Uma cidade no interior do Brasil. O programador do canal universitário de TV local tem de montar a grade de exibição para a próxima semana e confere os programas enviados pelas duas universidades que integram a emissora. São apenas 10 horas de material original, e mais 20 horas de programas já exibidos anteriormente. A soma não atinge, nem de longe, as 168 horas necessárias, entre inéditos e reprises, para que o canal fique no ar os sete dias da semana, 24 horas por dia. Se o programador simplesmente distribuir pela grade as 30 horas disponíveis, o volume de repetições será alto demais, intolerável para o telespectador.
A solução para isso? O programador abre um dos computadores do canal – um computador comum, com boa capacidade de armazenamento de dados e um processador ágil, nada extraordinário – e entra na internet, buscando o site da Rede de Intercâmbio de Televisão Universitária (RITU). Digitada uma senha de acesso, abre-se diante dele uma tela repleta de programas de televisão, produzidos por instituições de ensino superior de todo o país.
Ele escolhe os programas que têm mais adequação à grade de seu canal e faz o download para o seu computador. Se quiser, nem esse trabalho de escolha ele tem: baixa diretamente a grade de programação da RITU, com os programas disponíveis já empacotados, com vinhetas, chamadas etc, prontos para exibição. É só salvar o pacote, para exibi-lo depois, ou jogá-lo diretamente para a saída do sinal – o transmissor de TV aberta, o cabo ótico da TV paga – para levá-lo ao telespectador.
Esse cenário, ainda utópico no cotidiano dos mais de 50 canais universitários em operação no Brasil, será realidade a partir de 2007, quando começar a funcionar regularmente a RITU. Viabilizada por um convênio entre a Associação Brasileira de Televisão Universitária (ABTU) e a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), organização social ligada aos ministérios da Ciência e Tecnologia e da Educação, a rede que é o grande sonho da televisão universitária brasileira será lançada oficialmente na quarta-feira, 13 de dezembro, em Brasília. Mas já está se organizando há dois anos, num trabalho silencioso que mobiliza nove universidades, além da RNP e da ABTU.
Produção regular
A idéia de compartilhar programas e operar conjuntamente uma grade nacional de programação está na raiz da própria TV universitária brasileira. Já em 1997, quando se realizou na Universidade de Caxias do Sul (RS) o I Fórum Brasileiro de Televisão Universitária, evento pioneiro desse segmento da televisão educativa, a conclusão unânime das instituições participantes foi de que precisavam construir meios de permutar programas, para aumentar a qualidade e a diversidade de conteúdos de seus canais, reduzindo os custos de programação e permitindo concentrar os recursos disponíveis na produção.
Ou, dizendo de outra forma: em vez de produzir vários programas com sacrifício, para dar conta da programação, mesmo obtendo uma qualidade discutível, concentrar os recursos em menos programas, complementando a grade com programação recebida de outros canais ou produtoras universitárias.
Em torno dessa meta – construir a operação em rede nacional –, a televisão universitária foi se articulando, enquanto crescia. Incontáveis seminários e reuniões foram feitos na última década para discutir a idéia da rede, e as relações que se estabeleceram entre as instituições que participaram desse processo levou à fundação, em outubro de 2000, da ABTU, hoje a legítima representante dos interesses da televisão universitária brasileira, com 40 universidades e centros universitários associados, de todas as regiões do Brasil. Com a entidade coordenando os esforços pró-RITU, foi possível chegar ao acordo com a RNP e à configuração atual do projeto.
Cerca de 120 instituições de ensino superior produzem televisão regularmente no país. Elas controlam um mínimo de 52 canais geradores de conteúdo, que estão na TV aberta, na TV a cabo, na TV paga por microondas (MMDS) e na internet. Os mais antigos já têm quase quatro décadas e são emissoras educativas abertas, ligadas às redes de difusão da TV Cultura de São Paulo ou da TV Educativa do Rio de Janeiro. É o caso da TV Universitária do Recife, mais antigo canal educativo do país (1968), e de emissoras correlatas de Natal, Cuiabá, Boa Vista, Palmas, Ouro Preto, Viçosa e outras cidades, todas controladas por universidades.
Cem parceiros
A maioria dos canais existentes hoje, entretanto, surgiu a partir de 1995, quando foi promulgada a Lei 8977 (chamada Lei da TV a Cabo), que criou a figura dos ‘canais básicos de utilização gratuita’, de carregamento obrigatório pelas operadoras e sem custo para os programadores. Entre eles está o canal universitário, para ser compartilhado pelas universidades existentes na área de prestação de serviços da operadora de cabo.
Com a facilidade oferecida pela lei, de acesso à TV a cabo sem os altos custos de veiculação cobrados pelas emissoras comerciais ou os investimentos consideráveis para a montagem de uma emissora aberta educativa, dezenas de universidades puderam se concentrar em produzir programas e vêm compartilhando canais universitários de baixo orçamento, viáveis operacionalmente, mas ainda cercados de limitações e problemas, entre os quais o de provimento de programação. É onde entra a RITU, finalmente viabilizada, em larga medida, graças à sensibilidade e à visão de futuro de Nélson Simões, diretor-executivo da RNP, que compreendeu e apoiou com entusiasmo o projeto desde que lhe foi apresentado.
A rede de intercâmbio será operada a partir da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), de São Leopoldo (RS), situada na região metropolitana de Porto Alegre. Para lá serão enviados os programas produzidos pelas instituições filiadas da ABTU e pelas universidades federais, vinculadas à RNP – cerca de 100 parceiros. A Unisinos recebe os programas, organiza-os e os disponibiliza no portal de gerenciamento da rede, que tem interface e ferramentas desenvolvidas pela Universidade Federal da Paraíba. Aprovados pela comissão de programação da ABTU, os programas estarão disponíveis para download on-demand, título a título, ou o canal interessado poderá baixar a grade nacional universitária, que será empacotada pela Unisinos, a partir dos programas autorizados para veiculação.
Capacidade excedente
A diferença da RITU, em relação a outras redes nacionais de televisão, está na configuração técnica. Salvo por um período transitório de implantação, não haverá uso de satélites, de custo operacional altíssimo para o orçamento minguado dos canais universitários. Os programas serão todos enviados e recebidos pela internet, não a rede comercial aberta a todos os usuários, mas aquelas redes operadas pela RNP, para uso exclusivo das universidades e centros de pesquisa.
A estrutura da RNP envolve duas redes distintas de transmissão de dados em alta velocidade. A primeira é a Rede Ipê, rede de produção nacional, também conhecida como ‘Backbone RNP-2’ ou ‘Internet-2’, que trabalha com taxas de transmissão entre 2,5 e 10 Gbps, e está instalada em dez estados da Federação (RS, PR, SC, RJ, SP, MG, DF, BA, PE e CE). A segunda, de caráter experimental e operando atualmente apenas no sudeste do país, é a Rede Giga, na qual todas as conexões são superiores a 2,5 Gbps. Ambas são utilizadas no projeto RITU. Os estados ainda não-atendidos pelas duas redes receberão a RITU via satélite, através do canal de teleducação utilizado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, que cederá parte de seu tempo à programação do pool de universidades.
Para a RNP, por outro lado, a RITU permite um uso inovador da Rede Ipê e da Rede Giga, criando demandas importantes do ponto de vista tecnológico, que justificam o investimento governamental no projeto. Ele representa uma excelente oportunidade de avaliar a funcionalidade daquelas redes para uma aplicação baseada em conteúdos culturais relevantes, aproveitando sua capacidade excedente, sem nenhum prejuízo ao funcionamento das demais aplicações acadêmicas.
O que tem de melhor
Ou seja: mais do que um sistema de compartilhamento de programas de TV, mais do que uma solução técnica para a montagem de uma rede nacional de televisão universitária, o projeto RITU é, em si, um projeto de pesquisa científica e tecnológica, sobre o uso de redes avançadas para aplicativos de vídeo. Tem, portanto, uma dimensão acadêmica e investigativa tão importante para a Universidade quanto a dimensão técnica e operacional para a Televisão Universitária. E, importante: já se trata de televisão digital, devendo desenvolver-se para transmissões ao vivo, em tempo real, e para a exibição de programas de TV de alta definição, que serão o padrão futuro da TV no mundo.
É assim que vai nascendo a primeira rede nacional de televisão controlada exclusivamente por universidades. Para difundir mais e melhor o pensamento científico, as descobertas, o conhecimento, e atender às necessidades educacionais de um Brasil em desenvolvimento. E tudo isso por um valor inferior a três capítulos de novela, que é quanto custará a infra-estrutura do sistema.
A universidade brasileira pode não estar produzindo ainda a melhor televisão possível, por inexperiência e carências. Mas certamente está usando o que tem de melhor – a inteligência – para encontrar um meio simples e barato de viabilizar a televisão universitária.
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Jornalista, professor, diretor de televisão e presidente da ABTU