Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um jornalismo de proximidade

Há um debate urgente a se fazer: quais as singularidades do jornalismo produzido no interior? Quais as diferenças na forma de entrevistar, apurar e produzir o texto jornalístico? Responder a essas questões é dar uma nova consciência e lançar desafios aos futuros profissionais e aos profissionais da área. Pois, se importamos as questões e os dilemas do jornalismo produzido nos grandes centros urbanos, obscurecemos a realidade que é própria do dia-a-dia profissional de milhares de profissionais que trabalham no interior. O que dificulta a percepção dessa singularidade tanto na resolução de questões éticas, quanto para despertar as potencialidades desse jornalismo feito no interior. É importante pesquisar e produzir conhecimento sobre o assunto para que possamos reivindicar uma identidade, uma história e um lugar próprio.

A característica mais marcante do jornalismo no interior talvez seja a da proximidade. No interior, o jornalista conhece as pessoas que descreve. Interage com elas o tempo todo no espaço da cidade, mantendo contatos de maior ou menor proximidade. O importante a ser ressaltado aqui é isso: ao escrever, o jornalista, ao contrário do profissional da capital, conhece ‘algo a mais’ sobre as pessoas que descreve. E esse ‘algo a mais’ refere-se às nuances da personalidade dessa pessoa; às várias expressões de suas feições; a seus casos de família; aos aspectos polêmicos e banais que constituem essa história singular; à sua rotina na cidade; às roupas que costuma usar; a seus dias de bom e mau humor; à grandeza e mesquinhez de alguns de seus atos.Ou seja, tem uma informação que a compressão do tempo no amplo espaço dos grandes centros inviabiliza: a de conhecer a complexidade que envolve esse ser humano; fonte de suas matérias.

Relacionamento com a fonte

O jornalista do interior conhece também as cenas urbanas onde os fatos se dão: as ruas, as praças – as casas, mais do que comporem a cidade, compõem a constituição de sua história pessoal nesse espaço. O barzinho que está nas capas dos jornais, local de um assassinato, é o mesmo que freqüenta com os amigos. A praça que será o palco para a apresentação de uma peça teatral é a mesma onde este ou esta jornalista brincou quando criança e namorou quando adolescente. O parque florestal que foi alagado pela chuva é o espaço onde costuma fazer sua caminhada matinal.

Na capital, ao contrário, o jornalista muitas vezes nunca sequer viu a pessoa que irá entrevistar; muito menos conhece toda a dimensão espacial de sua cidade (suas inúmeras ruas, praças, casas e lojas). E isso marca uma enorme diferença na forma de se relacionar com as fontes, de perceber a notícia, de interpretar suas nuances e, por fim, descrevê-las.

Definição de notícia

E esta proximidade que ressalto como uma das características do trabalho jornalístico no interior possui vantagens e desvantagens, como avalia o editor-chefe do jornal Agora de Divinópolis, Wallon Delano: ‘No interior, somos mais próximos e mais imediatos, já que o jornalista é conhecido e tem proximidade com os personagens de suas matérias. Nas desvantagens também esse aspecto é significativo porque o leitor cobra diretamente’.

Outro aspecto interessante é lembrado pelo editor-chefe do jornal da TV Alterosa em Divinópolis, Leandro Monteiro, quando diz: ‘Uma manhã em Belo Horizonte é muito diferente de uma manhã em Divinópolis e na região. Lá há acidentes, roubos a toda hora’, ao contrário do que ocorre ali. No interior, o jornalista não dispõe ‘aparentemente’ de fatos que são considerados notícias como na capital, onde, na verdade, o jornalista tem de escolher e selecionar o que será notícia, dada a quantidade de fatos que irrompem todos os dias. Digo que aparentemente não temos notícias porque, infelizmente, o jornalismo e sua forma de definir o que é ou não notícia acaba por desconsiderar uma série de aspectos que são, sim, dignos de estarem nas capas de jornais.

Efeitos de longo prazo

Definir notícia apenas como o fato – assassinatos, roubos, acidentes ou catástrofes – é anunciar uma forma de ver o mundo que foca um aspecto do real e desloca todo o resto. Como mesmo considerou Leandro, ‘no interior surgem pautas interessantes’, como também lembra e exemplifica Alessandra Prudente, ex-produtora da TV Integração e professora; ‘Os VT’s no interior valorizam os talentos locais: o sr. Zé, que aprendeu sozinho a fazer miniaturas de carros; a dona Maria, que na época da páscoa aproveita para ganhar um dinheiro extra fazendo ovos de chocolate; o sr. Joaquim, que tem um pé de mandioca gigante no quintal de sua casa. O jornalismo no interior valoriza muito a cultura local’.

Retomando as Teorias do Jornalismo, temos a contribuição dos estudos do Agenda Setting para compreender a questão. Estudo que surge em 1972, tendo Mc Combs e Donald Shaw como suas principais referências. Eles fazem uma releitura do estudo dos efeitos interessando-se, no entanto, pelos efeitos de longo prazo. Partem do princípio de que a mídia tem o poder de agendar os assuntos que estarão em discussão na opinião pública, impondo enquadramentos que são absorvidos no longo prazo e que condicionam o que e como pensar esses assuntos.

Agendamento da mídia

Assim, a seleção que a mídia faz dos assuntos que considera relevantes coincide com a hierarquia de importância do receptor. No entanto, os estudos do Agenda Setting consideram alguns fatores que interferem negativamente no processo de agendamento da mídia. Entre eles estariam:

** Tempo de exposição ao tema (WINTER, 1981);

** Proximidade geográfica (os meios têm maior poder de agendamento de um tema quanto menor for a experiência direta de uma comunidade acerca de um determinado tema, razão pela qual seriam os temas nacionais e internacionais aqueles que mais devem aos news media sua entrada na agenda pública; os temas de importância local seriam inscritos na agenda pública local mesmo sem influência midiática, já que as pessoas teriam experiência direta dos assuntos) (CLARKE E PALMGREEN, 1977);

** Natureza e conteúdo dos temas abordados (SAPERAS, 1993);

** Credibilidade da fonte de informação (SAPERAS, 1993);

** Audiência (SAPERAS, 1993);

** Comunicação interpessoal (SOUSA, 2002, P. 162).

Comunicação interpessoal

Apesar de termos discordâncias com estudos do Agenda Setting – principalmente em relação ao poder absoluto que confere à mídia agendar os temas e criar uma homogeneidade que eliminaria a complexidade do processo comunicativo – há um aspecto importante: os limitadores do agendamento. Estes estariam, no caso do jornalismo no interior, situados nos tópicos 2 e 6 levantados anteriormente. Ou seja, o fato da teoria considerar que os graus de influência da mídia dependem dos graus de contato direto que o receptor tem ou não com os fatos e fontes e da comunicação interpessoal. Já que a recepção é sempre um processo de reconstrução, que implica: (1) quanto maior a proximidade e familiaridade do público com o tema, menor a dependência de informações da mídia, e (2) quanto maior a distância e menor a familiaridade do receptor com o tema, maior a dependência da comunicação midiática. (FRANCISCO, p.41, 1998)

Com esse raciocínio, temos que no interior, o público, se comparado com o do capital, possui uma dependência menor da mídia. As pessoas conhecem os fatos noticiados e as fontes representadas nos jornais, possuindo redes transversais de informação que não estão restritas às representações oferecidas pela mídia. Por isso, tornam-se mais críticos, participativos e exigentes quanto à representação de mundo dada pelo jornal, já que possuem outras referências de confirmação dos fatos. O jornal não é a única forma de construção das realidades, mas antes elas já estão em curso nestas sociedades. E mais do que experimentar o fato de forma direta, as pessoas no interior possuem uma segunda possibilidade: a de formar sua opinião em diálogo com outras pessoas, sendo elas também fontes de informações sobre os fatos. A comunicação interpessoal é também um diferencial da comunicação no interior, o que reorienta completamente o papel e a função da mídia nesses contextos. Idéia defendida com muita pertinência por Cecília Peruzzo.

‘A possibilidade da comunicação interpessoal e da vivência dos acontecimentos contribuem para a formação de cidadãos críticos em relação aos conteúdos veiculados pelos meios de comunicação. Quando se conhece os atores em cena, seus vínculos políticos e intenções; quando se toma parte dos acontecimentos e se conhece suas causas e desdobramentos; quando se discute os assuntos com outras pessoas, torna-se muito mais fácil perceber a omissão ou a manipulação de informações. Está aí um bom motivo para que o meio de comunicação local atue de maneira responsável e ética se pretende desfrutar da credibilidade local’ (PERUZZO, 2003, p.82).

Assim, além de ter uma responsabilidade maior na apuração dos fatos (já que é acompanhado de perto pelo público) –, o jornal do interior possui um outro diferencial. Como as pessoas estão próximas dos fatos e de outras fontes de informação, elas possuem muitas vezes a informação antes mesmo que seja publicada no jornal. Isso muda a própria função do jornal. Pois, enquanto na capital o jornal é aquele que vem apresentar os fatos pela primeira vez, no interior o jornal vem precisar uma informação que já circula em forma de boato. Sua função não é dizer, mas legitimar, precisar: ‘O acontecimento e a mídia confundem-se em um ponto em que a fala da mídia torna-se performativa, e não mais descritiva’ (MOUILLAUD, p.66, )

Os detalhes, a precisão

Assim, enquanto os jornais da capital, nos termos da Agenda Setting, conseguem estabelecer uma maior dependência entre o público e a representação de mundo apresentada, no interior isso é mais difícil. Pois, a partir do momento em que o rumor social é incluído no acontecimento , a mídia torna-se partidária do mesmo. É, ao mesmo tempo, externa e interna a um acontecimento ao qual atribui limites por seu próprio discurso. Não se lida mais com uma moldura posta sobre a realidade, mas com um enquadramento cuja expansão constitui a própria realidade. (…) O acontecimento não é mais descritivo e, sim, reflexivo. (MOUILLAUD, p.66,)

Assim, essa relação diferenciada com a mídia reorienta a própria forma de representação dos fatos. Como as pessoas já sabem, de uma forma ou de outra, o que aconteceu, o que as pessoas buscam no jornal do interior é, além de confirmar o já sabido, ter detalhes adicionais sobre o fato. Querem os detalhes, a precisão. O que pede um trabalho investigativo e interpretativo no jornalismo regional e que ainda não é uma realidade no noticiário local.

Conflito e integração

Há, por fim, a necessidade de treinar o olhar para perceber a riqueza humana, explorar as artes dos fazeres cotidianos e entender a dinâmica social, política e econômica própria da cidade para o jornalismo regional. Que tem ainda de enfrentar uma série de desafios, como a falta de infra-estrutura técnica para o trabalho e, mais grave, a falta profissionalização dos jornalistas e conseqüente transgressão ética de uma série de valores da profissão.

No entanto, vale lembrar que o jornalismo não é o produto acabado que temos nas mãos ou quando ligamos a TV e o rádio; existem tramas, redes de forças e rotinas de trabalho que fazem com que a notícia transcenda a mera informação. E é por ser mais do que isso, ou seja, por ser o jornalismo uma força agregadora, organizadora e, principalmente, um instrumento que diz e conforma o mundo, é que devemos ter mais responsabilidade com a notícia e não reproduzi-la dentro de um modelo que não condiz com a realidade do interior.

Fazer jornalismo é fazer história. É intervir e colocar questões. É agregar a sociedade e dizer quem ela é: sua cultura, seu povo, suas artes e, claro, seus conflitos, seus preconceitos e valores. O jornal do interior deve ser o palco, ora do conflito, ora da integração dessa sociedade em que se baseia, sendo um elemento fundamental tanto para contar sua história como para intervir nela.

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Jornalista, mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora de Teorias da Comunicação e Teorias do Jornalismo da Universidade FUMEC e do Centro Universitário Newton Paiva