Houve quem ficasse ofendido com a comparação, feita pelo ministro Gilmar Mendes, do jornalista ao chefe de cozinha. Em princípio, não há motivo para zanga. No geral, além de ganhar melhor do que o comum dos jornalistas, chefe de cozinha é profissão em alta, com requintes que só se obtêm com mais anos de prática do que o tempo médio de um curso universitário. Depois, ‘cozinha’ é como na velha gíria das redações se designavam as funções de retaguarda (copydesk, editorias etc) na produção do jornal. Nessa cozinha, costumava-se também ganhar mais do que na reportagem.
Muito provavelmente não é flor desse campo semântico a metáfora do ministro Mendes. Parece-nos mais o resultado de uma noção imprecisa do que se faz na mídia e na cozinha dos restaurantes. O melindre deve-se na certa à suspeita de que a metáfora seja índice do milenar desprezo do trabalho intelectual pelo manual. Há razões para isto: num país em que a tradição escravagista permanece em tantos corações e mentes, a cozinha é conotada como lugar de servos ou subalternos.
De fato, não podemos honestamente afirmar, apenas suspeitar, sobre o que ia na alma dos preclaros ministros que acabaram com a obrigatoriedade do diploma de jornalista. Um deles mencionou a falta de ‘verdade científica’ no jornalismo. Para algumas pessoas, inclusive professores universitários, foi um toque de pós-modernidade – a desregulamentação das corporações anda de mãos dadas com o capitalismo cognitivo, este que transforma o conhecimento em principal força produtiva. Ao que sabemos, isto caracteriza os países do Norte, exportadores de tecnologia. Assim, cabe perguntar aos entusiastas a que região do Hemisfério Sul já chegou esse capitalismo, uma vez que aquilo que ainda parece vigorar é o capitalismo coercitivo, o mesmo que, aumentando a produção de alimentos, aumenta simultaneamente a fome no mundo: mais de 1 bilhão de famélicos é a conta oficial neste 2009.
Salve-se-quem-puder
Cabe também perguntar aos apressados teóricos desse capitalismo se, por coerência, aceitariam a desregulamentação do estatuto que lhes garante estabilidade como professores de universidade pública. Ou, então, auscultar os preclaros juízes sobre se, respeitando esse espírito do tempo, concordariam com o fim da vitaliciedade de sua função, senão com a sua eleição por parte da comunidade. A internet seria aí de grande valia.
Como a intuição nos diz que nada disso será aceito, podemos ao menos sugerir, sempre com vistas à coerência, que se passe agora ao fim da exigência de diploma para o exercício da advocacia e se retorne ao tempo dos rábulas. Vale reforçar a sugestão com a lembrança de Cosme de Farias, lendário advogado de defesa nos tribunais do júri da Bahia, que era rábula. Na condição de antigo aluno da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Federal da Bahia (da qual, aliás, detenho com muita honra o título de Doutor Honoris Causa), ouso sustentar que não existe ‘verdade científica’ no Direito, nem nada que não possa ser aprendido fora do âmbito universitário.
Não é absurda nem provocativa essa sugestão, já que o próprio ministro Gilmar Mendes, em entrevista à imprensa, deixou claro que é lícito desregulamentar a quase totalidade das profissões. Não mencionou a advocacia, mas isto está naturalmente implícito.
‘Ou não…’, como diria o compositor popular, com o argumento de que não se pode sair por aí desregulamentando tudo em nome do capitalismo cognitivo ou da verdade científica. A regra deveria valer, quem sabe, para algumas profissões, aquelas que a tradição patrimonialista – regente desde que para cá se transferiu, com a tomada das terras, o espírito da dinastia de Avis – considera mais próximas da cozinha. Para estas, vale o salve-se-quem-puder do mercado. Por exemplo, desregulamentada a profissão de jornalista, o contratado não poderá mais reclamar na Justiça os seus direitos acima das cinco horas regulamentares de trabalho.
Motivo verdadeiro
É inútil falar de pressão técnica da internet, de liberdade de opinião e quejandos. Nada disso pesou como motivo real na cabeça de magistrados assoberbados por um número interminável de processos a julgar, sem tempo nem formação específica para compreender a complexidade teórica do que é hoje informação/comunicação. Para ser muito franco, nem mesmo a velha esquerda da vulgata marxista consegue bem entender a questão da mídia numa sociedade em que o ‘solo’ societário é feito de informação.
Jornalista gosta de fatos. E o fato de agora é a irreversibilidade do diploma obrigatório, pois, como bem advertiu o magistrado, qualquer futura regulamentação dessa profissão por lei será inconstitucional. Pode-se certamente experimentar a regulamentação de algumas funções jornalísticas, mas nunca se sabe o que pensará disso o Supremo Tribunal. E, afinal de contas, talvez não valha a pena ficar malhando em ferro frio, discutindo substância (episteme, ética, formação, informação), quando o que está em jogo é adjetivo, ou seja, o mero processo de gestão do que interessa às classes dirigentes.
Não foi por amor ao saber ou à liberdade de opinião que se acabou com o diploma de jornalista. Foi por amor próprio.
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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio do Janeiro