Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vantagens e desvantagens de cada possibilidade

O Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar ainda neste mês a revogação da Lei de Imprensa e, em conseqüência, a obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo no Brasil.


Desde 11 de outubro de 2001, quando o Ministério Público Federal em São Paulo ingressou com a Ação Civil Pública contra essa obrigatoriedade, que é vigente no Brasil desde a edição do Decreto-lei nº 972, de 17/10/1969, a questão vem dividindo opiniões entre os profissionais da área. Em 16 de dezembro de 2006, o STF concedeu liminar que suspendeu a exigência do diploma e desde então o debate que se esperava, com mútua defesa de argumentos e a construção de caminhos, não ocorreu. Não houve um debate claro para que a população – e os próprios profissionais – soubessem, de fato, as vantagens e desvantagens de cada possibilidade.


No ano passado tratei insistentemente deste tema, no esforço de ampliar esta discussão. No entanto, poucos foram os espaços dedicados – e as pessoas dispostas – a um debate honesto e isento de preconceitos. Justiça seja feita ao Observatório da Imprensa, que viabilizou um fórum para tantos quantos quisessem expressar seus pontos de vista sobre o tema, e à Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA), que, em novembro passado, realizou um amplo debate reunindo profissionais e membros da academia, invertendo a postura adotada pela maior parte da academia, que optou pelo discurso vazio, de mão única em defesa do diploma, ao invés da saudável contraposição de idéias.


Diferencial na formação


No artigo ‘Debate sobre o diploma de jornalismo… que debate?‘, de outubro de 2008, afirmei que, se tivessem interesse por um debate real sobre o tema, os defensores da obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão teriam que analisar as fontes do procurador da República André de Carvalho Ramos ou a própria sentença da juíza-substituta Carla Abrantkoski Rister, da 16ª Vara Cível da Justiça Federal de Primeira Instância de São Paulo.


Estas fontes remetem ao Comitee to Protect Journalists (CPJ) sobre a Lei Orgânica do Colégio de Jornalistas de Honduras, de 1972; ao respeito aos princípios da Declaração Interamericana sobre os Direitos Humanos; aos pareceres da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como aquele que é contra a exigência do diploma e de outros tipos de regulamentação; à Charter for a Free Press, de 1987, na qual representantes de entidades jornalísticas de 34 países reunidos em Londres estabeleceram dez princípios para assegurar a liberdade de imprensa no mundo (o nono princípio afirma explicitamente: ‘As restrições por meio de regulamentação ou de outros procedimentos de certificação ao livre acesso ao campo do jornalismo ou sobre sua prática precisam ser eliminadas’); ao endosso do relatório ‘World Information and Communication Report – 1990-2000‘, da Unesco, aos princípios da Charter for a Free Press; à inclusão da exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista no Brasil e à lista de agressões à liberdade de imprensa citadas no documento ‘Overview: The Américas’, do CPJ.


Finalmente, estas fontes remetem ao fato de que a exigência do diploma para o jornalismo é característica de poucos países (em sua maioria com pouca tradição democrática) como África do Sul, Arábia Saudita, Colômbia, Congo, Costa do Marfim, Croácia, Equador, Honduras, Indonésia, Síria, Tunísia, Turquia e Ucrânia; e de que ele não é exigido na Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Chile, China, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália, Japão, Luxemburgo, Peru, Polônia, Reino Unido, Suécia, Suíça e em vários outros países onde, ainda assim, se faz jornalismo de tão boa (ou melhor) qualidade que o nosso.


Esta realidade reforça o argumento de que os cursos superiores de jornalismo do Brasil deveriam ser o que eles são em outros países: um diferencial na formação de profissionais.


Argumentos e preconceitos


O debate promovido pela ECA em novembro foi um dos poucos momentos nos últimos anos em que se pôde por um fim a esta guerra de trincheiras na qual cada lado disparava seus argumentos devidamente protegido por barricadas de idéias pré-concebidas. Ali se delinearam alguns consensos e divergências que cercam a polêmica.


Integrante da mesa (ao lado de Pedro Pomar, editor da Revista Adusp, da Associação dos Docentes da USP, e Maria Elisabete Antonioli, professora de jornalismo da Universidade Ibirapuera e das Faculdades Integradas Rio Branco), o jornalista Maurício Tuffani (que em seu blog reúne um dos mais completos dossiês sobre a questão da obrigatoriedade do diploma) fez um amplo diagnóstico deste salutar confronto de idéias em seu artigo ‘Debate na USP isola falácias sobre exigência do diploma‘, cujos pontos mais importantes resumo em seguida.


Os consensos


** Não à desqualificação dos oponentes – Foi inadequado o procedimento da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) de reduzir à mera defesa de interesses patronais as críticas à obrigatoriedade do diploma. Em contrapartida, a defesa dessa exigência não pode ser identificada automaticamente com a defesa de interesses corporativistas de sindicatos, donos de faculdades particulares ou professores de jornalismo. Na prática, esses expedientes consistem no apelo à falácia do argumentum ad hominem.


** O decreto-lei e a Junta Militar – Não é válido o argumento de que a obrigatoriedade do diploma não é legítima porque foi estabelecida pelos ministros militares que governaram o país em 1969. Não se pode escamotear o fato de que várias reivindicações foram levadas meses antes por sindicalistas ao governo. (A esse respeito, vale a pena ler o artigo o artigo ‘Liberdade de expressão e regulamentação profissional’, de José Carlos Torves, publicado em 26/08/2008 no Observatório da Imprensa). No entanto, pode e deve ser explorado juridicamente o fato de esse decreto-lei não se basear em nenhuma outra lei, mas somente no AI-5 e no AI-16, revogados desde 1979.


** Não confundir a formação com sua exigência – Deve-se evitar a expressão ‘contra o diploma’. O que está em questão não é a formação, mas a sua obrigatoriedade. Melhor dizendo, a obrigatoriedade da formação superior específica em jornalismo para o exercício dessa profissão. A ressalva pode parecer óbvia, mas a divisão simplória entre ‘favoráveis ao diploma’ e ‘contrários ao diploma’ tem servido para potencializar equívocos, principalmente entre aqueles que estão pouco informados sobre a questão.


** Jornalismo não é só prática – Não é verdade que o jornalismo se aprende somente com a prática. Esta não é suficiente para o exercício da profissão de acordo com seus preceitos éticos e técnicos. Além disso, o jornalismo exige boa formação cultural e humanística. A divergência responsável entre favoráveis e contrários à obrigatoriedade está na forma com a qual deve ou pode ser obtida ou comprovada essa formação.


** Qualidade dos cursos não serve como argumento – A afirmação de que os cursos de jornalismo, em sua maioria, são ruins não serve para invalidar a sua obrigatoriedade. Esse argumento pode justificar a suspensão ou o fechamento caso a caso de cursos de qualquer área, mas não o fim de sua obrigatoriedade.


** Não confundir opinião com jornalismo – Muitos dos que são contra a obrigatoriedade do diploma se equivocam ao usar artigos opinativos de especialistas como exemplos de bons trabalhos jornalísticos. O Decreto-lei 972/1969 não impede que especialistas de outras áreas escrevam como convidados ou como colaboradores. O que está em questão é se só a formação superior em jornalismo pode preparar alguém para exercer funções exclusivamente jornalísticas, como as de repórter, redator, editor e outras.


** Ideologização e falta de verificação – Muitos daqueles que evitam o debate alegam que ele é ‘ideologizado’. No entanto, seja no sentido amplo ou no específico do termo ‘ideologia’, não é possível evitar aspectos ideológicos na discussão. O ponto relevante é que muitas manifestações têm sido feitas sem preocupação com a verificação e a análise de suas premissas.


** Não confundir exigência do diploma com regulamentação – A profissão de jornalista é regulamentada em muitos dos países em que não há o requisito de formação superior específica para ela. Uma discussão que poderia ter sido feita durante os últimos anos, mas que foi negligenciada, é exatamente sobre os diversos modelos de regulamentação vigentes.


** Jornalismo cidadão – Isto, por princípio, não é jornalismo. Na maioria dos casos, os veículos em que essa atividade é desenvolvida não devem necessariamente ser considerados jornalísticos. O fato de as novas tecnologias de comunicação abrirem cada vez mais oportunidades de expressão, como os blogs e sites pessoais, traz maior complexidade para o desafio de regulamentar a profissão, mas não serve como argumento contra a obrigatoriedade do diploma. Os veículos que não se pautam pelos preceitos técnicos e deontológicos do jornalismo — o que inclui muitos blogs e sites de pessoas formadas em jornalismo — não são jornalísticos. Não são nada mais que novas fontes.


As divergências


** O assunto não se limita ao aspecto constitucional – O Recurso Extraordinário 511961, do Ministério Público Federal de São Paulo não limitou o tema ao aspecto constitucional, na medida em que apelou para outros dispositivos com força de lei no Brasil como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, das Nações Unidas, e a Convenção Americana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos:




Declaração Universal dos Direitos Humanos. Artigo XIX.


Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.


Convenção Americana de Direitos Humanos. Artigo 13.


Liberdade de Pensamento e de Expressão


1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.


2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei a ser necessárias para assegurar:


a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou


b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.


3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.


** Omissão de professores – Não se viu respostas dos acadêmicos defensores da obrigatoriedade a diversas contestações explícitas a essa exigência, principalmente a manifestações de importantes teóricos da comunicação. Com essa omissão, eles, na condição de docentes e pesquisadores, renunciaram a exercer plenamente o ethos acadêmico e, na condição de jornalistas, renunciam ao debate de idéias.


Um exemplo de estudioso da comunicação muito respeitado no Brasil e no mundo, e contrário à obrigatoriedade do diploma é Daniel Cornu, professor do Instituto de Jornalismo e Comunicação, da Universidade de Neuchâtel, de Lausanne, e diretor do Centro Franco-Suíço de Formação de Jornalistas, de Genebra. Mas não se vêem contestações à afirmação dele de que:




‘o jornalismo é uma ‘profissão aberta’, que não exige formação específica ou diploma. Sua definição é tautológica: é considerado jornalista quem exerce sua atividade principal na imprensa escrita ou nos meios de comunicação audiovisuais. Mais precisamente, são reconhecidos como jornalistas os agentes da mídia, independentemente dos meios ou técnicas de expressão utilizados, que satisfaçam três critérios: a concepção e realização de uma produção intelectual, uma relação deste trabalho com a informação, além do critério de atualidade’ (Daniel Cornu. Ética da Informação. Tradução de Laureano Pelegrin. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1998, pág. 19).


** Condição necessária – a formação superior específica em jornalismo não é condição necessária – muito menos condição suficiente – para o exercício dessa profissão com base em seus preceitos técnicos e éticos.


Se uma pessoa tem as qualificações mínimas para exercer a medicina, a engenharia, a odontologia, a veterinária e várias outras determinadas profissões, é porque ela teve formação específica nas respectivas áreas. Ou seja, é impossível neste início de século 21, ter tais qualificações sem ter estudado na respectiva área acadêmica. Nesses casos, a formação superior específica é condição necessária para o exercício de tais profissões. Por isso, justifica-se sua obrigatoriedade nos termos do inciso XIII do artigo 5º da Constituição.


No entanto, se uma pessoa tem as qualificações mínimas para exercer o jornalismo, não podemos afirmar que ela necessariamente estudou jornalismo, o que é atestado pelo que acontece em quase todo o mundo. O mesmo se aplica à publicidade, à administração (que é exercida também por economistas, engenheiros e formados em outras áreas) à música, às artes cênicas. Isso quer dizer que a formação superior específica não é condição necessária para o exercício dessas profissões. E é por isso que não se deve exigir formação superior específica para elas.


** Falácia recorrente – Não há consenso sobre as qualificações necessárias para o jornalismo, que seriam obtidas exclusivamente por meio da formação superior específica. Esse é um dogma que sempre esteve por trás da confusão recorrente do jornalismo com profissões que exigem qualificações obtidas necessariamente por meio de cursos superiores específicos. Sem falar nos argumentos do tipo ‘então tem de abolir também o diploma de médico, engenheiro…’


** Direito de opinião – A alegação de que muitos críticos da obrigatoriedade confundem direito de expressão e exercício profissional se baseia em uma premissa: a de que a formação específica é condição necessária para qualificações exigidas pela profissão. Mas é justamente isso o que deveria ser discutido. Em outras palavras, essa alegação incorre naquilo que em lógica se chama falácia da petição de princípio.


Escribas de aluguel


O fato é que, mantida ou não a exigência do diploma específico para o exercício do jornalismo no Brasil, os graves problemas éticos, econômicos e profissionais que permeiam o ofício se manterão inalterados. A manutenção ou queda desta exigência não mudará o fato de que nos encontramos em um momento no qual até mesmo a existência da profissão está em jogo diante das novas tecnologias e – em conseqüência – das novas formas do fazer jornalístico que aproximam o cidadão comum das ferramentas necessárias para tal.


A exigência ou não do canudo nada modificará na relação promíscua que mantemos com os donos do poder, na nossa subserviência que transforma jornalistas em ‘assessores de imprensa’ dos barões da mídia. Não é o diploma que garantirá uma ética de base sólida, que formará cidadãos conscientes de seu papel social, que apontará os caminhos de um jornalismo transformador ao invés de um jornalismo circense no qual o sensacionalismo, o entretenimento e a superficialidade tomaram o espaço da informação relevante.


Para mudar tudo isso e transformar o jornalismo em algo mais que um amontoado de apresentadores perfumados e escribas de aluguel será preciso que enxerguemos nesta bela profissão uma ferramenta de avanço social, de combate à corrupção, de transformação. E isso exige uma formação muito mais complexa do que oferecem as centenas de cursos de Jornalismo que se espalham hoje pelo país.

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Jornalista, edita o blog Escrevinhamentos