Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Uma noite num bordel

O cenário, os personagens e a história são dignos de um livro policial, com enigma que Holmes ou Poirot solucionariam caso fossem chamados a investigar. No dia 29 de novembro de 2003, por volta das 2h30, uma força-tarefa composta por policiais civis e militares, além de comissários da Infância e da Juventude, bate à porta de um dos mais sofisticados bordéis de Joinville, o Marlene Rica. Eles cumpriam uma ordem do juiz Alexandre Moraes da Rosa para averiguar denúncias de exploração sexual infanto-juvenil. Mas ao tentar entrar no prostíbulo encontraram a proprietária, Marlene Luy, e o coronel Paulo Conceição Caminha, chefe da Polícia Militar em todo o estado, no portão.

O tenente que comandava a operação logo reconheceu seu superior e bateu continência. O constrangimento tomou conta, afinal a última pessoa que os policiais esperavam encontrar no bordel era o chefe da PM. Diante da surpresa, o tenente resolveu cancelar a operação, os policiais voltaram para as viaturas e o comissário da Infância e da Juventude Milton Francisco da Silva também abandonou a missão. Tudo estaria encoberto até hoje se um dos presentes não denunciasse os fatos, oferecendo à imprensa catarinense um escândalo que chacoalhou as estruturas da Segurança Pública estadual.

No dia seguinte ao flagrante, o comissário Milton Francisco da Silva relatou tudo o que tinha acontecido ao juiz Moraes da Rosa, que encaminhou o caso ao Ministério Público. O promotor responsável pelo Controle Externo da Atividade Policial, César Augusto Grubba, instaurou uma investigação e ouviu os depoimentos da dona do prostíbulo, do comissário e do tenente. O objetivo era apurar se houve crime de abuso de autoridade, e também infração ao artigo 236 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que ‘considera crime inibir ou embaraçar ação de autoridade judiciária em exercício da função’. A investigação quer ainda esclarecer se os funcionários públicos utilizaram carros oficiais – ou seja, bens públicos – para ir à boate. Os depoentes negaram que o coronel Caminha tivesse impedido a vistoria e o comissário Silva sustenta que teve seu trabalho obstruído.

De maneira resumida, essas eram as informações disponíveis para o leitor do Diário Catarinense do dia 4 de fevereiro. A capa trazia a chamada ‘MP apura festa de cúpula da segurança em bordel’ para a matéria que ocupou quase toda a página 19. O repórter João José Cavallazzi deu espaço às versões da história contadas até o momento. Resume-se a dizer que ‘a história vinha sendo mantida sob severo sigilo’, mas não explica como ela se tornou pública agora, mais de dois meses depois, mesmo citando que o Ministério Público foi acionado logo em 30 de novembro, e que os depoimentos já foram iniciados.

Detetives e jornalistas

O que o leitor percebe desde o anúncio do caso é que o clima da cobertura do DC é semelhante ao de um jogo de detetives. Enquanto no jornal A Notícia já se disse o nome do prostíbulo e o nome dos envolvidos logo no início, o DC preferiu esperar mais desdobramentos. É importante destacar que apesar de toda a cautela, o jornal estimulou a reflexão, dando pistas muito claras ao leitor, quase beirando o juízo de valor, para que se questionasse o que realmente aconteceu naquela noite. Não houve intenção alguma de ‘proteger as autoridades, o oficialismo’. Isso ficou claro quando apesar de falar sobre a cúpula de segurança do governo estadual, o repórter utilizou o termo funcionário público.

O escândalo teve destaque no DC, já que das 20 edições analisadas (de 1º a 20 de fevereiro), seis capas tiveram chamadas para as matérias e na edição do dia 6 o assunto foi manchete: ‘Secretário afasta comandante da PM’. Mesmo sendo a manchete do dia, a matéria não ganhou a página quatro, tradicional lugar da matéria de destaque no jornal. Sempre esteve na editoria de geral, mais próximo das últimas páginas. Sendo tratado como caso de polícia e não política, pois haveria brecha para tal, já que o caso resvalou no secretário da Segurança Pública, João Henrique Blasi, um dos candidatos do PMDB à prefeitura da capital neste ano.

Ao invés de revelar o conteúdo do relatório do comissário Silva logo no início da cobertura, o DC optou por doses homeopáticas. A cada dia, o leitor tinha acesso a uma nova informação. Estratégia de marketing para garantir mais vendas com as suítes ou respeito ao Guia de Ética e Responsabilidade Social da RBS?

A sensação do leitor é a de que se pega um carro muito veloz, uma investigação impressionante, que tem um tom de denúncia e fiscalização do poder público como há muito não se via na imprensa catarinense. Mas depois de alguns dias este carro desacelera e começa a utilizar sempre as mesmas informações, até as mesmas declarações são repetidas em diferentes dias da cobertura. É evidente que o caso ainda não está concluído e que ainda desfila nas páginas dos jornais. Entretanto, este Monitor de Mídia observa atento o desenrolar dos acontecimentos na imprensa local…

O jornal levou muito tempo para de fato dizer o que estava querendo transmitir nas entrelinhas. Por exemplo, as atitudes do secretário de Segurança Pública e Defesa do Cidadão, João Henrique Blasi, foram monitoradas pela reportagem, mas a sua ligação com o caso não foi esclarecida de início. Só na edição de 6 de fevereiro o jornal divulga que o comissário Milton Francisco da Silva afirmou em seu relatório (entregue à Justiça no dia 30 de novembro de 2003), que o coronel Caminha afirmou perante todos os integrantes da força-tarefa que o secretário Blasi também se encontrava dentro do bordel.

É certo que um assunto como esse é extremamente delicado, que o Código de Ética do Jornalista e a Lei de Imprensa devem ser cumpridos no que diz respeito à calúnia e à difamação e ao direito de não se revelar as fontes. Com certeza, o repórter não podia simplesmente mencionar hipóteses e denúncias como se fossem provas cabais que levassem a suspeitos e culpados. Mas a omissão de informação leva o leitor a questionar algumas coisas.

A impressão que se tem é de que tudo não passou de jogo de cartas marcadas. O DC apurou, investigou, juntou informações. Ao invés de soltar tudo o que sabia bem antes, esperou até 4 de fevereiro, data em que o relatório do comissário seria divulgado, o que não se deu com detalhes. O coronel Paulo Conceição Caminha daria seu depoimento no último dia 18, mas acabou sendo ouvido apenas na última quinta, 26, quando voltou a confirmar que estava na boate em companhia de outros membros da cúpula de Segurança Pública. Orientado pelo advogado, o oficial não revelou a identidade das autoridades presentes. O ex-comandante da Polícia no Estado declarou ainda que não sabia que o local era um prostíbulo e só foi até lá por insistência de ‘amigos’. Com o jogo de empurra-empurra, o advogado de Caminha afirma ter convicção de que o caso será arquivado pelo promotor…

A informação que circula é de que, na Assembléia Legislativa, já se sabia de tudo desde dezembro. Segundo o DC, em 16 de dezembro de 2003, um pedido de maiores esclarecimentos foi enviado ao procurador-geral de Justiça Pedro Sérgio Steil. O autor do pedido foi o deputado Antônio Carlos Vieira (PP), franco adversário do PMDB no Estado. É preciso lembrar que o secretário Blasi deve disputar as prévias do PMDB rumo à prefeitura de Florianópolis.

E o (e)leitor nisso tudo?

Por que essas informações foram omitidas da sociedade catarinense? Se um escândalo dessa proporção, como o DC chamou o episódio, estava nas pautas das sessões da Assembléia, se o Ministério Público de Joinville já havia iniciado os depoimentos, mesmo que estivesse ‘sob severo sigilo’, como o fato não foi apurado pelas redações? Ou melhor, por que esperaram para ‘soltar’ a história? Antes do DC outro órgão de imprensa tinha tais informações? As justificativas para o atraso são muitas, e vão da proximidade do fim do ano à busca de um tempo maior de apuração. Mas será alguma delas satisfaz?

O leitor, no entanto, merece mais respeito. Até mesmo porque num jogo de detetive o objetivo é juntar todas as pistas e chegar à solução do crime. Toda a empolgação e rigor investigativo das matérias de João José Cavallazzi não podem ser desprezados. O respeito às questões éticas também. Mas a investigação não se aprofundou, não foi atrás das reais intenções deste episódio. O jornalista ficou preso entre a vontade de dizer tudo o que pensava e o que podia dizer. Questões como as datas da entrega do relatório e da solicitação de maiores informações feitas na Assembléia deveriam ser explicadas ao leitor que se perguntou incessantemente: por que soltaram essa história agora? Por que estão omitindo detalhes que os concorrentes já estão dando? Por que a cobertura esfria a cada dia? Por que o DC repete tantas vezes que o secretário só se posicionou diante do caso agora que a história foi revelada, e que 48 horas depois da matéria ser publicada o coronel já era afastado do cargo?

Isso conferiu um tom artificial, de cartas marcadas, afinal de contas, o juiz e o MP de Joinville já sabiam do caso desde 30 de novembro de 2003, a Assembléia Legislativa já sabia do caso desde 16 de dezembro de 2003, os integrantes da cúpula obviamente sabiam e estavam tentando esconder. Pelo tom da cobertura, o jornal também já sabia do caso há algum tempo. Então, os únicos que não sabiam realmente eram os leitores, os eleitores.

A notícia em A Notícia

O caso chegou às páginas do diário de Joinville um dia depois que o concorrente, o que significa que A Notícia levou um furo do DC. Entretanto, como revela trecho da matéria ‘Denúncia na mira do MP’, o jornal estava atrás da história já em janeiro: ‘Procurado durante dois dias (26 e 27 de janeiro), o tenente Márcio Reisdorf, do 8º Batalhão da Polícia Militar (BPM), não foi localizado pela reportagem de A Notícia nem deu retorno às ligações telefônicas feitas para a residência, para o celular e para o quartel. Chefe da patrulha de apoio à força-tarefa, foi o tenente quem conversou com o comandante da Polícia Militar no Estado, coronel Paulo César da Conceição Caminha, na porta da casa noturna’. O que teria então impedido o jornal de dar o caso antes? Precaução? Falta de agilidade? Ou outros motivos?

Este Monitor analisou as edições de 5 a 20 de fevereiro e observou que o caso aparece praticamente todos os dias, exceto no dia 8. E em todas estas datas A Notícia apresentou características peculiares para apresentar o caso. Com o passar dos dias, o jornal trazia resumo dos fatos ocorridos em novembro para poder situar o leitor que abria pela primeira vez as páginas da editoria de Política e não estava por dentro do caso. Aí, um diferencial: tratar o assunto de olho nas eleições municipais deste ano e articulá-lo ao possível envolvimento de altas autoridades.

O assunto também tomou as capas do jornal. E quando não era manchete, era chamada de capa. As manchetes cumpriam sua função de chamar o leitor para um assunto de interesse, mas com discrição sem grande alarde: ‘SSP apura abuso de poder em boate(05/02), ou ainda ‘PM ouve coronel Caminha (20 de fevereiro).

O jornal procurou rechear as matérias com detalhes, descrevendo a forma como as pessoas se posicionavam diante dos fatos, como estavam em termos emocionais e outros aspectos. Um trecho do dia 11 é ilustrativo: ‘Com um envelope numa das mãos, o comissário Milton foi à audiência acompanhado de um advogado, que também adotou o silêncio com os jornalistas. Entrou na sala de Grubba, no terceiro andar do Fórum, às 16h20, e saiu às 18h20. Milton não quis conversar com a imprensa que aguardava no lado de fora e disse que falará apenas quando for conhecido o resultado da investigação’.

A informação foi relevante para o leitor, principalmente pelo caso ter sido desdobrado. O AN não se limitou a revelar apenas aquilo que trata do caso em si, mas procurou trazer a público o que diz a lei: ‘O Código Penal, em seus artigos 228, 229 e 230, prevê penas severas para quem pratica respectivamente os crimes de favorecimento à prostituição, manter casa destinada a esse tipo de atividade e ou sustentar-se por quem a exerça (veja infografia)’ (15 de fevereiro). Além disto, como mostra o trecho citado, o esclarecimento dos fatos era substancial para o periódico, que utiliza os recursos que estavam a disposição, entre eles infográficos, entrevistas pingue-pongue com os envolvidos, e as versões em tópicos separados pelo nome. Esses recursos auxiliam na leitura e no entendimento global do caso.

O jornal expôs os assuntos com o respaldo direto das declarações dos envolvidos, e daqueles que saíram em defesa ou em ataque. ‘O relatório desse comissário (Milton Francisco da Silva) é leviano e mentiroso. Eu estava lá na condição de pessoa comum. Não me apresentei como comandante e nem disse quem eu era’, reafirma Caminha, em entrevista gravada à reportagem de A Notícia. O militar conta que quando os homens da força-tarefa chegaram à casa, que ele define como uma boate reservada, a proprietária o chamou: ‘’Caminha, tem gente aí! É um monte de policiais’, relata. ‘Disse para ela não abrir, porque poderia ser um assalto. Fomos até a janelinha. Pode perguntar para o tenente (Reisdorf)’, complementa o coronel'(depoimento de Caminha, 05/02), ‘’Sou inocente. Mantenho a minha casa há 23 anos e sou a única na cidade que não trabalha com menores’. A declaração é da proprietária Marlene Luy, 49 anos, a ‘Marlene rica’, dada no final da tarde de ontem por telefone à reportagem de A Notícia. Até agora, Marlene evitou qualquer pronunciamento à imprensa, mas ontem quebrou a ‘regra’’ ( depoimento de Marlene, 19 de fevereiro). ‘’Ir numa casa de prostituição é uma questão moral, de foro íntimo’, alega Vieira, que apesar de elogiar a confissão do coronel não considera natural uma autoridade pública freqüentar casas de prostituição’ (depoimento do Deputado Federal Adelor Vieira, 11 de fevereiro). No entanto, por utilizar as declarações, muitas vezes o jornal se repetiu nos dias seguintes (6, 7 e 10), ao invés de trazer novos dados.

Mesmo que a temperatura do caso esteja caindo, novos detalhes podem alterar os termômetros. A análise que este Monitor de Mídia trouxe é parcial, pois trata de um episódio em andamento e as tendências nas coberturas podem se modificar. Mesmo com isso claro, optamos por oferecer um diagnóstico de como o caso chegou aos jornais, já que com tanto empurra-empurra muita informação pode ser jogada para debaixo do tapete.

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Projeto de análise e crítica de mídia do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Itajaí (Univali)(http://www.cehcom.univali.br/monitordemidia), coordenado pelo professor Rogério Christofoletti