Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Trabalho docente fora da pauta

Um dos aspectos menos abordados no debate sobre a Reforma Universitária, proposta pelo atual ministro da Educação, é o que baliza a qualidade do ensino: as condições de trabalho docente. Existe uma correlação direta entre as condições de trabalho e remuneração do professor com os resultados do ensino prestado. Tal fato é comprovado pela reconhecida excelência das instituições públicas, com índices bem melhores do que os encontrados na média das privadas.

Mesmo a política de ampliação do acesso via setor privado implementada pelo governo federal anterior (com base, entre outros pilares, no desinvestimento nas instituições públicas) não conseguiu rebaixar os níveis de excelência das instituições estatais, ainda que esvaziadas pelos efeitos das reformas do Estado nos anos 1990 (especialmente a previdenciária) e a diminuição relativa de recursos necessários para o funcionamento e ampliação das instituições. Isso se deve, em parte, a própria luta dos professores e funcionários, inclusive às greves que, para além dos transtornos trazidos, tiveram função político-pedagógica de alertar a população sobre o que se estava fazendo com o respectivo patrimônio público.

Papel da imprensa

O governo atual, pelo menos a partir do anúncio da Reforma em curso, vem dando sinais que quer mudar o rumo dessa história. Além da uma sensível melhora nas condições físicas de algumas universidades, acena com a necessária contratação de novos professores adjuntos, auxiliares e titulares para dar fim à utilização abusiva dos professores substitutos, que não contam com os mesmos direitos e garantias dos primeiros. Em grande parte dos cursos, a função dos substitutos não tem sido a complementação emergencial, mas mecanismo de equilíbrio das contas orçamentárias, que não acompanham os aumentos dos custos de manutenção e investimento.

Caso isso persista, aí sim teremos asfaltado o caminho para o sucateamento das instituições públicas e, por sua vez, a equalização com a situação das condições de trabalho de grande parte do setor privado. Essa não é a única variável explicativa, mas não tenhamos dúvida de que professores mal pagos, remunerados pela perversa lógica da hora-aula, obrigados a estender suas cargas de trabalho para além dos limites humanos, sem tempo para pesquisa e atualização dos conhecimentos e, principalmente, sem nenhuma garantia de estabilidade funcional, não favorecem a edificação de uma educação de qualidade adequada às nossas necessidades e aspirações sociais.

É claro que existem exceções no setor privado, geralmente (mas não exclusivamente) no segmento das instituições comunitárias, nas quais os índices de excelência também acompanham as boas condições de ensino e aprendizagem. Desse ponto de vista, não deve ser desconsiderada a tentativa do Ministério da Educação em criar um ‘marco regulatório’ para o ensino privado superior, desde que o parâmetro estabelecido seja o que há de melhor neste setor — que, vale lembrar, alcançou no Brasil um nível de participação sem parâmetro em outros países.

A imprensa poderia ajudar nesse processo fazendo uma análise comparativa entre as instituições. Deveria, no entanto, ir além dos números e reportar, por exemplo, informações sobre as condições de trabalho docente, o problema crônico do atraso de salários, o nível de satisfação dos estudantes com os cursos lotados e em relação às instituições que os tratam apenas como meros consumidores de um produto qualquer. Não se pode confundir ‘liberdade de ensino’ à iniciativa privada (empresarial, confessional, filantrópica ou comunitária) com mercantilização obtusa de direitos.

Natureza concentradora

Voltando à Reforma, a imprensa também seria mais contributiva se ampliasse o debate sobre a questão das cotas, verificando a fundo se a afirmativa (geralmente dos setores privatistas) de que elas comprometem a qualidade do ensino tem alguma validade. A meu ver, salvaguardado o mérito por critérios mínimos de seleção (como está exposto na proposta governamental), a adoção temporária desta política apenas esmorece um ultrapassado e injusto mecanismo de seleção classista: o malfadado – ainda que conjunturalmente necessário – vestibular.

O mais engraçado é que os que apontam o perigo das cotas diminuírem a qualidade do ensino público são (geralmente) os mesmos que defendem a ampliação do acesso à educação superior sob financiamento público do ensino privado. Se a tese deles (de diminuição da qualidade pela entrada de negros, pardos e pobres nas instituições de ensino) for correta, não se estaria gastando dinheiro público para um fim não muito ‘nobre’ (a subvenção de ‘certificadores’ em massa)? Ou eles admitiriam que estão defendendo uma educação de ‘segunda classe’ para esta parcela da população? Bem que os jornalistas podiam buscar respostas para essa ‘aparente’ contradição. Aparente porque, afinal, o que se deseja, em última instância, é o fim da ‘gratuidade’ no ensino público (como se houvesse) e a abertura completa do ‘mercado’ educacional para investidores privados famintos por grandes lucros e que trabalham sob a seguinte aritmética: fartos recursos públicos + prestação de um ‘serviço’ de baixíssimo custo. Ou seja, de ‘qualidade’ adequada a seu público.

Mas não creio na possibilidade da imprensa mergulhar com mais profundidade na superfície dos debates. Não tanto pela inconveniência de desagradar um dos setores que hoje mais investem em propaganda e publicidade (o setor privado de ensino superior), mas sim pela própria natureza concentradora do mercado midiático brasileiro.

Imprensa dependente

A lógica mercantilista do oligopólio que hoje domina nossos meios de produção de informação massiva consegue ver pouca coisa além do princípio neoliberal na qual o ‘privado’ é o lugar per si da virtude e o ‘estado’ o lugar inquestionável do pecado – como se só funcionários públicos e políticos fossem os vetores solitários da corrupção e da inoperância. O que acarreta, por sua vez, na leitura absolutista de que todo ‘investimento público’, quando não canalizado para o setor empresarial, é sempre um ‘gasto governamental’: logo, desperdício.

Sob o exposto, vejo pouco espaço para que os sinais positivos da Reforma possam ir além dos próprios sinais. Se, como o próprio ministro está dizendo, o Presidente da República será o árbitro para resolver o impasse das medidas que contrariam a corrente política econômica hoje hegemônica, será uma grata surpresa – dado o balanço desde o início do mandato – se ele tomar partido contrário a dos setores de maior sucesso ‘midiático’; ou seja, daqueles que, no campo educacional, por exemplo, defendem a privatização gradual do ensino superior com tábua de salvação dos nossos dilemas.

Com isso, a sociedade brasileira se priva mais uma vez de aprofundar um debate de suma importância devido a um grave problema da nossa democracia: a falta de uma imprensa plural, investigativa e independente.

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Jornalista e cientista social, doutorando em Educação Brasileira pela Universidade Federal Fluminense