Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tolerância não, respeito sim

Sempre que, em discussões acaloradas sobre questões não só importantes como altamente controversas – os direitos dos homossexuais ou a existência de deuses, por exemplo – alguém, para contemporizar, apela para a tolerância, imediatamente ligo o meu desconfiômetro. Pois, afinal, o que quer dizer ‘tolerar’? Segundo o Dicionário Houaiss, ‘tolerar’ significa suportar com indulgência. Vale dizer que o tolerado é para o tolerante um ‘inferior’ cujos erros devemos relevar, perdoar, deixar por menos. Neste sentido, o apelo à tolerância não combina muito bem com um diálogo entre iguais, entre duas opiniões em que a dúvida (e o benefício da dúvida) recai sobre ambas. Em vez da palavra tolerância, o termo melhor seria deferência na sua acepção de respeito à alteridade, o que, observe-se, não é incompatível com certa dose de diabrura retórica, ironia e argumentação agressiva — agressividade viril, não destrutiva, frise-se (afinal, somos cérebros apaixonados e não frígidos computadores).

A propósito, conheço uma católica fervorosa muito ‘tolerante’ que se jacta por ter alguns amigos gays. Esses seus amigos, ela os aceita – e até os elogia – por não alardearem a sua condição, fazendo exigências absurdas – como o casamento entre homossexuais –, participando de paradas de orgulho gay etc. Ou seja, para a tolerante, o bom gay é aquele que se resigna a uma vida fechada em gueto, não expõe a sua ‘monstruosidade’ e que está sempre a se esconder, como as baratas nos esgotos.

A palavra ateísmo sempre foi um estigma. Ser ateu, ‘até aí tudo bem’, é ‘tolerável’, mas quando o ateu sai do seu clubezinho fechado – isso quando pertence a algum, pois a maioria é constituída de ermitões – e tenta transformar sua concepção de mundo num apostolado (como de resto é prática de todas as religiões universais), isto é, quando passa de ateu para a condição de ateísta… horror! Pior ainda quando se vale da ciência para lançar petardos no calcanhar-de-aquiles das mitologias religiosas – é quando, então, ele próprio é tachado de intolerante em nada diferente do stalinista defensor de um Estado policial-militar ateísta.

Impressão negativa

Sou um agnóstico, defensor do Estado laico, do pluralismo e do direito de todo credo lato sensu – católico ‘apostólico’, todas as variantes do pentecostalismo, hare krishna e ateísmo – de exercerem atividade missionária, com a condição, obviamente, de que o façam por meio do argumento, da tentativa de persuasão, da palavra – parla –, respeitando as regras do jogo democrático e sem propugnar a exclusão do outro. Aliás, ‘como seria um mundo sem religião?’ Seria um mundo sem Dawkins, dado que este, polemista como é, certamente morreria de tédio.

Ressalte-se que, nessas condições democráticas de confronto de idéias, o ateísta científico – porém não o ateísta irracionalista nietzscheano – sai em vantagem; pois, como salientou brilhantemente o físico teórico Lee Smolin (entrevista à Folha de S. Paulo em 5/11/06), a comunidade científica é um modelo para a sociedade democrática, uma vez que, na primeira, exige-se que se proceda ‘de boa-fé, dentro de regras e com respeito aos que discordam de você’.

O físico brasileiro Marcelo Gleiser, do qual sou um tiete, em seu artigo ‘Ateísmo radical’ (Folha de S. Paulo, 26/11/06) tece críticas até que pertinentes ao ateísmo do biólogo britânico Richard Dawkins. Porém, quem ler a matéria pode ficar com uma impressão negativa do escritor – ‘virulento’, ‘cientificista’ etc. – que não corresponde em absoluto à realidade. Apesar de rufião – além de suas diatribes até contra os religiosos mais moderados, brigou feio com o agnóstico Stephen Gould e da sua cuspideira não escapou sequer o papa do ceticismo científico, Karl Popper –, Dawkins jamais entronizou a ‘verdade’ científica, identificando-a com o Bem; não confundia juízos de fato com juízos de valor (principal característica das ideologias cientificistas responsáveis pelo grosso da infelicidade humana durante o Século XX) nem compactuou com o determinismo genético.

Questionamento permanente

Se ele escreveu o best-seller O gene egoísta, por outro lado defendeu – e enalteceu – o fato de que ‘só nós [seres humanos], na Terra, temos o poder de nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas’ (O gene egoísta; Gradiva, 1999, p. 283). Contra o determinismo naturalista que reduz a cultura a um epifenômeno, sustentou que ‘a determinação genética não é férrea, mas estatística’ (idem), pelo que se pode afirmar que ‘os genes não somos nós’ (O capelão do Diabo; Companhia das Letras, 2005, p. 187) e que somos senhores da nossa biologia, não o contrário. Estabelecendo entre si e o famigerado darwinismo-social – tanto o de mercado como o de Estado – anos-luz de distância, o autor afirma, em O capelão do Diabo:

‘Como cientista acadêmico, sou um darwinista apaixonado, e acredito que a seleção natural é, se não a única força por trás da evolução, certamente a única força capaz de produzir a ilusão de propósito que emociona os que contemplam a natureza. Mas ao mesmo tempo em que defendo o darwinismo como cientista, sou ardentemente antidarwinista quando se trata de política ou da condução dos negócios humanos’. (Tradução de José Colucci Jr.)

Em sua teoria dos memes, isto é, dos entes ideais que se comportam com relativa autonomia, fazendo do nosso cérebro seu ecossistema nutritivo e que se valem da linguagem para se auto-replicarem; nesta sua hipótese acha-se embutida uma crítica às idéias parasitas, vale dizer, às crenças irracionais que ‘munidas com a toxina da certeza, tornam-se parasitas mortificantes ou mesmo letais, e nós [seres humanos], seus organismos hospedeiros de triste sina’ (M. Bulcão; As esquisitices do óbvio; 2005). Contra esses espiroquetas noológicos – entre os quais figuram muitas divindades carniceiras –, Dawkins receita o permanente questionamento científico. Amém.

Improvável como a xícara

Em suma, o ateísmo radical de Richard Dawkins é apenas um aspecto secundário de um humanismo intransigente.

Richard Dawkins é um grande cientista, um excelente escritor e um filósofo medíocre (na acepção de mediano). O Exemplo citado por Marcelo Gleiser ilustra bem a sua deficiência na área do pensamento mais abstrato. Marcelo Cavallari, por sua vez, em seu brilhante artigo ‘O provicianismo neo-ateu’ (Época, nº 443, 13 de novembro de 2006, p. 97), desqualificando-o ainda mais como filósofo, lembra que ele cita uma ‘piada’ de Bertrand Russell – como se fosse um argumento sério – segundo a qual a existência de Deus é tão impossível de provar pela ciência quanto a hipótese de que há uma xícara em órbita do Sol, entre a Terra e Marte. Segundo M. Cavallari, o que Dawkins não percebe – e o que faz da asserção de B. Russell uma anedota – é que a questão da existência de Deus – isto é, de uma Causa Final, de uma razão-de-ser do Universo e de um propósito ético movendo o mundo –, algo que o método científico-experimental realmente não pode corroborar nem refutar jamais, é uma questão importante, atormentadora, que preocupa todos os homens, alguns mais que outros, ao passo que a possibilidade de que exista uma xícara em órbita no Sistema Solar não passa de uma curiosidade, um assunto para diletantes numa mesa de bar depois da quinta dose de uísque.

Se Dawkins, realmente, não tem lá argumentos muito consistentes contra aquelas concepções mais elaboradas de Deus – o Deus ‘razão de ser’ de Leibniz, o id quo maius cogitare nequit de Boécio e Anselmo, a descrição de Brahman tal como consta nos Upanixades (seção conclusiva e filosófica dos Vedas)… –, diga-se, no entanto, em defesa de Dawkins, que a existência de deuses zoomórficos, quiméricos, antropomórficos e seus séqüitos de espíritos e demônios (súcubos, íncubos etc.), se de fato é uma possibilidade, trata-se, no entanto, de uma possibilidade tão ridiculamente improvável como a xícara de Russell.

Pior sem eles

Ademais, é precisamente essa espécie de deuses passionais a que exige sacrifícios de sangue e que inspira muito mais terror do que amor ou encantamento. A crença nessas divindades é uma geratriz de angústia, torna a realidade muito mais cruel do que realmente é – e, por imobilizar as pessoas através do medo, há séculos tem servido como instrumento de dominação. Pois bem, ao reduzir esse panteão a uma congérie de tigres de papel, Dawkins e outros neo-ateus nos estão prestando um favor imenso.

Na terra arrasada que sucedeu ao falhanço das velhas cosmovisões cientificistas, isto é, das ideologias que reivindicavam para si o estatuto de ‘expressão política do conhecimento científico’ – o social-darwinismo ‘nazi’, o socialismo ‘científico’ e o liberalismo econômico ortodoxo – medra a reação antiiluminista, o fundamentalismo religioso de todas as extrações (cristão, islâmico, judaico…). Paulatinamente, no entanto, na literatura e na mass media começam a surgir outras vozes, enunciadoras de um laicismo total e de um ateísmo radical — radical porque, infelizmente, o tempo é de violência: Salman Rushdie, José Saramago, Michel Houellebecq, Michel Onfray, Richard Dawkins, Daniel Dennett, entre outros.

Quanto a mim, um agnóstico, só espero que os neo-ateístas tenham aprendido com a história. De qualquer modo, ruim com eles, pior sem eles, é o que penso. Bem-vindos à arena do Século XXI!

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Funcionário público federal, ensaísta, autor de As esquisitices do óbvio (2005) e Sombras do Iluminismo (2006), Fortaleza