Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Uma retratação tarde demais

Para usar um termo de que o colunista Clóvis Rossi tanto gosta, a manchete da Folha de S. Paulo desta quarta-feira, 1° de agosto, é calhorda. ‘Caixa-preta indica erro do piloto’, estampou o jornal.

De posse de informações que obteve com exclusividade, a Folha, por intermédio do jornalista Fernando Rodrigues, já concluiu as investigações (que as autoridades normalmente levariam 10 meses para terminar) em questão de horas. Ao que parece, Rodrigues é expert em aviação, perito de desastres aéreos e doutor em aeronaves, com especialização em Airbus A-320.

Os outros jornalões, que não tinham o furo, mantiveram suas manchetes frias, porém cautelosas, como convém a um caso tão nebuloso. ‘Adiada a reforma, Cumbica terá operação tapa-buraco’, manchetou o Estadão. ‘Empresas avisam que não podem cumprir novas rotas’, disse o Globo.

Uma série de porquês

A manchete da Folha é calhorda porque:

1) o acidente foi provocado por uma série de fatores conjugados, e não se sabe qual deles, naquele espaço de segundos, foi o determinante do desastre.

2) o piloto pode ter errado, claro, mas seu eventual ou suposto erro teria sido a causa da tragédia ou foi conseqüência de situações anormais que se somaram e o induziram ao erro? ‘Pilotos dizem que Gol proibiu pousar sem reverso sob chuva’, diz a própria Folha na mesma edição de seu grande furo. A alavanca de aceleração (do avião que caiu) ‘deveria ter um manejo diferente por causa do reverso bloqueado’, diz esta reportagem da Folha sobre a Gol, na página C4, frase tosca colocada no meio da matéria apenas para corroborar a tese do próprio jornal. Mas, se o manejo tinha que ser diferente, não houve um problema anterior ao suposto erro do piloto? O problema do reverso no avião da TAM não quer dizer nada? Nem os antecedentes, já que o Fokker 100 caiu em 1996 também com defeito no reverso? Provavelmente, não. Os executivos da Gol, sem nada para fazer, devem ter resolvido, de repente, adotar tal medida apenas para passar o tempo num momento de tédio e dificultar suas próprias operações.

3) a Folha usa um expediente em que é mestre, o de cristalizar como verdade uma das possibilidades, mesmo que possa haver outras verdades. No final das contas, ‘Caixa-preta indica erro do piloto’ não quer dizer rigorosamente nada, apenas grifa para estampar nas bancas uma das várias verdades possíveis, ou que se conjugaram para provocar a queda do Airbus. É covarde, pois o piloto morto não pode falar.

4) um piloto de Airbus não sabia que tinha de deixar o tal manete na posição X, mesmo considerando o problema do reverso? Ou o piloto não foi treinado e orientado para o ‘manejo diferente’ em caso de problema no reverso? O que o jornalista da Folha deveria ter tentado explicar são os porquês do suposto erro do piloto, se os houve, e que situações ainda obscuras o teriam levado a errar com o manete, caso essa hipótese seja de fato verdadeira. Falha no computador de bordo também pode ter havido, reconhece o jornal, apesar de ‘pouco provável’. Mas o piloto, ah, esse errou mesmo, errou feio, matou 200 pessoas.

5) por que ninguém fala em erro de projeto da fabricante do Airbus? Ou será mero acaso que ‘outros três acidentes com o Airbus A-320 aconteceram em situação semelhante’ em outros países (um reverso travado), como a própria Folha informa na chamada de capa, sob a manchete?

6) por que se minimiza a clara precariedade na manutenção dos aviões da TAM, ou o uso de suas aeronaves no limite da necessidade da manutenção?

7) por que, justamente na semana passada, a Airbus divulgou um comunicado alertando os operadores de suas máquinas a como proceder com o manete?

Enfim, haveria vários outros porquês, mas seria prolixo demais. E, afinal, todas essas questões – e outras – não têm a mínima importância. São apenas passatempo de um desocupado, uma vez que, como se sabe, a culpa é do piloto, como comprovou doutor Rodrigues.

***

Jornalista se retrata em entrevista ao Uol

Algumas horas depois que escrevi o texto acima, o jornalista Fernando Rodrigues deu uma entrevista no Uol, na qual recua em relação à manchete da manhã.

A entrevista foi ao ar às 18h32 da quarta-feira. O título da entrevista no Uol é ‘Caixa-preta não isenta TAM e Airbus de responsabilidade, diz Fernando Rodrigues’.

O jornalista informa que (grande novidade) ‘os pilotos tinham completa compreensão’ do problema no reverso direito (foi disso que se inferiu que ‘o piloto errou’, como disse a manchete na manhã do mesmo dia?)

Ele prossegue, na entrevista ao Uol, que teve um claro tom de retratação: ‘É uma tragédia cheia de alguns componentes fatais, como esse do manete (…), mas fica muito claro também que esse Airbus A-320 poderia ter algum dispositivo’ para alertar o piloto ‘de maneira mais vigorosa’ sobre o problema, até porque as novas versões do aparelho já têm dispositivos de ‘alerta espalhafatoso’, quando há ‘inconsistência na posição dos manetes com a operação [de pouso] executada’.

Assim, continua Rodrigues, ‘quem tem que responder por isso é a operadora TAM e o fabricante Airbus’. Ah, bom.

Acusação, leviandade e irresponsabilidade

Ele é questionado na entrevista sobre as repercussões em Brasília. ‘Os deputados federais (na CPI do apagão aéreo) terão muito serviço se quiserem ajudar a compreender o que aconteceu, convocando integrantes da indústria de aviões Airbus e também da empresa TAM’ (…), porque ‘há uma suspeita de responsabilidade direta, tanto do fabricante Airbus, como da empresa TAM, na tragédia’. Mas isso até o dono do boteco na esquina da minha casa já sabia, Rodrigues.

E, respondendo a uma pergunta sobre a responsabilidade do piloto, ele esclarece: ‘A responsabilidade dos pilotos é difusa (…) Esse piloto estava no comando do avião em Porto Alegre, onde ele pousou com o mesmo avião, com os mesmos defeitos e ele soube colocar o manete no lugar e fez tudo como deveria’ … E, ‘algumas horas depois, ao se aproximar de Congonhas’, como o piloto pode ter-se esquecido de como proceder? Talvez por um erro do computador, esclarece o jornalista.

Mas, ‘supondo-se que, de fato, o computador recebeu a informação correta, o manete ficou no lugar errado? A pergunta a ser feita é: que tipo de ambiente faz com que um piloto experimentado como o do Airbus da TAM cometa tal erro’, especulou, e ele próprio dá algumas possibilidades: O excesso de vôos?, a falta de treinamento adequado?, a inexistência de mecanismos de alertas no avião?

Enfim, primeiro a acusação, a leviandade e a irresponsabilidade. Ou: a manchete mentirosa. Depois, a retratação. Ainda bem que Fernando Rodrigues não é piloto de avião. Não teria tempo de se retratar.

******

Jornalista, São Paulo, SP