Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Traquina e a manipulação da notícia

A entrevista com o professor Nelson Traquina, publicada neste Observatório, oferece inúmeros elementos para discussão [veja remissão abaixo]. A começar pelo próprio papel que diferentes teorias sobre o jornalismo podem desempenhar. Para ficarmos no essencial: o ‘quadro teórico das notícias como construção’ é certamente profícuo para percebermos não apenas ‘por que as notícias são como são’ mas, também, como elas podem ser diferentes, em conseqüência justamente dos processos de interação social – vistos aqui como resultado de luta política e não, como pode parecer à primeira vista, como uma relação voltada para um objetivo comum de produção de consensos.

Sob essa perspectiva, é inevitável a surpresa diante da resposta à última questão, quanto à manipulação do noticiário sobre a invasão do Iraque.

Em Teorias do Jornalismo, o senhor cita a frase de Thomas Jefferson segundo a qual não há democracia sem liberdade de imprensa. Após a releitura dessa frase, fiquei imaginando os EUA de hoje. O governo de George W. Bush tem usado a mídia a favor de suas empreitadas, principalmente na guerra do Iraque. Para isso, utilizou a figura dos jornalistas ‘embutidos’. Depois, para propagar histórias fictícias (como o caso Jessica Lynch). Tivemos o New York Times pedindo desculpas a seus leitores pelo fato de o jornal não ter sido suficientemente crítico às versões oficiais do governo sobre o Iraque. Eu costumo dizer a meus alunos que o jornalismo tem sido manipulado no país que o criou. O que o senhor pensa disso?

N. T. – No quadro teórico das notícias como construção, o resultado de processos de interação social, incluindo as importantes interações sociais entre os jornalistas e as suas fontes de informação, denominados ‘promotores’, as notícias sobre o Iraque constatam como a administração Bush foi o ‘definidor primário’ e dominou o processo de produção das notícias, em parte devido à ‘fraqueza’ das posições alternativas norte-americanos e à demissão da comunidade jornalística norte-americana, muito sensível à questão do seu patriotismo no contexto pós-11 de Setembro. A palavra ‘manipulado’ tem sentido se houvesse ‘mentiras’ – uma questão central da investigação [levada a cabo na BBC] sobre o caso [David] Kelly, na Grã-Bretanha.

Certamente ‘a administração Bush foi o ‘definidor primário’ e dominou o processo de produção das notícias’ (ou então não haveria muita vantagem em deter o poder do Estado); não apenas com as restrições que todos conhecemos à transmissão de informações (o que, de resto, é inevitável em tempo de guerra, de um ou outro lado), mas sobretudo com a apresentação das justificativas para a invasão: as famosas armas de destruição maciça. Segundo o professor Traquina, teria havido manipulação se houvesse ‘mentiras’. Não houve?

Mas cabe também um reparo ao sentido da pergunta. Pois, de fato, a idéia de manipulação ali contida sugere que os jornais – isto é, as grandes corporações de mídia americanas – teriam sido vítimas, e não cúmplices, da legitimação desse monumental embuste.

Será portanto mais correto afirmar que estamos aí diante de mais um nefasto, embora tão corriqueiro, caso de manipulação resultante da interação, nada conflitiva, entre o poder da mídia e o poder de Estado.

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Jornalista, professora de Comunicação da Universidade Federal Fluminense