Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Uma autoregulamentação eficaz para os blogs noticiosos

Não é só no Brasil que o legislador encontra dificuldade de compreender as novas tecnologias, qual seu alcance e possíveis conseqüências no meio social, principalmente em se tratando da comunicação. Os meios de comunicação evoluíram para muito além das expectativas.

Se reconstruo as imagens que, duas décadas atrás, se prediziam sobre a primeira década do terceiro milênio, pouco ou nada se concretizou: não trafegamos em carros voadores ou usamos teletransportadores, as armas não são de raio laser, a medicina não faz transplantes ou cirurgias plásticas em questão de segundos, os prédios não têm passarelas gigantescas de interligação, com esteiras rolantes. Mas os meios de comunicação foram para além dos vaticínios: os telefones móveis são uma realidade, as videoconferências me são mais usuais que os encontros físicos com os clientes estrangeiros. E a internet, essa não fazia parte sequer da mais fantasiosa das predições.

É na comunicação que se observa o fenômeno da convergência digital: telefone, computador, televisão, jornal, telégrafo, todos acoplam-se no mesmo meio, na mesma mídia, uma máquina ligada a uma rede digital que se auto-alimenta de conteúdo e que usa de uma geografia nova, de bits que se localizam em máquinas potentes, que alugam partes de seu espaço, como latifúndios que democraticamente se dividem entre aqueles que podem pagar barato pela hospedagem, mas que se comprometam a cultivar, a gerar conteúdo para rechear aquele espaço eletrônico.

A ética do internauta

Nossas leis, claro, não acompanham essa evolução. Não apenas porque nosso Legislativo tem problemas morais mais sérios para resolver do que dar soluções juridicamente sustentáveis à convergência digital, mas também porque ao próprio jurista não é fácil compreender esses fenômenos tão recentes, à luz de antigos institutos.

O que resta é encontrar interpretações, às vezes casuísticas, às leis em vigor, compreendendo-as por seu espírito, pela vontade do legislador à sua época, pela comparação da realidade do tempo da lei com a atual, dentre outras técnicas que fazem parte da chamada hermenêutica jurídica. A hermenêutica, como puro exercício da razão, é uma tarefa complexa, mas torna-se ainda mais difícil quando existem interesses em disputa – e essa é a prática do Judiciário.

Aqui nos concentramos em um desses problemas interpretativos, a responsabilidade do blog noticioso, ou seja: qual a lei que rege a atividade do blogger, ou blogueiro, e quem responde pelas ofensas que possam veicular em tão inusitada forma de divulgação de notícias.

Muitas considerações, menos ou mais pertinentes, podem ser feitas a respeito dessa técnica do weblog, que mais de um autor aponta como revolucionária na comunicação. Para os efeitos deste estudo, selecionamos alguns desses aspectos, que entendemos juridicamente relevantes. Assim, dentre todas as novas características dos blogs, selecionamos três elementos: sua capacidade de publicação, seu conteúdo informativo e sua equiparação hierárquica com os grandes meios de veiculação de notícias, pela convergência digital.

A tal análise tripartida das características do blog é somada a tendência de infra-estatalização, que se desenvolve oportunamente, para concluir pela necessidade de auto-regulamentação dos blogs que pretendam expor-se à coletividade como elementos-fonte de notícias, dignos de algum crédito. Essa auto-regulamentação, como se pretende provar, não apenas evitaria a interferência direta do Estado na mídia, mas também orientaria o Poder Judiciário, em casos extremos, nessa tarefa interpretativa (hermenêutica) da lei antiga aos fatos contemporâneos, com o uso da própria ética do grupo internauta, enunciada e aplicada por este próprio.

É o que se expõe.

O elemento publicação

A atual lei de imprensa foi elaborada em um contexto de impressões e publicações mecânicas, daí ser natural não se poder exigir do legislador qualquer referência ao meio eletrônico de publicação como a internet. Bem verdade que nela se encontrem expressões como a radiodifusão ou televisão, a divulgação de notícias por meio de uma rede mundial de computadores, capilarizada em um quase infinito de elementos geradores de conteúdo, evidentemente, escapa-lhe a qualquer previsão.

Antes da existência dos blogs noticiosos, não era – ou ao menos assim se nos parecia – tão difícil encontrar a analogia entre a homepage da internet e o meio de publicação impresso. Tanto é assim que os sites dos periódicos escritos e das agências de notícias foram tratados pelos tribunais, mais de uma vez, como se meios escritos fossem, publicando suas linhas em uma tela, virtual portanto. Assim, se lhes aplica a Lei de Imprensa, com todas as suas peculiaridades, sem mais elementos.

Razão também tinham, em nossa opinião, as decisões que entendiam que os newsletters, ao contrário do site noticioso, não eram objeto de abrangência da Lei de Imprensa. Isso porque lhes faltava o elemento publicação: tornar público não é apenas divulgar um texto a um número gigante de pessoas, mas fazê-lo acessível a qualquer um. Assim, o e-mail disparado a uma multidão de leitores pré-inscritos é um fator de facilitação de divulgação, elemento agravante nos crimes comuns contra a honra, porém não se trata de algo publicado. E então a Lei de Imprensa passava longe dos newsletters, embora abrangesse os sites de publicação de notícias.

O direito à verdade

Isso não importa dizer que a Lei de Imprensa não se tenha preocupado com as publicações de alcance diminuto, e somente procure regulamentar os profissionalmente estabelecidos e registrados civilmente para tal atividade, na determinação do art. 8º da Lei 5.250/67: o sistema de responsabilidade penal sucessiva, característico dessa legislação, busca ao máximo igualar os planos de responsabilização por atos danosos e ilícitos, até para além dos melhores princípios do Direito penal. Mas isso é outro assunto. O que se deve notar é que a Lei de Imprensa atinge a atividade de publicação, de envio de informações a um público difuso, não determinado.

Sob esse critério, um blog seria objeto de incidência da Lei de Imprensa, pois sua publicidade é evidente – está colocado à disposição de qualquer um que pretenda acessá-lo.

A Lei de Imprensa alude também à característica de agência destinada à informação. Isso importa afirmar que existe uma preocupação de regulamentar a notícia. Para o jurista, se a toda lei deve corresponder um bem jurídico a proteger-se, essa regulamentação preocupar-se-ia com um direito difuso à verdade. Em outras palavras, a agência que atinge o poder de dar notícias deve ser observada para que não distorça a realidade ou crie fatos que jamais ocorreram. Esse direito à verdade é encoberto por inseguranças conceituais das mais diversas medidas, dentre elas o subjetivismo e relativismo da verdade e, em conseqüência, o patente risco de imposição de censura.

Mesmo dentro da porosidade do direito à verdade, que também deve ser matéria de estudo em apartado, utilizemos como premissa uma suposta vontade social de que aquilo que é divulgado pelos meios de comunicação, como conteúdo fático, corresponda ao realmente ocorrido. Ainda que não exista honra, intimidade ou patrimônio atingidos por uma notícia inverídica, esta alcançaria dois elementos distintos porém convergentes: de um lado, o direito da população à notícia verdadeira; de outro, a confiabilidade do sistema noticioso como um todo, o que é de interesse, antes de tudo, de todas as agências de notícias e órgãos de imprensa.

Blogosfera dividida em duas

Com esses princípios, é natural que se possa exigir uma atenção especial não apenas àquele que publica um texto, mas também àquele que assume o papel de prestar um serviço informativo, de quem se passa a esperar uma maior responsabilidade – a de transmitir, por assim dizer, a verdade. Quando um meio de comunicação se apresenta como um prestador de notícias, de alguma maneira passa a fazer parte da imprensa. Essa imprensa foi, durante muito tempo, encarada pela legislação como uma fonte de risco à segurança nacional; atualmente, caso se tenha ultrapassado de fato tal concepção, é certo que segue sendo um objeto de interesse público.

Essa faceta do interesse público naquilo que possa vir a ser tido como fonte ou elemento difusor de notícia permite também particularizar a situação do blog noticioso aos olhos da legislação. Se não existe um direito à verdade propriamente dito, subsiste um interesse na boa informação – e isso ocorre até para controle democrático da coisa pública, ou alguém pode negar que a imprensa é o maior inimigo do administrador corrupto? Interesse público não é controle público: trata-se apenas da vontade da coletividade de dispor de um meio confiável e, no quanto possível, não tendencioso de aquisição de informações.

A proposta de enquadramento jurídico do blog noticioso não pode ter como premissa uma pseudo-realidade. Impossível partir da idéia da blogosfera como dividida em dois mundos: de um lado, uma mera longa manus, uma extensão dos sites das agências de notícias oficiais; de outro, internautas absolutamente despretensiosos, que apenas querem praticar o twitter sem tentar influenciar de algum modo seu universo de leitores, sem procurarem ser os primeiros a lançar à luz um fato, preocupados ou não com a veracidade da divulgação, ou com seus efeitos.

Contexto da convergência

Para a internet, a visão burocrática – a lógica binária que diferenciava agência de notícia, jornal, radiodifusão etc. – deve ser deixada de lado, e isso dificulta ainda mais a visão jurídica de todo o novo contexto. Apenas para sistematizar, alguns de fenômenos, em nossa opinião, podem ser destacados para dar conta desse processo de fusão de funções e papéis sociais, que confundem o aplicador da lei (principalmente aquele que pretenda trabalhar com a Lei de Imprensa e com seus papéis-tipo de responsabilidade pretensamente objetiva, que, se já no mundo físico estão esfumadas, que dizer no virtual). Podem classificar-se nestes dois, essenciais.

O primeiro fenômeno está na própria natureza do texto do blog noticioso. Em nossa opinião, o que explica a preferência do, por dizer algo, jornalista atual pelo formato blog é algo de sua informalidade. O fato de os comentários poderem ser recuperados em ordem cronológica, ao mesmo tempo em que classificados em assuntos, é apenas uma de suas vantagens, mas não a única. O blog conserva algo da aura intimista do diário, por isso seu texto, mesmo cuidando dos fatos, tende – e tal observação é nossa – ao subjetivismo e à reflexão dissertativa. O blogueiro não raro faz uso, com ou sem intenção, da técnica de construção textual da crônica: o texto inicia-se figurativo, dando conta de uma notícia, os fatos, e prolonga-se para temas dali decorrentes, com conceituação e assunção de posicionamento; ou então, para a recombinação de fatos de natureza tão distinta que revelam ser o percurso expositivo baseado em um ponto de vista menos centrado na objetividade e mais preocupado com a revelação de impressões pessoais sobre os fenômenos narrados. Não raro, pois, esses textos aparecem enunciados em primeira pessoa.

O segundo fenômeno é a chamada convergência digital. Não se pode deixar de observar que os meios de comunicação convergem todos para o computador, como já dito: telefone, televisão, jornais, todos eles têm como meio de acesso principal a internet. E assim se mesclam: site informativo, em lugar de fotografia do réu no fórum, transmite um link que converge à imagem de todo o julgamento – ou do discurso, do acidente, ou do gol. É nesse contexto da convergência que o blog individual assume caráter de notícia, pois serve ao leitor como informação primária.

Jornal personalizado

Corolário do segundo fenômeno é a acessibilidade dessas notícias. Programas como o netvibes criam um sistema personalizado de acesso às atualidades da rede. O usuário desenha sua própria capilaridade de atualizações da net e assim cada texto novo que surja nesse universo de alcance pré-determinado lhe é encaminhado, com todas aquelas técnicas para realçar a chegada de um novo post. Nesse ponto, em nossa opinião, a convergência digital apresenta sua faceta mais democrática e ao mesmo tempo mais perigosa – como ocorre com toda a saudável liberdade. Afinal, a informação chega ao usuário do netvibe sem escala hierárquica: o fato noticiado por uma agência de notícias respeitável tem o mesmo destaque que um post de um blog individual, apócrifo e descompromissado. Ótimo para acabar com monopólios de informação, mas fonte de perigo de difusão de informação distorcida, ou anônima (lembrando-se que o anonimato é constitucionalmente proibido).

Some-se a isso o fato de o netvibe dispensar, ou, melhor dizendo, atribuir ao particular-usuário, a função de ser seu próprio editor. Porque a figura da edição dos periódicos comuns habituou-nos à importante divisão topográfica das notícias, na preocupação, talvez nunca existente em estado puro, de outra vez conceder objetividade à informação: dar maior destaque a fatos coletivamente mais importantes. Sem essa figura, sabe o blogueiro-redator que seu post tem potencial para atingir, em questão de segundos, maior relevância a muitos leitores que uma – já tão antiquada – inserção repentina de uma notícia urgente, na pacata programação de tarde de uma televisão em sinal aberto. O netvibes, se for permitido a ilustração, é a tendência do verdadeiro jornal personalizado, exclusivo a que alude o comercial da Folha de S. Paulo.

O exercício do poder-dever

Extrapola ao objetivo deste texto fazer qualquer julgamento ético sobre a internet como fonte de notícia, menos ainda utilizar critérios econômicos para tentar predizer o futuro dos jornais, das gráficas e da televisão. Apenas se nota que essas novas características do meio informativo devem implicar alterações na interpretação de uma Lei de Imprensa criada em 1968, nos tempos de papel, tinta e linotipos. De redator-chefe e de censor.

Dos vários conflitos que possam existir entre a formação do jurista e do jornalista, não seria exagero apontar que eles todos podem-se tangenciar em um ponto específico: a possibilidade de o Poder Judiciário interferir no exercício da imprensa. Nesse ponto, é natural que se embatam as duas formações distintas: o primeiro é formado na sólida base de que um Estado deve garantir direitos e deveres, a todos os cidadãos e à coletividade; o segundo tem como pedra fundamental de todo seu trabalho a liberdade de imprensa, o que significaria sua não-submissão a qualquer controle.

Dizer que a liberdade de imprensa não é absoluta talvez não satisfaça porque haverá quem enfrente o pensamento dizendo que liberdade relativizada não é liberdade. Pois bem, essa é uma questão que aqui não haverá como esgotar. Uma idéia simples de contrato social, em qualquer uma de suas principais concepções, é capaz, porém, de dar uma idéia da solução da questão: a constrição mínima da liberdade de imprensa, diante do respeito a direitos individuais. Fazendo uso adequado daquilo que hoje, no mundo jurídico, está de moda denominar princípio da proporcionalidade.

O Judiciário, no estado democrático, é dotado de poder para intervir em qualquer lesão a direito, encontrando ponto de equilíbrio entre um valor difuso, como a liberdade de informação, e um direito individual, a exemplo do direito à honra, à intimidade, ou até com outro direito supra-individual, como o já apontado direito à verdade. Para isso, não se enganem, é desnecessário lei específica para o exercício desse poder-dever – o juiz pode recorrer a situações análogas, à interpretação alargada da lei, para, por exemplo, incluir no conceito ‘periódico’ da lei a idéia de um site ou blog. Apenas no campo penal tal técnica interpretativa é vedada: não se pode alargar o valor semântico dos termos da lei para incriminar alguém, transformando em punível uma conduta que antes não o era.

Regra constitucional

O Poder Judiciário alcança a rede e ela não é aquele território livre com que sonhou Perry Barlow, em sua declaração pela independência da internet. [A declaração está disponível em várias páginas da internet. Nela, Perry Barlow reclama da inexistência de governos e de fronteiras na rede. Afirma que o ciberespaço não tem fronteiras e não pode ser construído, ele brota naturalmente como uma obra coletiva. ‘Cyberspace does not lie within your borders. Do not think that you can build it, as though it were a public construction project. You cannot. It is an act of nature and it grows itself through our collective actions’ (http://homes.eff.org/~barlow/ Declaration-Final.html). Esse discurso ficou conhecido por vir ao encontro da compreensão do mundo virtual na internet, mais propriamente dos anseios dos internautas. Recentemente, a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, que se reuniu em Túnis, Tunísia, em novembro de 2005, decidiu criar o Fórum de Governança da Internet, porém o controle dos domínios ainda fica por conta do organismo privado do ICANN (Internet Corporation of Assigned Names and Numbers). A Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação tem sua próxima reunião marcada no Rio de Janeiro, de 12 a 15 de novembro de 2007 (in: http://osi.unesco.org.br /conteudo_tema.php?tema=17). Um dos criadores de normas técnicas para internet, o ICANN, associação sem fins lucrativos, porém ligada, por sua origem, aos Estados Unidos da América, sofre agora, nos dizeres de Moles Plaza, um processo de internacionalização e democratização que ‘debe conducir a que esta organización sea totalmente independiente de las influencias nacionales’. MOLES PLAZA, Ramón J. Derecho y control en Internet: la regulabilidad en internet. Barcelona: Ariel, 2004, p. 72] Nem poderia ser, muito embora, repetimos, seja admirável e extremamente importante sua difusão de informações, independente do quase-monopólio das agências de notícias.

A jurisdicionalização de todo o espaço – real ou virtual – não se alterou, ao menos em teoria. Desse modo, não há lesão ou ameaça a direito que se possa afastar da apreciação do Poder Judiciário e isso é regra constitucional (art. 5º, XXXV, da CF). O que mudou foi o modo de a lei alcançar as novas tecnologias, no presente caso as novas mídias e, regulando-as de modo indireto, equacionar esses direitos basilares que se apontam no texto da Carta.

É disso que se trata adiante.

Atribuições autonormativas

No Direito moderno, face à complexidade das relações sociais e ao desenvolvimento tecnológico desenfreado, os direitos mais amplos assumem importância ainda não vista no direito escrito latino. Daí há que se concordar com o posicionamento de Pérez Luño, que afirma o ‘deslocamento do centro de gravidade no processo de determinação das fontes jurídicas’ [PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. La tercera generación de derechos humanos. Navarra: Thomsom-Aranzadi, 2006, p. 53] para a Constituição. O autor demonstra que, contemporaneamente, o Estado de Direito é substituído pelo Estado Constitucional porquanto a inflação legislativa, ou seja, o excesso de leis, conduz a um deslocamento ‘da primazia da lei à primazia da Constituição’. Ele nota ainda, em assertiva propícia ao presente estudo, que nas últimas décadas se assiste à aparição de entes que ‘discutem e comprometem, por cima e por baixo do Estado, sua supremacia jurídica’ [idem], no mesmo contexto em que Dallari, observando interpenetração entre o Estado e a esfera privada, inclusive no que tange à técnica legislativa, expõe a tendência de alguns autores de identificar um ‘Direito semipúblico’ [‘Na época atual, a realidade é outra. As atividades públicas e privadas se interpenetram de tal maneira que o Estado, freqüentemente, utiliza técnicas jurídicas anteriormente exclusivas do direito privado, enquanto os particulares, por seu lado, agem, cada vez com maior freqüência, segundo as regras tradicionalmente consideradas como de direito público. (…) Perguntam se não seria o caso de falar em um direito ‘semipúblico’, abandonando a dicotomia tradicional.’ DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 64]. [A fronteira pouco delineada entre Direito Público e Privado também foi objeto de abordagem de Fariñas Matoni, na busca da conceituação de privacidade. Cf. FARIÑAS MATONI, Luis Mª. El Derecho a la intimidad. Madri: Ed. Trivium, 1983, p. 330]

Propõe Pérez Luño a identificação de dois fenômenos atuais: a supra e a infra estatalidade normativa. Em relação ao primeiro, detecta as fontes de direito supranacionais, a exemplo dos mecanismos de soft-law ou, no caso de seu país, das Diretivas européias. Em relação à infra-estatalidade, nota, dentre outros, as normas infra-estatais ratione personae, nas quais ‘se estão acrescentando atribuições autonormativas de determinados grupos sociais, sendo especialmente importante esse fenômeno no âmbito profissional’ [idem, p. 54] e as ratione materiae, que são as regulações jurídicas dotadas de alto grau de especialização, imprescindíveis por conta do avanço tecnológico.

Lei sem minúcias

Em outras palavras, existe aqui um encontro de realidades jurídicas: se, de um lado, o Judiciário tem de atender a todos os pedidos que lhe descrevam lesões a direitos – e daí a obrigatoriedade de interferir na internet, sob pena de denegação do que se chama ‘devido provimento jurisdicional’ –, de outro,a complexidade técnica faz com que, diz-se a bem da verdade, a realidade virtual seja pouco compreensível ao juiz e aos próprios operadores do Direito. O que somente concede maior importância ao fenômeno que aqui retomamos como infra-estatalidade normativa. O Poder Judiciário pode ser orientado por normas éticas e deontológicas do próprio grupo que se dedica à atividade específica em cujo contexto ocorre a lesão a direito.

Esse fenômeno de infra-estatalidade se operacionaliza tanto pelo Direito administrativo sancionador quanto pela auto-regulamentação, mas aqui nos interessa somente este último: as normas éticas, enunciadas pelo próprio grupo profissional e por ele mesmo apreciadas e aplicadas podem evitar a interferência do Poder Judiciário, ou, quando assim mesmo este for chamado a posicionar-se, será em grande medida norteado por uma norma ou um parecer. Estes não apenas garantem a liberdade do grupo, porque é ele quem dita suas normas éticas; essas normas, infra-estatais, certamente funcionam, aos olhos do juiz, como normas legais, caso não se contraponham às leis federais. Mas este último caso é de rara ocorrência. A União Européia, por exemplo, recomenda a criação de Códigos de Ética dos setores e profissões, ‘para evitar uma legislação pormenorizada’ (Diretiva 95/46/CE). Não cabe aqui estender-se nas oportunidades de injustiça que se criam quando a lei exagera em suas minúcias, mas tampouco é difícil intuí-las.

Sendo assim, a novidade do fenômeno da notícia pela internet, transmitida pelo blogueiro, demanda a elucidação de suas regras éticas, que somente podem surgir do próprio grupo e que orientem a eventual apreciação do Estado-juiz, no caso de imprescindível intervenção, para a tutela de outros direitos. Claro que a ausência dessas regras não impede a prestação jurisdicional, mas podem tornar o processo mais lento e, caso se possa dizer, injusto.

Daí a sugestão pela auto-regulamentação.

O exemplo do Conar

Há a consciência de que a palavra regulamentação, por si mesma, não traz boas impressões, ou até mesmo boas lembranças, ao profissional da comunicação. Quando se soma a função de comunicador à de profissional-internauta, tal dupla natureza traz a expectativa de uma não-regulamentação elevada à segunda potência, caso se possa assim dizer.

Mas aqui parece comprovado que a intervenção do Estado-juiz nos meios de comunicação, desde que democrática e legitimamente provocado a tanto, é inevitável. Os países mais democráticos são exemplo patente dessa regulamentação, que não necessariamente deve implicar crime ou pesadas sanções a ofensores de direitos. Então, que se deixe bem claro: a auto-regulamentação evita ao máximo a chegada de questões de ofensas a direitos ao Poder Judiciário. E, mesmo quando é inevitável o acionamento do Judiciário, a auto-regulamentação influencia o juiz a acatar o pensamento ético do grupo, isso sem falar em sua auto-determinação. Por isso, as experiências de auto-regulamentação no mundo são tão bem sucedidas. E no Brasil, inclusive. [O Brasil tem aquela que talvez seja uma das mais eficazes experiências de auto-regulamentação de todo o mundo. Trata-se do Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária, o Conar. Ele surgiu a partir do anterior Código Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária. Esse código, por sua vez, foi uma reação dos publicitários à idéia governamental, advinda no fim da década de 70, de impor um controle oficial à publicidade. O Conar orgulha-se de, não obstante a falta de poder coercitivo estatal, jamais haver tido qualquer de suas decisões desrespeitada pelas agências de publicidade, como se lê no texto de sua página oficial na internet: ‘Logo em seguida, era fundado o Conar, Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária, uma ONG encarregada de fazer valer o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária. Desde então e até esta data, o Conar já instaurou mais de 4.000 processos éticos e promoveu um sem-número de conciliações entre associados em conflito. Nunca foi desrespeitado pelos veículos de comunicação e, nas poucas vezes que foi questionado na Justiça, saiu-se sempre vitorioso.’]

Formas alternativas

Se os donos de blogs noticiosos criassem um Conselho que, desprovido de qualquer poder coercitivo, se propusesse a julgar os casos de supostos abusos a direitos como a honra, a intimidade, ou até o direito coletivo à verdade, sua liberdade seria muito maior. Com um trabalho sério, suas decisões tornar-se-iam de todo vinculantes e a necessidade de intervenção judicial cairia, correndo tudo bem, ao zero. Principalmente, os leitores teriam crédito naqueles blogs que se submetessem à auto-regulamentação como fonte confiável de notícia – e essa confiança, assuma-se, ainda falta para o grande público, em se tratando da página individual na internet.

É essa nossa proposta. Se nos permitem, porém, o toque subjetivo na conclusão desse estudo, é preferível apelar para a experiência de criminalista: as eleições vêm aí e serão as primeiras em que os blogs noticiosos aparecem como fortes formadores de opinião. E não é preciso dizer como a ética de muitos formadores de opinião se corrompe em tempos de grandes decisões eleitorais. Trata-se apenas de um alerta.

Enquanto não vem a uma eficaz auto-regulamentação – que poderia surgir em uma forma jurídica não complexa e um código ético e processual ético objetivo – não é justo que as empresas jornalísticas regulamentadas respondam por uma lei entendida como severa, enquanto na mídia virtual a informação corra sem regulamentação, mas ganhando – com ou sem méritos – credibilidade. Nosso país é mestre em premiar a informalidade, incentivando os meios regulares de prestação de serviço a migrarem para as formas alternativas, a que a lei não alcança. Não é só em relação à comunicação que o Estado incentiva o êxodo a zonas cinzentas onde seu controle não vige. Sei que tal colocação é vaga, mas a creio compreensível: sem uma regulamentação, em país de poucos leitores, a imprensa responsável, estruturada, investigativa e, no quanto possível, ética, corre o risco de sofrer severos prejuízos. E não creio que seja o momento exato de o Estado intervir nesse processo – por ora, deixar em suas mãos essa regulamentação pode significar tentação irresistível ao controle direto de uma nova mídia.

Mas isso são outras divagações.

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Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo, pesquisador convidado pela Universidade de Valladolid, membro da União Brasileira de Escritores, autor de Responsabilidade Penal na Lei de Imprensa, Apta Edições