Num livro em que discute a relevância de um certo jornalismo contemporâneo (Simulacro e poder – uma análise da mídia, Editora Fundação Perseu Abramo), Marilena Chauí evoca o episódio da rede de televisão brasileira que obteve uma entrevista exclusiva com o presidente da Líbia, logo após o bombardeio de sua casa pela aviação norte-americana, em 1986. Relata:
‘Foi constrangedor para Kadafi e para os telespectadores ouvir as perguntas: `O que o senhor sentiu quando percebeu o bombardeio? O que o senhor achou desse ato dos inimigos?´ Nenhuma pergunta sobre o significado do atentado na política e na geopolítica do Oriente Próximo: nenhuma indagação que permitisse furar o bloqueio das informações a que as agências noticiosas norte-americanas submetem a Líbia’.
Esta passagem nos vem à cabeça a propósito da discussão promovida por Alberto Dines no programa televisivo do Observatório da Imprensa (TV Brasil, 26/5/2009, ver ‘A formação dos jornalistas‘), sobre o trabalho de uma comissão encarregada pelo MEC de avaliar o currículo dos cursos de jornalismo no país. Na parte suprimida pela edição do depoimento que demos, levantávamos uma questão bastante rara nos debates sobre o assunto: o problema da determinação da capacidade dos cursos em preparar jornalistas pode estar sendo mal formulado. De fato, cabe uma indagação incômoda: o jornalismo aqui praticado é tão bom a ponto de requerer um optimum de aperfeiçoamento por parte dos futuros profissionais? Ou, então, será que a mídia tal e qual existe em sua totalidade de suportes deseja realmente uma classe ‘logotécnica’ de altíssimo nível?
Escopo mais amplo
É claro que proprietários e dirigentes das mais variadas mídias responderiam afirmativamente a estas perguntas. Afinal de contas, no espaço público – ou publicitário – das tecnodemocracias ocidentais, os responsáveis pelas corporações midiáticas se obrigam à produção de um discurso dito ‘ético’ ou ‘formativo’ sobre a sua atividade. Isto faz parte da manutenção da ideologia liberal que lastreia a atividade jornalística desde o século 19, reforça a doutrina da livre expressão pública e concorre para legitimar os enormes investimentos em publicidade por parte de Estado e conglomerados industriais.
A informação pública de alta qualidade é uma espécie de horizonte mitológico para a deontologia (a ética dos deveres profissionais) jornalística, que necessariamente inclui o discurso da demanda de alta competência técnica.
Mas é isso mesmo o que acontece na prática?
Antes de uma resposta direta, é preciso ressalvar que curso superior nenhum fornece profissionais prontos e acabados para o mundo da produção. Num curso de medicina, por exemplo, os estudantes aprendem, durante seis anos, a aprender, isto é, capacitam-se a filtrar o que lhes será essencial em sua forma específica de produção da saúde e que lhes será efetivamente transmitido na residência médica, o estágio hospitalar, às vezes de duração comparável à da faculdade. Em qualquer caso, aprende-se a produzir ali onde o trabalho se dá, no contexto das forças produtivas. Ao ensino superior cabe formar o cidadão-profissional, abrindo-lhe os caminhos da inserção social por meio da ética e da ciência. No primeiro caso, mostrando-lhe que a técnica não se desvincula dos fins coletivos; no segundo, que a pesquisa científica é o horizonte de alargamento da técnica.
A técnica jornalística é importante, mas em nada comparável à complexidade e aos riscos de vida imediatos inerentes à prática médica. Isto significa que o jornalismo não deva ser objeto de ensino universitário? Claro que não. Em sociedades irreversivelmente midiatizadas (instituições sociais em funcionamento quase simbiótico com mídia), cujo próprio solo relacional é feito de informação, a comunicação é matéria complexa, de conceituação anexa à de cultura.
A ontologia dos fatos sociais em nossa época não é totalmente independente dos dispositivos que os tornam socialmente visíveis. A exemplo da guerra tal como definida por Georges Clemenceau (1841-1929) – ‘séria demais para ser deixada apenas aos militares’ –, a comunicação social tem escopo mais amplo do que o da pura e simples técnica jornalística que, aliás, se aprende em muito pouco tempo. A formação do profissional de informação requer um tipo de conhecimento adequado a um analista social aplicado.
Espírito adormecido
Para além destas ressalvas, há o ensaio de uma resposta direta à pergunta sobre o que acontece na prática profissional das mídias, levando em consideração a realidade da economia midiática, em que uma dúzia de conglomerados globais acrescentam à propriedade dos meios de comunicação tradicionais o controle dos eletrônicos, avaliando as suas atividades em termos estritos de custo-benefício. O que se tem tradicionalmente chamado de jornalismo não escapa a esse tipo de poder, que o leva a tornar-se, para se salvar como produto de mercado, ‘cada vez mais rápido, inexato e barato’.
A essa realidade queríamos aludir no começo, com a citação da análise empreendida por Marilena Chauí. Ela referenda Christopher Lasch (autor de A Cultura do Narcisismo, Editora Imago), para quem…
‘…os mass media tornaram irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade, substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade – para que algo seja aceito como real basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável. Os fatos cederam lugar a declarações de `personalidades autorizadas´, que não transmitem informações, mas preferências, as quais se convertem imediatamente em propaganda’.
Por isso, a entrevista de Kadafi ‘reduziu-se aos seus sentimentos paternos e conjugais perante o terrorismo inimigo’, e ‘o acontecimento político foi transformado em uma tragédia doméstica e da vida pessoal de uma das mais importantes lideranças do mundo árabe’.
Talvez não seja suficiente como mote para a reflexão profunda a evocação desse pequeno episódio como emblema do que se está tornando a prática informativa da mídia hegemônica. Mas ele é capaz de despertar o espírito adormecido do que Alfred Jarry (1873-1907) chamou de ‘patafísica’ ou ‘ciência das soluções imaginárias’. Um patafísico perguntaria: em vez de criticar currículos, não seria o caso de os intelectuais coletivos das classes dirigentes conhecidos como ‘mídias’ se matricularem nas escolas de comunicação?
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro