Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Uma análise de enquadramento


1 Introdução


Diante do envolvimento da diplomacia brasileira em questões internacionais, faz-se necessário analisar como os meios de comunicação atuam na cobertura de acontecimentos mundiais. Um deles é a relação Brasil/ Honduras no episódio que começou em 21 de setembro de 2009, quando o presidente deposto, Manuel Zelaya, entrou clandestinamente no país e abrigou-se na embaixada brasileira em Tegucigalpa, capital hondurenha. Com o objetivo de demonstrar como o tema foi enquadrado pelas antagônicas revistas, do ponto de vista ideológico, Veja e CartaCapital, este artigo parte da análise das publicações feitas em 7 de outubro de 2009. A hipótese central configura-se na ideia de que os recortes da realidade, construídos nos dois periódicos, possuem finalidades bem diferentes. As teorias utilizadas para provar tal hipótese são as relativas ao agendamento e o enquadramento.


2 Framing: um desdobramento do agenda setting


É impossível tratar do framing sem antes abordar a relação existente com o agenda setting. Ambos são indissociáveis um do outro. Para tanto, é imprescindível defini-los separadamente. O agendamento parte da hipótese de que a agenda dos meios ‘a partir da seleção, disposição e incidência de sua noticias’ (BARROS FILHO, 1995, p. 167) influencia na agenda pública. Por outro lado, o framing ou enquadramento tem como hipótese a ideia de que a mídia tem o poder de dizer como a população vai pensar os temas enquadrados.


As pesquisas sobre as hipóteses do framing e do agenda setting surgem na década de 1970, momento em que são realizados com maior intensidade estudos sobre os efeitos dos meios de comunicação na sociedade. A partir daí, as pesquisas acadêmicas evoluíram na tentativa de comprovar o efeito social da mídia, surgindo então novas perspectivas, testes e reformulações para o assunto.


Tudo começou, em tese, com a publicação de um artigo seminal de McCombs e Shaw, em 1972. Os dois teóricos realizaram pesquisas na tentativa de confirmar a capacidade de influência dos medias frente à projeção dos acontecimentos na opinião pública. Através de um estudo empírico realizado em 1968 na cidade norte-americana de Chapell Hill, McCombs e Shaw escolheram 100 eleitores indecisos, ou seja, os mais suscetíveis à informação eleitoral, e perguntaram sobre qual candidato escolher para eleições nacionais, disputadas por Richard Nixon e Hubert Humphrey. A pesquisa pretendia averiguar a relação entre agenda pública e a agenda midiática. O resultado é que ‘além de influenciar os eleitores indecisos, a mídia havia afetado também os candidatos, que incluíram em suas agendas temas pautados pela imprensa’ (GUTMANN, 2008:15).


Portanto, ‘além de estabelecer esta agenda do público, os meios de comunicação também teriam o poder de nos dizer como devemos pensar os temas existentes da mídia’ (COLLING, 2002: 114). O que é explicado através do framing. Utilizado pela primeira vez em 1974 por Erving Goffman ‘para caracterizar como os indivíduos compreendem e respondem às situações sociais a partir do modo com que organizam a vida cotidiana’ (GUTMANN, 2008:8). A partir daí, o termo foi apropriado para estudar a notícia.


Para Leal (2007), o conceito de enquadramento noticioso oferece uma sólida alternativa para analisar a mídia nacional, pois trata com a questão de como a mensagem é organizada, ressaltando preferências de um determinado enquadramento em oposição a outros. A importância desse conceito está diretamente relacionada à identificação das tendências dos meios noticiosos nacionais e à análise de comunicação com um enfoque que é específico do campo jornalístico.


3 Aspectos do enquadramento


Para Robert Entman (1993), um dos maiores pesquisadores do assunto,




‘Diversos autores discutem as variáveis do enquadramento. Alguns, sob a perspectiva dos enfoques construídos pela mídia, bem como o que esses frames determinam. Outros abordam a audiência, ou seja, o modo como o público enquadra determinados assuntos a partir daquilo que é oferecido pelos meios de comunicação.’


Essas perspectivas originam duas correntes complementares de investigação: os estudos que se dedicam a entender como são construídos e o que determinaria os enquadramentos dos temas midiáticos e os trabalhos interessados em como essas ‘molduras’ dadas aos conteúdos influenciam nas visões de mundo do público. (GUTMANN, 2008:6)


Segundo o sociólogo Goffman, para entender processo do framing da audiência é necessário ‘invocar ‘o esquema de interpretação’ que permite os indivíduos ‘localizar, perceber, identificar e etiquetar’ as informações ao seu redor’ (COLLING, 2001:96). Por outro lado, o framing da mídia é entendido a partir dos temas agendados e como os mesmos foram recortados na construção de uma realidade.


3.1 Como identificar os enquadramentos?


Entman (1993) orienta que para analisar o enquadramento de uma reportagem é necessário seguir cinco passos que auxiliarão na descoberta de quais aspectos da realidade tiveram maior destaque no texto, em detrimento de outros fatores. Primeiro, identificar o problema, detectando se é de ordem política ou econômica, por exemplo. Em seguida traçar as causas que motivam a problemática. Um outro aspecto a ser observado são os atores envolvidos no caso. Por conseguinte, verificar quais são as possíveis remediações sugeridas e a quem é creditado poder de resolução. Por fim, fazer a avaliação moral da construção social feita a partir do enquadramento.


De acordo com o autor, é necessário observar se existe personificação nas palavras-chave, metáforas, conceitos, símbolos e imagens visuais enfatizadas na notícia narrada. Uma vez que o framing é construído, também, a partir de elementos que aparecem insistentemente no texto.


4 Caso Zelaya: uma comparação


A escolha das revistas semanais brasileiras não foi aleatória. A iniciativa partiu da ideia de analisar dois periódicos antagônicos da mídia brasileira, a Veja e a Carta Capital. Segundo CUNHA ( 2004):


Comparar os discursos de mais de um meio de comunicação também auxilia a perceber os fatos negligenciados, ou seja, o que foi veiculado por um veículo e omitido por outro. O inverso também existe e a comparação permite notar quando há destaque deliberado de determinados temas, seja quantitativo (referente à quantidade de imagens ou apenas notas lidas pelo apresentador, em caso de telejornal, centimetragem dos textos impressos, tempo de aparição na TV etc.) ou qualitativo (referente ao conteúdo). No caso da televisão, o destaque qualitativo envolve uma cobertura eufórica, com imagens chamativas.


É importante salientar que este artigo centrou-se apenas na análise da edição 2133 da Veja e na edição 566 da CartaCapital, ambas de sete de outubro de 2009, as quais configuram-se numa suíte das edições anteriores. O caso Zelaya foi insistentemente pautado pela mídia brasileira, o que representa um agendamento. A cobertura das revistas foi basicamente a situação de Honduras diante do asilo concedido pela Embaixada brasileira ao presidente deposto Manoel Zelaya. Ainda que o assunto abordado seja o mesmo, duas construções foram feitas a partir de ideologias políticas bastante diferentes.


Em se tratando de um problema de ordem política, vale ressaltar que:




‘Ao se referir aos frames nas notícias políticas, Entman lembra que os políticos são obrigados a competir com outros políticos e com os jornalistas para criar novos enquadramentos. Nestes lugares (da política), o framing acaba ascendendo como uma das maiores funções inseridas sobre o poder político, pois o frame no texto informativo é a marca do poder’ (ENTMAN, 1993 apud COLLING, 2001:96).


No espaço reservado pela Veja na editoria Internacional encontra-se uma reportagem intitulada ‘No Cafofo do Zelaya’, que trata basicamente do relato da editora Thaís Oyama, enviada especial a Honduras: A matéria é seguida de um box intitulado ‘Fizeram tudo dentro da lei, menos a deportação de Zelaya’; uma entrevista com o presidente interino de Honduras, Roberto Micheletti concedida também a Oyama, intitulada ‘Zelaya é um boneco de Chávez’ sem o crédito de quem declarou tal afirmação; e por fim, um artigo de Reinaldo Azevedo com o título ‘Alternância de poder e Constituição neles!’ A cobertura totalizou seis páginas de conteúdo para a temática.


Por outro lado, a CartaCapital reservou a capa e nove páginas compostas por uma grande reportagem com três textos intitulados respectivamente, ‘O golpe golpeado’, escrito por Cynara Menezes, ‘O Brasil está no jogo’ e ‘Lendas Urbanas sobre Honduras, ambos escritos por Antonio Luiz M.C. Costa. Por fim, um artigo escrito por Luiz Gonzaga Belluzzo intitulado ‘Saudade das quarteladas’.


Conforme apresenta Entman, para analisar o framing, é preciso definir o problema. Nesse caso, como se trata de duas análises é viável detalhá-los separadamente. No que se refere à Veja, o problema é expresso da seguinte forma: um presidente deposto e extraditado pela Suprema Corte de Justiça de seu próprio país, devido às irregularidades cometidas que são condenáveis pela Constituição, decide retornar ao cargo a qualquer custo com o consentimento do governo brasileiro. Já a CartaCapital encara-o como: um presidente que recebeu um grande golpe e, na tentativa de reassumir o que é seu de direito, recebe apoio da Embaixada Brasileira em Honduras, para pôr fim em ditaduras na América Latina.


As divergências não param por aí. Apesar dos atores envolvidos serem praticamente os mesmos, a postura explicitada pelos periódicos sugere que se trata de pessoas distintas. O personagem principal no caso é Manuel Zelaya. Na Veja é emoldurado como um presidente deposto, pela Suprema Corte de Honduras, que ‘hospeda-se’ na embaixada brasileira e ‘inventa’ que está sendo perseguido por ‘raios nocivos’, como diz a linha de apoio da matéria, que ‘a mando de alguém, de algum lugar e de alguma maneira estariam sendo emitidos para prejudicar a sua saúde’. Para Veja, o objetivo do ‘plano B’ é recolocar Zelaya no poder a qualquer custo, mesmo que para isso, tenha que ser julgado pelos 18 crimes pelos quais é acusado’ e ‘abrir mão de uma boa – e não especificada – parte dos poderes presidenciais caso retome o cargo. Isso, claro se os `raios´ permitirem’. Além do já citado, outros atores são apontados. Dentre eles, o presidente interino de Honduras, Roberto Micheletti, classificado como ‘sangue quente’, disposto a fazer tudo ‘dentro da lei’ para resolver a situação, a qual, segundo a Veja, Hugo Chávez, o governo brasileiro e Zelaya envolveram o país.


Em contrapartida, a CartaCapital enquadra Zelaya como um presidente deposto por um golpe de estado, que recebe apoio na Embaixada Brasileira em Honduras com a intenção de ajudar resolver a situação da maneira mais diplomática possível. A matéria principal da revista cita que, embora Zelaya tenha exortado ‘a população a promover atos de desobediência civil contra o regime golpista’, ‘é preciso dizer que seu apelo à insurreição é que tem apoio constitucional’. Para justificar os atos, o artigo 3ª da Constituição hondurenha é citado: ‘Ninguém deve obediência a um governo usurpador nem a quem assuma funções ou empregos pela força das armas. (…) O povo tem o direito de recorrer a insurreição em defesa da ordem nacional.’ Já, Micheletti é colocado como um presidente golpista que mudou o discurso agressivo e desafiador por conta da pressão ‘diplomática’.


Um outro ponto importante a ser observado são as causas que motivam o problema. Para a Carta, o impasse está na ‘falsa interpretação’ da Constituição de Honduras pelos ‘defensores de Michelleti’, os quais se baseiam erroneamente em artigos que tratam da obrigatoriedade de alternância de poder e da proibição de reformar a Carta para estabelecer a reeleição presidencial. Para a revista existem dois problemas. O primeiro tem a ver com a consulta popular que Zelaya iria fazer, segundo a Carta, não era para alterar a constituição, mas para saber ‘se o povo estava a favor de haver uma quarta cédula nas eleições gerais para que o povo possa votar se deve ou não haver uma Assembleia Nacional Constituinte para reformar a Constituição’. O segundo problema citado pela Carta é que a própria constituição proíbe a expatriação de qualquer cidadão. Nesse caso, ‘o presidente foi acusado e deposto sem direito a defender-se’.


Por conseguinte, a Veja utiliza o discurso de Micheletti para afirmar que a culpa maior é de Chávez por financiar Zelaya ‘à custa do dinheiro do povo da Venezuela’ e que ‘o insuflou com idéias de grandeza, que o fez acreditar que era um Bolívar’. Além disso, de acordo com a revista, o governo brasileiro contribuiu para o ‘espetáculo hondurenho’ através da ‘passividade do Itamaraty diante das incitações de Zelaya à violência’, não só nesse aspecto, mas com as declarações do assessor especial da Presidência da República do Brasil, Marco Aurélio Garcia que o governo ‘golpista de Roberto Michelleti é feito de mentirosos’.


No tocante das remediações sugeridas, percebe-se que enquanto a Veja propõe a entrega do presidente deposto para que a Suprema Corte decida o que deve ser feito, a Carta Capital assinala que a solução seria ‘a restituição de Zelaya ao cargo, com poderes reduzidos, até dar posse ao sucessor eleito em 29 de novembro’. Mais adiante, acrescenta que essa proposta foi ‘feita pela Associação de Indústrias de Honduras, mesmo grupo favorável ao golpe, que agora recuo diante da pressão americana e internacional pela restauração da democracia e da legalidade’.


Antes de interpretar moralmente o enquadramento, é imprescindível verificar quais recursos foram utilizados na construção dos discursos. Entman frisa a observação da personificação, da dramatização e do uso repetitivo de palavras-chaves. Sendo assim, os elementos que compõem a narrativa – símbolos, imagens, metáforas etc. – ajudam a detectar os frames.


As palavras golpe e diplomacia, bem como seus derivados são usadas insistentemente pela Carta, de títulos a chapéus. Além disso, a capa revela-se como uma espécie de resposta àqueles contrários a posição do Itamaraty em apoiar o presidente deposto. A imagem é composta por uma foto perfilada, em primeiro plano, de Zelaya, (usando tradicional chapéu e roupas características do mesmo) apontando para a chamada de capa, na qual diz ‘A vitória da diplomacia’, ao fundo tem-se a bandeira do Brasil desfocada.


No que diz respeito ao uso das fontes, na Veja, observa-se que do total de 36 parágrafos, apenas dois retratam uma versão contrária com citações diretas. Um reservado ao Embaixador dos Estados Unidos, Lewis Amselem e outro que cita trechos de uma entrevista com Micheletti dada ao diário argentino Clarín. A matéria principal é feita a partir da observação e das declarações dos envolvidos na semana anterior. O recurso muito utilizado pela revista é a ironia, exemplificada a seguir: ‘Expelido do país, retorna clandestina e bravamente para ser reconduzido ao poder nos braços do povo, que ele governará com a tutela de seu mestre. Embora essa última parte tenha tido de ser reescrita, a fita barata e de atores ruins continua a se desenrolar conforme as ordens do seu diretor. O mais triste é que, nesse filme, o Brasil segue fazendo um papel feio.’


Embora enquadrar seja escolher aspectos da realidade e destacá-los, tanto a Veja quanto a Carta constroem o real a partir daquilo que condiz política e ideologicamente com suas próprias verdades que nem sempre é a realidade. No caso Zelaya, o real para Veja, baseia-se numa visão oposicionista e ultra direitista. O erro partiu do governo brasileiro em oferecer abrigo a um presidente deposto corretamente e, com isso, criar um conflito internacional. Por outro lado, a ‘esquerdista’ ou ‘governista’ CartaCapital, enquadra o fato como uma intervenção brasileira bem sucedida, uma vez que vale tudo em nome da diplomacia.


5 Considerações finais


Para o objeto de estudo deste trabalho cabem inúmeras interpretações. No entanto, existe um ponto de concordância inicial observado a partir do enquadramento dado. Temos dois acontecimentos completamente distintos. Suponhamos que um leitor qualquer, sem uma corrente ideológica e política definida, resolve se informar sobre a situação em Honduras pela primeira vez e lê justamente os dois periódicos analisados. A primeira pergunta que virá a tona é: Quem fala a verdade? De acordo com as teorias construcionistas, as notícias são construções sociais partilhadas pelo jornalismo e pela sociedade. É nesse ponto que está o X da questão. Independentemente da linha editorial do veículo, os jornalistas não trabalham com ficção, mas com a realidade.


Não se pretende dizer que a Veja e a CartaCapital trabalhem com a imaginação, mas a execução da proposta em analisar os periódicos traz ao rol das discussões as variáveis do enquadramento noticioso presentes no jornalismo brasileiro. Além disso, este trabalho mostra como a questão política continua tão indissociável da prática jornalística.

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Estudante de Jornalismo, Salvador, BA