso do jornalismo, opinar, tomar partido ou se expor são sinais repreendidos pelas próprias redes definidoras das rotinas que regem o trabalho do jornalista. Ou seja, os sinais da visão de mundo do jornalista são indicadores da sua tendenciosidade e, em última instância, manipulação da informação.

Ideais de imparcialidade e objetividade na prática jornalística ajudaram a criar rotinas de captação de informações, organização desse material e veiculação para o público. A busca pelos ‘dois lados de um fato’ é um exemplo disso, já que ao jornalista cabe (ou deveria caber), a função de fornecer informações sobre todas as fontes ligadas a um mesmo assunto.

Outro exemplo seria a pauta. No caso de temas atemporais – como a fome ou a violência no Brasil, por exemplo – a ausência de pauta pode deixar o repórter ‘solto’ para a realização da reportagem, dando margem para que seus conhecimentos de mundo e especulações orientem o seu trabalho. Entretanto, quando o profissional sai pautado da redação, ele recebe uma série de instruções (ou restrições) sobre quem procurar, qual o foco principal, quais as locações ideais – enfim, uma certa orientação sobre matéria ou reportagem a ser desenvolvida.

Já os documentários podem ser considerados por excelência os produtos nos quais as marcas de autoria prevalecem. Não é possível, portanto, julgar um documentário pelo viés jornalístico. De acordo com Gomes, Melo & Morais (2001), esse gênero traz sempre uma ‘moral da história, que atua como pano de fundo no desenvolvimento de toda argumentação’. Assim, podemos afirmar que haverá tantos documentários quanto mais existirem pessoas para realizá-los. Isso implica dizer que cada produto terá uma rotina de trabalho própria, já que cada um apresenta as teses de uma pessoa (documentarista) sobre um tema ou alguém.

Vejamos então o que nos diz o crítico de cinema e articulista Amir Labaki (Folha:2001):

‘Objetividade é uma utopia a perseguir para o jornalismo, seja escrito ou audiovisual, mas não para o documentário. O cinema não-ficcional é uma oba de arte que carrega a visão de mundo de seu criador, tanto quanto qualquer filme de ficção esteticamente engajado. Exige-se a busca de objetividadede uma reportagem da CNN ou de um especial da BBC, mas não de um documentário de Johan van der Keuken, de Frederick Wiseman ou de Geraldo Sarno. O compromisso aqui é com algo mais difuso e complexo do que a mera ‘objetividade’. O documentarista procura ser fiel a um só tempo à sua verdade e à verdade dos personagens e situações filmadas. Não se busca um recorte pretensamente objetivo ou neutro do mundo. O documentário oferta-nos, isso sim, um mundo novo, forjado no embate entre a realidade filmada e a sensibilidade de um cineasta.’

O caráter autoral do documentarista se apresenta, portanto, de forma eloqüente, já que ele não está preso a normas de isenção como os jornalistas. Por mais que tente ‘traduzir a realidade’, o documentarista não precisa seguir um formato fixo de produção, não está obrigado a atingir uma suposta imparcialidade, nem a dissimular mensagens subjacentes que o material produzido por ele – voluntária ou involuntariamente – traz. A visão de mundo/tese do realizador do documentário é facilmente percebida. Sejam quais forem as rotinas produtivas de realização dos documentários ou as estratégias para imprimir objetividade ao produto, elas não conseguem se sobrepor ao caráter autoral do documentarista.

Considerando os dois fatores acima mencionados e avaliados – a presença do caráter autoral e a distinta função social do jornalista e do documentarista – podemos dizer que as chamadas rotinas verticais, aquelas que são impostas pela malha institucional e pelas exigências do trabalho jornalístico, têm maior influência sobre as REs, uma vez que estas sofrem a incidência mais efetiva dos constrangimentos organizacionais ao longo da sua produção.

No caso dos documentários a situação se inverte. Por apresentarem rotinas menos restritivas e por serem um tipo de produto em que prevalece o caráter autoral, recaem com mais proeminência sobre os documentários as chamadas rotinas horizontais, as quais permitem deixar, no produto final, um ponto de vista particular – o do enunciador –, impregnado de avaliações, prescrições e valores simbólicos. Não seria o caso de afirmar que os documentários recebem tratamento mais criativo dos seus realizadores em comparação com as reportagens especiais. Entretanto, podemos falar, no caso dos primeiros, em maior liberdade em relação às rotinas verticais – mais incidentes nas REs.

Passemos agora a avaliar o terceiro fator que tem significativa influência na definição dos tipos de rotinas que incorrem sobre os documentários e as REs: o temário e a sua relação entre tempo e espaço.

Um ponto de aproximação entre documentários e reportagens especiais é o temário, que, nesses casos, é normalmente marcado por assuntos que permitem uma abordagem informativa atemporal. Isso fica ainda mais perceptível quando fazemos a comparação entre esses gêneros e o jornalismo diário, cuja essência está no fato novo e inédito.

Em documentários e reportagens especiais, verificamos a predominância de temas que, mesmo sendo atuais – como, por exemplo, tráfico de drogas, desaparecimento de crianças, personalidades famosas que exercem influência em diversas áreas do conhecimento etc –, não correspondem explicitamente a um acontecimento (fato jornalístico) em particular e isolado, mas a um contexto. Tais temas, normalmente, podem ser trabalhados sob diversas óticas, já que não precisam estar presos ao esquema de produção das notícias diárias.

Assim, quando comparados às notícias, os documentários e as REs apresentam uma incidência maior de temas atemporais. Entretanto, ao colocarmos na mesma balança esses dois tipos de produtos, verificamos que as REs tendem a estar ligadas a uma certa temporalidade factual, que pode ser explicada pela necessidade de se atender ao ciclo de vida dos fatos jornalísticos.

Como pode ser visto na página 4, nosso corpus inclui reportagens especiais sobre os atentados do 11 de setembro, a morte do jornalista Tim Lopes e a CPI do futebol – temas que irromperam nas redações brasileiras e que, por conta da sua natureza imprevisível e surpreendente, exigiram das emissoras um tratamento noticioso mais aprofundado do que os relatos superficiais dos telejornais.

Isto significa que o impacto que esses fatos geraram nas redações e no público determinou o seu desenvolvimento no tempo, ou seja, fez com que o fato ‘evoluísse’ da simples notícia para reportagens especiais. Enzensberger apud Berger (2002) aponta a impossibilidade de encontrar no discurso jornalístico diário o sentido dos acontecimentos. A produção de reportagens especiais pode se justificar principalmente como uma tentativa de suprir essa lacuna deixada pelas notícias.

Considera-se, portanto, que as empresas de comunicação, por meio das rotinas de trabalho, podem ‘gerar’ e ‘amadurecer’ temários e ritmos de propagação desse temário, dando origem, por exemplo, às reportagens especiais – que atendem/atingem o público de forma diferente das notícias diárias. O temário é, portanto, uma medida definidora no desenvolvimento do ciclo de difusão de fatos e temas, já que ele ajuda a determinar conteúdos e formatos de produtos audiovisuais.

E mesmo nas reportagens especiais que não se referem propriamente a um fato específico determinado no tempo, percebemos que o seu desenvolvimento recai sempre na tentativa de se aproximar de algum tema bastante em voga na mídia.

No caso das séries de reportagens sobre a China, foi verificada uma constante retomada da discussão sobre o atual papel desse país na economia do mundo, sua nova configuração política, bem como as implicações desses fatores para o processo de globalização – assuntos que suscitam grandes debates na atualidade.

Podemos citar ainda a ênfase que o programa Globo Repórter deu, em sua edição sobre plantas medicinais, nas recentes pesquisas e descobertas sobre o tratamento de doenças, como o câncer e a aids. Essa tentativa de aproximação da atualidade se efetiva ainda na reportagem especial sobre dor humana – também do Globo Repórter – na qual são apresentados os avanços da tecnologia para minimizar dores de recém-nascidos, as formas de tratamento da LER (lesão por esforço repetitivo, que, hoje, é uma das principais responsáveis pelos afastamentos de profissionais de seus postos de trabalho) – e outros temas contemporâneos.

Assim, as reportagens especiais – ainda que indiretamente ou quando tratam de temas gerais – apresentam caráter factual, embora com menos intensidade que as notícias. A necessidade de conexão com os temas da atualidade – que, aliás, é uma imposição das empresas de comunicação – também aponta para o fato de que as REs sofrem mais interferências das rotinas verticais.

No caso dos documentários, o que se percebe é que o fato/tema ou o desenvolvimento deste não está exatamente ligado ao tempo real de ocorrência. Isso se dá por conta dos dois outros fatores analisados anteriormente: caráter autoral e função desempenhada pelo documentarista.

O ponto de vista acima pode ser verificado nos filmes que integram o nosso corpus de análise, sobretudo nos documentários de natureza biográfica (Dom Hélder – O Dom da Paz’ e ‘Duas Águas: João Cabral de Melo Neto’), e nos que tratam de temas relacionados à história, artes e cultura (‘Arquitetura do Lugar’ e ‘Música para Rituais de Antropofagia Tecnocultural’).

E, mesmo quando levamos em consideração os títulos de temáticas da atualidade – como é o caso dos documentários sociais – percebemos que o tratamento do tema não é baseado numa perspectiva jornalística e sim numa perspectiva autoral, isto é, na defesa de um ponto de vista e na expressão de marcas de subjetividade.

Verificamos essa hipótese nos documentários ‘Notícias de uma Guerra Particular’, ‘O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas’ e ‘Ilha das Flores’ – que tratam, respectivamente, do tráfico de drogas no Rio de Janeiro; violência urbana; e miséria e desigualdade social no Brasil. Por mais que esses filmes apresentem temáticas que estão sendo trabalhadas freqüentemente pela mídia, eles funcionam mais como o registro – quase um documento – do ponto de vista singular do diretor do filme do que como um registro noticioso. Essas considerações nos remetem novamente à maior influência das rotinas horizontais sobre os documentários televisivos.

Avaliando os níveis das rotinas que interferem nos produtos audiovisuais estudados nessa pesquisa, notamos que as notícias refletem o auge da incidência das rotinas verticais, enquanto as reportagens especiais, numa escala evolutiva, ficam na área intermediária entre as notícias e os documentários. Estes, por sua natureza e por representarem o ponto diametralmente oposto às notícias, sofrem mais influência das rotinas horizontais.

Rotinas de produção

A presente pesquisa compreendeu que um dos caminhos para reconhecer as diferenças entre reportagens especiais e documentários televisivos consiste em verificar as rotinas de produção que incidem sobre esses dois formatos.

Para estudar as formas como essas rotinas se efetivam, estabelecemos duas categorias distintas: as rotinas verticais, definidas pela macroestrutura, isto é, a partir das orientações das empresas/instituições que produzem reportagens especiais ou documentários; e as rotinas horizontais, definidas pela microestrutura, ou seja, pelas idiossincrasias que cada profissional (jornalista ou documentarista) imprime, ao longo do seu trabalho, no seu respectivo produto.

Com base nisso, verificamos que três fatores têm relevância no condicionamento das rotinas que regem a organização e estruturação de reportagens especiais e documentários: 1) função do jornalista ou documentarista, 2) caráter autoral, 3) temário.

Nossas análises confirmam a hipótese de que os documentários, em relação aos materiais jornalísticos, apresentam forte caráter autoral. Isso ocorre porque o relato sobre a realidade desenvolvido pelo documentarista é feito a partir de sua própria visão de mundo, dando margem, assim, à presença de índices de subjetividade. Percebemos também que os documentários televisivos tratam, normalmente, de temas atemporais. Soma-se a isso o fato desse produto audiovisual não possuir um formato de produção rígido – como acontece com os produtos jornalísticos. Dessa forma, podemos dizer que os documentários sofrem maior influência das rotinas impostas pela microestrutura, isto é, das rotinas horizontais.

Numa posição bem diferente encontram-se as reportagens especiais. Mesmo considerando que elas também trabalham com temários não-factuais, esse formato apresenta distinções em relação aos documentários. Isso pode ser verificado porque a RE, por estar diretamente ligada ao universo jornalístico, tem a função de mostrar uma realidade atual e ‘limpa’, ou seja, sem juízos de valor – mesmo sabendo que isso não se efetiva na realidade. Verificamos também que, nas REs, os índices de subjetividade e o caráter autoral do jornalista não prevalecem no resultado final. Nesse caso, acreditamos que pesam com mais intensidade sobre as reportagens especiais as rotinas ligadas à macroestrutura, isto é, as rotinas verticais.

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Doutora, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)