Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Sinal verde para o futuro?

‘A linguagem de autoridade governa sob condição de contar com a colaboração daqueles a quem governa, ou seja, graças à assistência dos mecanismos sociais capazes de produzir tal cumplicidade, fundada por sua vez no desconhecimento, queconstitui o princípio de toda e qualquer autoridade.’ (Pierre Bourdieu, A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 1996, p. 91)

Vinte quatro anos depois de sua ‘pedra fundamental’, sai, enfim, a notícia: ‘Sinal verde para Angra 3 [ORDOÑEZ, Ramona. ‘Sinal verde para Angra 3’. O Globo, 01 de junho de 2010]’. Embebido por leituras que buscam me orientar no desafio profissional que abracei desde outubro último, quando assumi cargo de docente na chamada ‘Região da Costa Verde’, lembrei-me de cara da ‘etnografia pioneira’ de Glaúcia Oliveira da Silva, que em seu já clássico Angra I e a melancolia de uma era fez um estudo sobre a construção social do risco na primeira usina nuclear brasileira.

No livro, publicado em 1999, a antropóloga, através de uma observação direta e participante, busca compreender como a interiorização das relações sociais pelos agentes da usina, as redes de sociabilidade atravessadas por relações hierárquicas e a dinâmica das ‘fofocas’ no entorno revelam as tensões locais dessa indústria considerada por muitos, tais como a pesquisadora Françoise Zonabend, o ‘mal indizível’. Para tanto, Silva percorre, em sua pesquisa, as linhas gerais dos debates que perfizeram o ‘Programa Nuclear Brasileiro’ (especialmente a sua alternativa ‘pacífica’, voltada exclusivamente para a produção de energia), analisa as representações sociais dos moradores das vilas circunvizinhas criadas pela própria empreitada, destrincha as relações de trabalho dentro da usina, aborda a forma com que trabalhadores (e outros agentes, tais como as famílias destes) pensam a questão do risco nuclear oferecido pela empresa que os sustém e, por fim, faz um exercício comparativo entre os modos ‘tupiniquim’ e francês de lidar com esse tipo de atividade.

Uma adesão com ares ecológicos

Longe de ‘falar bem’ ou ‘falar mal’ da energia nuclear, bem distante de uma condenação (ou absolvição) técnica sobre os perigos da usina em questão (‘uma vez que eu não tinha instrumental para isto’, salienta a antropóloga, na página 24 de sua apresentação), a obra de Silva estimula-nos uma sofisticada reflexão sobre como a ideia de ‘risco’ é, mais do que uma percepção individual, um construto social atravessado pelas disputas ideológicas que buscam balizar e legitimar as decisões políticas favoráveis (ou não) a este e outros tipos de tecnologia que impactam a vida de todos nós. Sintoma, pois, de nossa moderna delegação de confiança ao que Anthony Giddens, sociólogo inglês, chamou de ‘sistemas peritos’, que na dita ‘pós-modernidade’, imposta em nós e a todos nós, parecem feitas para produzir uma distância ampliada e amplificada entre o senso comum hiper-informado (nem por isso bem formado) e os órgãos portadores da chamada ‘racionalidade técnica’ que se superpõem aos cada vez mais complexos e confusos agrupamentos humanos – e que assumem, no caso das sociedades contemporâneas, o seu limite com a busca de saciar nossa sede de consumo com a produção de energia, especialmente a nuclear.

Elas [as sociedades contemporâneas] exploram uma forma de energia – a do átomo – trazendo em si a capacidade de destruição absoluta ou, quando mais pacificada, de risco. Elas sentem a limitação de recursos em matérias-primas e energéticas, e estão envolvidas em uma guerra econômica endêmica. Elas se descobrem – e o confessam mais ou menos – culpadas de poluições e depredações da natureza (BALANDIER, 1982, p. 15) [Apud SILVA, Gláucia Oliveira. Angra I e a melancolia de uma era. Niterói, RJ: EdUFF, 1999].

Nesse sentido, a mais aguda surpresa que a releitura da obra de Silva revela é a mudança abrupta no posicionamento da mídia hegemônica frente à produção de energia nuclear. Ao invés da antiga postura alarmista e depreciativa dos tempos de Angra I e II (motivada, na voz dos que defendiam e dependiam das usinas, por ‘ignorância’ ou ‘interesse’) um rápido olhar sobre as manchetes relativas à recente licença concedida para a construção de Angra III denotam uma adesão, sem pudor, ao mote de que é hora desse tipo de atividade ‘deslanchar’ [DELMAS, Maria Fernanda. ‘Angra 3, agora, tem que deslanchar’. O Globo, 02 de junho de 2010]. Em tempos de ‘desenvolvimento sustentável’, vale ressaltar, essa adesão ganha ares ecológicos, já que, sob esse prisma, os ‘boicotes’ da suposta indústria ambientalista levariam o país a sujar ‘sua matriz energética com térmicas a carvão e óleo’ [‘Rumo ao apagão’. O Globo, 02 de junho de 2010].

Um futuro cada vez mais verde

O que o título (‘Rumo ao apagão’) desse editorial, em tom de – me desculpem o exagero – quase-chantagem, não consegue esconder, é que o que não se pode colocar em xeque é, justamente, o mito do ‘desenvolvimentismo’ – criador, per si, de bem-estar social (para quem?). Em nome desse dogma, parecem ter se tornado supérfluos as arguições sobre: o destino dos resíduos nucleares (o ‘lixo nuclear’ ainda não aproveitável); a necessidade de um novo plano de evacuação em caso de vazamento (risco que aumenta, obviamente, com mais uma nova usina e com as atuais condições de tráfego na sôfrega Rio-Santos); os impactos sócio-econômicos numa região com graves problemas ambientais, com destaque para as ocupações – de ricos e pobres – nas muitas e belas encostas de Mata Atlântica (ainda não recuperadas das chuvas do início do ano); e, entre outras questões ‘menores’, a possibilidade (ou não!) de reedição de equívocos na compra dos pacotes tecnológicos – relembrando, por exemplo, o golpe turn-key (entrega da usina ‘fechada’) pelos norte-americanos, no caso de Angra I.

Pelo menos é o que se pode concluir da repercussão jornalística até o momento, que nada mais fez do que comemorar o fato da ‘rejeição à energia nuclear’, hoje, ser menor do que antes. Sem se perguntar dos porquês desse fenômeno, tal mídia acaba por se ‘reduzir’ a um simples instrumento de reprodução de poder, tornando-se o ‘sistema-perito mor’ de nosso ‘senso comum’. Reforça, assim, a eficácia dos saberes que difunde como instrumento de dominação simbólica (social, política e econômica) – portadora, portanto, de uma suave ‘linguagem de autoridade’, com já bem definida por um saudoso sociólogo francês, citado na epígrafe desse artigo.

Oxalá eu esteja em engano pela pressa (e ansiedade) e, em breve, veja nas páginas dos nossos jornais (e sites!) debates mais aprofundados sobre os aspectos, positivos (por que não?) e negativos, que envolvem a construção de mais uma usina nuclear em Angra dos Reis. Ganharemos, com isso, em termos sociais, melhores condições para a produção de verdes sinais para um futuro cada vez mais verde.

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Professor adjunto de Sociologia da Educação do Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense (IEAR/UFF)