Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Sobre pedras e tijolos

Um ditado popular costuma ilustrar como estão distantes os mundos ideal e real: ‘É fácil ser pedra; difícil é ser vidraça!’ Traduzindo: é sempre muito mais cômodo ou descomplicado criticar, acusar e cobrar do que propriamente enfrentar situações incômodas e delicadas.

Esses dizeres se aplicam facilmente a diversas áreas, e em especial ao jornalismo. Isso porque analisar os produtos e os processos de produção da informação tem se tornado uma prática cada vez mais frequente em todas as partes. Nos Estados Unidos, na Escandinávia e em outros países da Europa, a crítica de mídia é um exercício consolidado e bastante influente. Na África, ela é ainda incipiente; na Oceania, apenas a Austrália se destaca nesse processo; na Ásia, existem circunstâncias muito distintas, o que inviabiliza um diagnóstico mais generalizador no continente. Na América Latina, a observação atenta dos meios de comunicação tem se desenvolvido em consonância com a evolução dos processos políticos dos países. Isto é, à medida que as democracias foram se sedimentando no subcontinente, à medida que a estabilidade política foi se naturalizando, a análise da mídia ganhou corpo e se difundiu. Isto é, comunicação e política têm raízes comuns, trajetórias paralelas e problemáticas particulares. Como se trata de processos históricos – a redemocratização da América Latina e a consolidação da crítica do jornalismo –, ainda se vive um dia de cada vez, pedra por pedra.

Alfabetizar midiaticamente e aperfeiçoar o jornalismo

Por falar em pedra, a media criticism é um processo de conversão do tijolo em vidraça. Sob o olhar exigente do analista, o jornalismo – tão afeito à fiscalização dos poderes, às cobranças sociais – fica acuado, subsumido, objetivado. Produtos, processos, rotinas e práticas são avaliados, medidos, comparados, o que muito pode contribuir para o seu aperfeiçoamento.

O jornalismo brasileiro se desenvolveu muito nas últimas décadas, por exemplo. Fruto da modernização das empresas, do aprimoramento técnico dos profissionais, do aumento da exigência do público e de uma cultura ainda emergente de crítica e autocrítica. A internet é o ambiente mais fértil em experiências de media watching, mas existem programas de rádio, de televisão e raras publicações que funcionam como arenas de debates. No meio acadêmico, projetos de extensão e de pesquisa também elegem os meios de informação como objetos de investigação e escrutínio. Organizações não-governamentais e associações classistas também oferecem suas contribuições. Profissionais e empresas de comunicação enfrentam menos as delicadas questões que os afligem, mas não chegam a ignorar os críticos.

Um exemplo do estágio evolutivo da media criticism brasileira é a Rede Nacional de Observatórios de Imprensa (Renoi), coletivo surgido em 2005 que reúne projetos acadêmicos e ONGs na tentativa de disseminar uma cultura efetiva de consumo crítico da informação jornalística. Seja na forma de pesquisas em âmbito regional ou nacional, na constituição de instâncias de observação prática da mídia ou ainda na forma de comunicações em eventos, a Renoi vem oferecendo suas contribuições ao jornalismo. O que atravessa as produções dessa rede é o entendimento de que a crítica de mídia tem duas funções preponderantes: alfabetizar midiaticamente e contribuir para o aperfeiçoamento do jornalismo. De um lado oferecer ao público bases para uma compreensão cada vez mais clara e ampla do que é o jornalismo, e de outro, intervir concretamente para uma melhora em produtos e processos de apuração, produção e difusão informativas.

Rígido no espírito, mas de natureza construtiva

O livro que o leitor tem agora diante de si é mais um esforço coletivo a favor do jornalismo e de seus públicos. Não se trata de mais uma pedra na janela, mas uma nova tentativa de mirar a vidraça como vitrine. Estão em jogo, portanto, exposição, visibilidade, ambiente de emergência de aspectos positivos e negativos.

Por isso, este volume se divide em duas partes. Na primeira, os autores discorrem sobre valores, conceitos e métodos para se analisar a mídia, sinalizando uma preocupação comum: como se deve criticar o jornalismo? Na segunda parte, o escopo é o que se colhe com a observação rigorosa e sistemática, e neste sentido, a atenção recai para um tema cada vez mais discutido no jornalismo: a qualidade. Como se pode medir a qualidade de um jornal? Ou dito de outra maneira: por que um veículo é melhor que outro numa certa cobertura? Nossos autores tentam responder tais questões, mas acima de tudo apresentam a tensão permanente que, muitas vezes, contrapõe critérios jornalísticos e metas comerciais, preocupações sociais e pressões políticas, entre outras.

Portanto, neste livro, o leitor não tem diante de si uma pedra contra a vidraça. Seria fácil, cômodo, confortável, leviano apenas atacar o jornalismo. Propomos que o leitor veja neste livro um tijolo: rígido no espírito, áspero na superfície, mas de natureza inalienavelmente construtiva.

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Jornalista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina