Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma decisão histórica sobre o diploma

Nesta quarta-feira, dia 1º de abril, o Supremo Tribunal Federal aprecia o parecer do ministro Gilmar Mendes sobre o recurso do Ministério Público Federal contra a decisão do Tribunal Regional Federal de São Paulo, que manteve a exigência da formação superior específica e o registro na Delegacia Regional do Trabalho para o exercício da profissão de jornalista, quando do julgamento da liminar concedida pela juíza substituta Carla Rister, em 2001, que possibilitou a todos o ingresso no jornalismo profissional, sem a necessidade de qualquer formação especializada, superior ou não.

A apelação sustenta, com o apoio da Procuradoria-Geral da República, que os pré-requisitos contidos no Decreto-Lei 972/69 são contrários aos artigos 5º e 220 da Constituição Federal de 1988, que afirmam que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer e que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Qualquer que seja o pronunciamento final do STF, a decisão será histórica e provocará profundas conseqüências na organização da imprensa no país, na consolidação dos jornalistas como uma categoria profissional, no modelo adotado no ensino superior para a formação de jornalistas e, acima de tudo, na qualidade das informações a que terão acesso todos os cidadãos.

Direito inalienável

A tese sustentada pela apelação, da inconstitucionalidade da exigência de formação superior específica e do registro no Ministério do Trabalho, como evidenciado na decisão do Tribunal Regional Federal de São Paulo, que acolheu o recurso da Federação Nacional dos Jornalistas, contraria em parte o conteúdo manifesto na Constituição de 1988, que afirma que ‘é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer‘.

Ora, como atividade especializada cujo exercício pressupõe o domínio de conhecimentos conceituais, técnicos e deontológicos, o jornalismo constitui-se como profissão regulamentada desde 1969 e está formalmente integrado ao sistema de ensino universitário há 60 anos, com mais de 380 cursos oferecidos em todas as unidades da federação, existindo, pois, como de resto em todas as demais profissões regulamentadas, exigências legais para a atuação como jornalista profissional.

Como não poderia negar a existência da legislação que determina o cumprimento de pré-requisitos para a prática do jornalismo, uma limitação que como se verificou está prevista no texto constitucional, coube, como última alternativa à apelação, instar o STF a se pronunciar sobre a constitucionalidade ou não do Decreto-Lei 972/69, alegando que representa um dos resquícios vigentes do entulho autoritário imposto durante a ditadura militar de 1964-1985.

A discussão proposta pela apelação sobre a exigência da formação superior vem sendo feita em termos da interpretação da sua constitucionalidade ou não, uma posição que, quando da apreciação do mérito do caso, torna-se muito questionável, uma vez que desconsidera o plano concreto dos benefícios que a medida trouxe para a qualificação da imprensa, para a dignidade da profissão de jornalista, para a consolidação do jornalismo como área científica e acadêmica e para a democratização do acesso às informações na sociedade. Mas, antes de argumentar sobre as conseqüências negativas da prática do jornalismo por qualquer um, independentemente de ter formação superior ou não, creio que seja essencial salientar que a possibilidade da manifestação do pensamento individual, direito inalienável de todo cidadão, jamais deveria ser confundida com o exercício de uma profissão.

Conteúdo menos diversificado

Como se pode comprovar de forma empírica no caso da informação jornalística, em nenhuma sociedade fundada no Estado Democrático de Direito existe a garantia da liberdade do exercício profissional para todos os indivíduos, cabendo a sua produção e disseminação a profissionais especializados, que atuam de acordo com as normas previstas na forma da lei e respondem criminalmente pelos excessos cometidos.

A grande maioria das pessoas, em qualquer que seja o país democrático, como ocorre com o exercício das demais profissões regulamentadas, está alijada do processo de produção de informações jornalísticas, seja porque não reúne as competências necessárias para atuar na função, seja porque a atuação na área pressupõe dedicação plena e o vínculo como contratado ou colaborador com as instituições do ramo.

O que cabe discutir aqui, portanto, é em que medida a formação superior especializada contribui para melhorar a qualidade das informações difundidas, para aumentar a dignidade dos trabalhadores deste setor, para a legitimação desta área acadêmica e científica e para a democratização da sociedade.

A simples consulta às coleções de jornais publicados até meados dos anos 50, no século passado, existentes nas bibliotecas e museus, permite avaliar que, com a exceção dos articulistas ou cronistas, antes da exigência da formação superior específica o conteúdo das informações era menos diversificado, a qualidade do texto das notícias e a exposição gráfica sofríveis, o rigor na apuração quase inexistente e a falta de objetividade aceita como algo normal e inquestionável.

Uma vida de penúria

Até as reformas editoriais desenvolvidas nos anos 1950, por coincidência logo depois da criação dos primeiros cursos de Jornalismo no país, sem o menor constrangimento um jornal de elite, como o Jornal do Brasil, reservava quase toda a primeira página para publicar anúncios, como se fosse natural que o espaço mais nobre do jornal fosse ocupado pela publicidade em detrimento do conteúdo editorial. Uma prática deplorável, por sinal, mais comum hoje do que seria recomendável nas capas dos cadernos das edições dominicais de alguns jornais de referência do Rio de Janeiro ou de São Paulo.

Com todos os defeitos que a imprensa atual possa apresentar – e não se pretende negar aqui as deficiências do nosso jornalismo, como chamamos a atenção na volta da publicidade sem limites, na falta de objetividade em períodos eleitorais ou de erros grosseiros de apuração, como no caso da Escola Base –, dificilmente, se fizermos uma análise objetiva entre a imprensa antes e pós-regulamentação profissional, poderíamos afirmar que existem evidências de que a exigência da formação superior provocou uma queda na qualidade do jornalismo praticado no país em quesitos como: diversidade de conteúdos, rigor na apuração, objetividade no tratamento das fontes, nível do padrão estético adotado e aplicação de normas éticas, apenas para citar alguns aspectos que poderiam ser sistematicamente avaliados.

Aos defensores da volta ao passado, recomendo uma leitura atenta das memórias e biografias de jornalistas da velha guarda, que atuavam antes da exigência da formação superior, para que possam ter uma noção da situação de penúria vivida pelos colegas de então, obrigados a se dividirem entre três e quatro empregos. ‘A imprensa daquela época’, como relembra o célebre repórter gaúcho Carlos Reverbel no livro de memórias Arca de Blau, ‘costumava estimular o segundo, o terceiro e o quarto emprego, como garantia de que o jornalista, assim, não perturbaria o patrão com os inconvenientes pedidos de aumento de salário.’

Padrão que não deixa a desejar

No caso de Reverbel, que dividia o tempo entre a Caldas Júnior (Correio do Povo e Folha da Tarde), a assessoria de imprensa do secretário de educação, Coelho Souza, e as colaborações com a Revista do Globo, as três fontes de renda, reunidas, não eram suficientes para que o padrão de vida do jornalista ultrapassasse o nível das pensões e dos restaurantes baratos. Se alguém pensa que a situação de Reverbel representava uma exceção está enganado. Ocupação desprezível, o jornalismo era considerado um trampolim para a vida política ou para um emprego público. Nem sequer piso salarial existia. Era comum, como relata Carlos Heitor Cony, em Quase memória, o pagamento na forma de vales, serviços ou mercadorias, como acontecia com o pai de Cony, quando trabalhava no Jornal do Brasil.

A falta de dignidade para o exercício da profissão levou jornalistas de renome, como Simões Lopes Neto e Lima Barreto, a passarem por várias dificuldades financeiras. Lima Barreto, como antes fizera Machado de Assis, que trabalhou no Ministério de Obras, dependia do emprego de amanuense no Ministério da Guerra, tendo que colaborar ao mesmo tempo com diversas publicações. Simões Lopes Neto, durante uma boa parte da vida de colaborador, sequer recebia salário e, quando morreu, deixou a família na mais absoluta miséria, sem direito a uma pensão que garantisse o mínimo necessário para a sobrevivência da mulher e da filha adotiva. Consagrado como bico, o jornalismo não era considerado uma profissão e o jornalista, conseqüentemente, tampouco era tido como um profissional que deveria ser retribuído por seu trabalho.

A exigência da formação superior contribuiu para o aumento do nível intelectual dos jornalistas, garantiu um respeito público e dignidade para a profissão, que alcançou status universitário, e, mais importante que todos estes fatores, repercutiu favoravelmente nos salários pagos, através da criação dos pisos salariais mínimos, que agora tinham que ser compatíveis com uma profissão exercida por um bacharel. Com um nível cultural mínimo para o ingresso na profissão, a imprensa brasileira atingiu, nos melhores exemplos, um padrão que nada deixa a desejar aos demais países e, no caso da universalização da formação superior, abriu caminho para um modelo que faz com que o Brasil hoje ostente índices de formação superior na área de jornalismo acima dos alcançados por Estados Unidos, França, Itália e Inglaterra.

Avanços acadêmicos

A obrigatoriedade da formação superior específica ao mesmo tempo em que resultou, em parte, da própria criação dos cursos de Jornalismo no final dos anos 40, atendendo a uma reivindicação histórica dos jornalistas que remontava ao começo do século, com o trabalho do catarinense Gustavo Lacerda, colaborou para a disseminação dos cursos superiores por todas as unidades da federação e estimulou o estudo científico do jornalismo. Em meados dos anos 1950, o total de cursos se resumia a meia dúzia, limitando-se a formação a estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul. Hoje, o número de cursos ultrapassa a marca dos 380, com mais de 10 mil titulados por ano em todos os estados do país.

Como ocorre em todas as áreas do conhecimento, a formação superior levou à constituição de expressiva comunidade de professores de jornalismo, estimada hoje em mais de 4 mil profissionais. A chegada dos jornalistas aos bancos acadêmicos fez com que mudasse por completo o perfil dos cursos de Jornalismo, antes muito desvinculados do mercado de trabalho, uma vez que a maioria dos docentes vinha das Humanidades, tendo pouca ou nenhuma vivência com o cotidiano da profissão. Se antes o ensino do jornalismo era visto como um bico ou a única alternativa para profissionais mal sucedidos, cada vez mais, os cursos de Jornalismo contam em seus quadros com jornalistas renomados, com experiência comprovada na realidade de mercado.

A consolidação do jornalismo como área acadêmica possibilitou que o estudo científico do jornalismo obtivesse legitimidade, transformando o Brasil em um dos países que possui uma das comunidades científicas mais significativas no mundo. Na atualidade, a Associação Brasileira dos Pesquisadores em Jornalismo conta com mais de 380 associados, sendo mais de 160 doutores, vários deles integrantes do quadro de pesquisadores do CNPq, privilégio inimaginável para um jornalista contemporâneo de Machado de Assis ou Carlos Reverbel, que nem ao menos eram merecedores de um piso salarial mínimo como contrapartida ao trabalho realizado nas redações, sendo forçados ao duplo emprego e à mamata nos cargos públicos.

Ofício indigno ou avanço profissional

Como qualquer atividade profissional em uma sociedade complexa como a nossa, o jornalismo pressupõe uma formação superior específica. O grau de especialização do conhecimento nas mais diversas áreas de cobertura exige que o profissional do jornalismo tenha uma formação conceitual, técnica e deontológica que possibilite uma compreensão objetiva da realidade. A rigor, o conhecimento científico existente sobre o jornalismo impede que um leigo possa desempenhar a prática profissional com um mínimo de qualidade, como antes acontecia nos tempos da imprensa artesanal e de uma sociedade infinitamente menos complexa.

Se a exigência da formação superior específica garantiu a dignidade dos profissionais, melhorou a qualidade média do jornalismo, democratizou o acesso aos cursos e legitimou o jornalismo como objeto científico a pergunta que fica é: a quem interessa a volta ao passado, com o fim destas conquistas históricas de toda a sociedade? Certamente não é ao cidadão que necessita de informações de qualidade, apuradas com rigor e objetividade, para se posicionar e participar ativamente na esfera pública, muito menos aos profissionais do jornalismo e às comunidades científica e acadêmica da área.

Cabe agora ao STF julgar o caso e promulgar uma decisão histórica que, dependendo da sentença, pode reconduzir o Brasil aos tempos em que o jornalismo era um ofício indigno, um bico exercido por qualquer um, ou, ao contrário, reconhecer os avanços de mais de 60 anos de ensino universitário de jornalismo no país e de 30 anos de regulamentação profissional e confirmar o acórdão publicado pelo Tribunal Regional Federal de São Paulo, que manteve a constitucionalidade da exigência da formação específica para o exercício do jornalismo.

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Jornalista e doutor em Jornalismo, professor na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do CNPq