A Folha de S.Paulo produziu no domingo (5/2) um desses feitos que deixam a concorrência inconformada, tal sua obviedade: foi atrás do fotógrafo que registrou a conhecida imagem com que a ditadura militar tentou convencer a opinião pública de que o jornalista Vladimir Herzog se havia suicidado, em outubro de 1975.
Silvaldo Leung Vieira, o fotógrafo, foi localizado em Los Angeles, nos Estados Unidos, onde vive desde 1979, ano em que fugiu do Brasil. Ele contou que aquela teria sido sua primeira aula prática, no curso de fotografia da Polícia Civil de São Paulo. “Tudo foi manipulado”, contou à Folha em sua primeira entrevista.
O corpo do jornalista, amarrado pelo pescoço a uma grade, com os joelhos dobrados, era uma cena grotesca demais para ser levada a sério. Mas os militares e policiais que ocupavam a casa de torturas do Doi-Codi na Rua Tutóia, em São Paulo, tinham como certo que o controle sobre a imprensa seria suficiente para fazer valer a versão oficial.
“Lenta e gradual”
A operação para dissimular o assassinato não funcionou na época porque, mesmo sob censura, a imprensa nem chegou a considerar a hipótese de suicídio. A onda de indignação cresceu nas redações, mobilizou estudantes, intelectuais e sindicalistas, levando uma multidão à Praça da Sé para o culto ecumênico que marcou a reorganização da luta contra a ditadura.
A partir daquele momento, as forças de oposição se reagrupariam em torno do antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), buscando a via pacífica para derrubar o regime autoritário, o que viria a acontecer dez anos depois.
Líderes religiosos como o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, o pastor presbiteriano Jaime Wright e o rabino Henry Sobel, que liderava a comunidade israelita paulista, não aceitaram a tese do suicídio, denunciaram a prática da tortura em foros internacionais e tiraram a oposição da letargia em que se encontrava após o desmantelamento dos grupos de luta armada. Sobel ficou célebre ao enfrentar os grupos conservadores da comunidade judaica e se negar a enterrar Herzog entre os suicidas.
Esse movimento reforçou o processo de abertura “lenta, segura e gradual” proposto pelo então presidente Ernesto Geisel e pactuado com alguns setores da oposição formalmente abrigados sob a sigla partidária do MDB.
Testemunha ocular
Na edição de segunda-feira (6/2), a Folha de S.Paulo registra declarações de autoridades federais e integrantes da Comissão da Verdade, que foi criada no final de 2011 para apurar violações aos direitos humanos praticadas por agentes do Estado entre 1944 e 1988. Os entrevistados concordam com a conveniência de ouvir o fotógrafo Silvaldo Vieira – que declara ter sido perseguido pelo regime militar por ter se negado a participar de outras montagens destinadas a dissimular assassinatos de presos políticos.
Silvaldo pediu em 2008 à Comissão da Anistia uma indenização de R$ 908 mil, por supostamente ter sido obrigado a se autoexilar nos Estados Unidos em 1979.
A descoberta do jornal paulista certamente ainda vai render muita discussão, uma vez que, mesmo na imprensa, há controvérsias sobre o que fazer com essa herança pesada da história brasileira recente.
Um depoimento do fotógrafo, confrontado com outras informações, pode elucidar definitivamente o episódio do “golpe dentro do golpe” que a chamada linha dura do regime militar ensaiou durante o governo Geisel, para abortar o processo de abertura.
Pode, por exemplo, identificar os autores do assasssinato de Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, ocorrido em janeiro de 1976, e esclarecer definitivamente a morte do estudante Alexandre Vannucchi Leme, ocorrida em 1973 em circunstâncias semelhantes.
Em 1974, o MDB havia colhido um grande triunfo eleitoral, dando aos militares um sinal de que, dez anos depois de inaugurado, o regime começava a ser contestado pela sociedade brasileira. Se a investigação avançar, pode-se também elucidar as razões pelas quais parte da oposição à ditadura se negou a enxergar os sinais de que a repressão iria recrudescer em 1975.
Em agosto daquele ano, dois meses antes da morte de Herzog, o general Ednardo d’Ávila Melo, então comandante do 2º Exército, sediado em São Paulo, declarou em entrevista a três estudantes de jornalismo que iria prender e eliminar pelo menos 2 mil ativistas em São Paulo (ver, neste Observatório, “Falta o essencial”). Seu modelo era o massacre de Jacarta, onde em 1967 as forças armadas da Indonésia assassinaram milhares de pessoas ligadas de alguma forma a movimentos esquerdistas ou pacifistas.
A morte de Herzog interrompeu o movimento de reação dos chamados “falcões”, que se opunham à redemocratização, ainda que lenta e gradual, e abortou o que teria sido o episódio mais degradante da História do Brasil.
O depoimento do fotógrafo Silvaldo Leung Vieira pode lançar algumas luzes sobre essa história.