‘Todo mundo fala sobre educação e quem trabalha diretamente com o assunto, que é o professor, não pode falar. Isso faz parte da tentativa de fazer com que o ofício perca o seu caráter político. O professor está perdendo a voz, a autoridade’, disse Mariângela Graciano, coordenadora do Observatório da Educação, em texto de Rubem Barros, do Portal Revista da Educação, em 10/09/2007.
Profissionais em educação, quando não incorrem no grave erro de permanecerem silentes, são postos silentes por jornalistas, pauteiros, administradores públicos, comentaristas ‘pensadores’ (entre aspas porque são reconhecidos como tais), empresários, artistas, jogadores de futebol… Como todos eles, dando seus palpites sobre educação, especialmente a pública. E raríssimos – para não dizer nenhum – têm conhecimento suficiente para isso. Portanto, independente da causa, o fenômeno retratado na frase de Mariângela (professores perdendo voz e autoridade) reflete-se na real e enorme parcela de culpa dos professores para a baixa qualidade do ensino público no Brasil: o silêncio espontâneo ou imposto e aceito.
Para discutir os problemas da educação pública, incluindo suas causas, aqueles que os vivem cotidianamente precisam ser ouvidos. É condição para a busca de alguma solução. Mas por conta da forma como o tema é debatido, independentemente da abordagem, as (poucas) teses unânimes entre os professores nunca vêm à tona ou são consideradas superficialmente, de maneira tal que sociedade e consumidores de informação não podem visualizar a verdade.
Ferramenta para fins bizarros
É comum que matérias, textos, ensaios, entrevistas e reportagens especiais sobre educação se baseiem em dados estatísticos ou em índices econômico-financeiros, infalivelmente margeando questões funcionais e salariais, sempre criticando a categoria. Vivemos, no que concerne ao debate sobre o tema, não meramente a era estatística e economicista da educação, mas também a era da crueldade e de uma desesperada busca por culpados. Diante da tempestade, quais questões estão ausentes no debate sobre educação pública?
O pequeno investimento do Estado na educação é tão evidente quanto trágico, mas não é o único problema (em algumas das redes públicas de ensino, talvez não seja nem o maior deles). A questão reside também em como e para quê são utilizados os recursos. Quando parte do orçamento de uma gestão, independente da esfera de governo, é usado na contratação de consultorias, auditorias, ONGs e OSs que pouco podem contribuir com os reais objetivos da educação e que mais servem para contentar ‘compadres’, amigos, aliados e financiadores com contratos públicos (e é neste nicho que se explica a Prova Brasil, SARESP e Prova São Paulo, por exemplo, além de outros incontáveis projetos federais, estaduais e municipais) ou em processos de terceirização de serviços que são absolutamente cruéis e dicotômicos – o objetivo imanente de qualquer empresa privada é o lucro, não o serviço ao público – ou em abomináveis programas assistencialistas que, como no ditado popular, ‘colocam o carro na frente dos bois’ e são usadas eleitoreiramente (usar o termo ‘eleitoralmente’ transmitiria uma impressão nobre demais para o caso) ou quando se estende a abrangência de programas que beneficiam, antes do bem da educação, o caixa de muitas editoras, fica evidente que o primeiro objetivo no uso dos recursos destinados à educação não é o de implementar sua qualidade, mas sim de usá-la como ótima ferramenta para bizarros interesses.
Triste definição
Não bastasse isso, mais recursos são desperdiçados – ou distribuídos – em publicidade governamental mentirosa. A crítica não é a este ou aquele partido, à União ou qualquer unidade federativa ou qualquer município em particular: é uma prática generalizada, vil, quase criminosa; qualquer um que realmente se dedique à educação, indigna-se ao ver ou ouvir um prefeito, governador, secretário, presidente ou ministro contar meias-verdades ou absolutas mentiras.
Por conta de tudo isso, a escola pública – falo, sim, sob risco de uma generalização quase injusta – perdeu seu papel. Transformou-se num centro assistencialista (usado com objetivos pérfidos), onde a população pode tudo, acumulando incontáveis direitos e para o qual não tem nenhum dever, e suas poucas obrigações, que só podem ser discutidas e cobradas no âmbito legal, são tratadas com leniência pelo Estado, que prima pelo cumprimento da Lei quando lhe é viável economicamente e mostra-se perfeito em ignorá-la quando exige o uso do erário público ou a funcionalidade de sua estrutura. E é por isso que já há anos a instituição escola pública, contrariamente ao que deveriam ser seus objetivos e em detrimento dos esforços de muitos dos profissionais que estão cotidianamente dentro dela, ensinam constantes lições de irresponsabilidade, impunidade – tão debatida e criticada em outros âmbitos –, indiferença e comodismo, não só aos seus alunos regularmente matriculados, mas muito mais a boa parte dos pais, mães e responsáveis por eles.
A escola pública é, indiscutivelmente, a melhor ferramenta que o Estado brasileiro tem para se aproximar e amparar sua população. Mas, infelizmente, travestiu-se em ferramenta político-partidária usada com desfaçatez por todos os matizes da política nacional.
Chegamos a uma triste definição: falar de escola pública não pode mais ser sinônimo de falar em educação pública.
Trevas estão de volta
Não bastasse tudo isso, ou por causa de tudo isso, a sociedade brasileira, no sentido mais amplo, não tem preocupação consistente para com a educação pública (talvez tenha com a escola, por ter ela se transformado em centro assistencialista). Indistintos setores criticam a situação das escolas, as condições e a aprendizagem em geral dos alunos e principalmente os profissionais em educação, mas nenhum setor faz, pelo menos, sua parte para colaborar na recuperação da importância do saber, do conhecimento e da aprendizagem como valores. Ao contrário, instiga-se um consumismo crescente e inconseqüente, mergulhado nas supostas facilidades da suposta vida moderna: não se lê porque se pode ouvir ou ver, não se pensa porque é fácil obter idéias prontas – ainda que absolutamente equivocadas. E tudo com seu preço, consciente ou inconsciente. Nenhuma reflexão sobre as conseqüências mediatas e imediatas que têm os infindáveis e variáveis produtos ditos de informação, consumidos aos montes, diariamente, e que se revelam enorme lixo (sub)cultural. Deixar de tocar tal música por conta do que ela diz e quem ela atinge: jamais, pois é censura; não exibir o programa em virtude do risco de apologia às drogas, ao crime: antiquado; criticar a literatura de viés puramente comercial: discriminação; dispensar anunciantes por causa dos riscos apresentados pelo produto: inviável.
Fiquemos com canais, programas, quadros e inserções ‘especiais’ valorizando a tolerância, a cidadania, a língua, a ciência, a educação e o saber. Tudo feito como ‘detergente da consciência’: ‘Vejam só, discutimos os problemas, temos responsabilidade social‘. Ora… Conveniente para a mídia audiovisual, que tem compromissos públicos legais – pouquíssimo divulgados e ainda menos cobrados –, para manter as concessões. E, além disso, tudo ‘escondido’, perdido em horários inviáveis, não divulgados, por isso jamais atingirão o público: ele faz suas escolhas que, em 99 dentre 100 possíveis, beiram o lixo. Qual poderia ser o resultado? As trevas culturais da Idade Média estão de volta, sob nova forma. E não há perspectiva de um novo Renascimento. A humanidade, com conhecimento cada vez maior; o indivíduo, com um saber cada vez menor.
Experimentos impraticáveis
Vejo-me obrigado a acreditar, tristemente, que corremos o risco de retornar ao absurdo da mais cruel das censuras, como resultado da incapacidade da ponderação e da irresponsabilidade generalizada tanto de quem produz como de quem consome a informação desinformadora, desestimulante e deseducadora.
Não bastassem os problemas aqui citados e outros mais comumente debatidos, resta o que talvez seja o maior dos dramas: o academicismo inútil que permeia as práticas e políticas pedagógicas no âmbito público.
Beira o misticismo, ou já se transformou em mistificação: nova visão sobre a capacidade cognitiva das crianças e adolescentes, novas formas de alfabetização e ensino, novas práticas, métodos modernos. Sou professor, mas vejo atualmente a pedagogia como uma ciência que parece desprezar completamente o empirismo: cria-se teoricamente o novo e não se observa a sua aplicação. Digo que parece desprezar porque, na verdade, não despreza, mas desvirtua o empirismo. Inúmeros autores teorizam sobre práticas educativas, baseados em experiências que jamais serão reproduzidas nas salas de aula das escolas públicas brasileiras: projetos com meia dúzia de crianças selecionadas acompanhadas por mais de um profissional em educação, dotados de todos os materiais planejados… Experimentos que se mostram um grande sucesso, mas são fantasiosos por serem evidentemente impraticáveis nas escolas de verdade, tais como elas são hoje.
Inclusão é excludente
A superlotação é o primeiro e principal dos problemas: das redes públicas que conheço, a mais razoável em número de alunos por sala forma turmas de, no mínimo, 25 alunos no 1o ano/série – e é discutível se somente com 25 o trabalho já é tão produtivo quanto poderia ser. Outras redes públicas colocam professores em salas com 40 ou mais alunos, em espaços diminutos e precários. Além disso, em regra as práticas demandam quase que um sacerdócio – já realizado, não raramente – dos profissionais em educação: a pesquisa, a coleta e a disponibilização, por sua conta (tempo e dinheiro), de material informativo/conteudístico/sensibilizatório de qualquer natureza, para o andamento das aulas. Alunos têm os materiais básicos – quando os trazem, quando os usam; nós temos disponível, como regra, a voz, o giz e a lousa; quando muito, um livro didático – que dificilmente acompanha as mesmas práticas pedagógicas que nos são cobradas, posto que são obras prontas, remetidas para que façamos uma simples escolha – e, como regra, quase nunca atendida: não raramente, recebemos a segunda ou terceira opção apresentada.
Para chegarmos ao cúmulo, adotou-se no Brasil o discurso da inclusão. E aqui não vai um questionamento quanto à validade ou necessidade de se adotar a prática inclusiva de crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais. Mas a questão reside no fato de que ela simplesmente não ocorre. Alunos com limitações físicas ou de aprendizagem são submetidos a salas superlotadas, atendidas por um único e sobrecarregado profissional, sem receber a atenção, os esforços e os cuidados convenientes, e sua presença na escola torna-se pouco significativa para ele mesmo. Além disso, os colegas também sofrem as conseqüências de aulas seriamente prejudicadas pela presença de um aluno como esse. A inclusão mostra-se, portanto, a mais excludente das práticas: prejudica severamente os alunos para incluir e os demais da sala, tornando o processo educativo um fracasso continuado.
Manter os superávits
E os professores dedicados, responsáveis – que não são poucos, nem a minoria – são comumente jogados na vala comum dos maus profissionais: taxados de incompetentes, mal formados, preguiçosos. Isso já é há tempos tema freqüente de matérias jornalísticas, e de certos dementes (adjetivo que lembra muito o nome de um renomado articulista, useiro e vezeiro em falar sobre educação, mas que provavelmente nunca pôs os pés dentro de uma escola pública nem como aluno) que vêem no professor o problema central da qualidade do ensino no Brasil.
Mas para além da questão dos salários – problema muito (mal) debatido – há o grave entrave da jornada de trabalho do professor: primeiro, perpassando a própria questão dos vencimentos, já que a maioria dos professores tem mais de um emprego ou mais de um cargo para manter um nível de vida meramente nos padrões mínimos de dignidade; e o problema de como se compõem as jornadas: quando não integralmente, a esmagadora maioria do seu tempo de trabalho é gasto dentro da sala de aula. Como regra, para todas as outras atividades intrínsecas ao seu papel profissional, há que se usar o parco tempo que sobra para corrigir, checar, preparar aulas, pesquisar, atualizar-se, formar-se, capacitar-se. Só com o milagre da multiplicação do tempo ou em outro planeta, onde a duração do dia seja maior que as 24 horas terráqueas, seria possível cobrar-lhes qualidade total em suas aulas.
É uma questão de visão e de opção, e a administração pública, sem ver ou fingindo que não vê, opta: quanto menos professores, melhor; quanto mais eles trabalharem – e só em sala de aula, melhor. Mantêm-se os superávits…
O caminho correto
Para os repórteres, pauteiros, colunistas, comentaristas – ou, mais genericamente, jornalistas – famosos, queridinhos da mídia e outros palpiteiros não enquadrados nas categorias anteriores, tratar da educação pública como matéria séria e como o mais sensível dos aspectos do futuro próximo perpassa pela discussão dos temas acima. Entretanto, raramente eles são abordados. Raramente são vistos. Raramente são pensados. Adota-se a discussão de outros aspectos – também problemáticos – mas discutidos, quando não de maneira hipócrita, de maneira incompleta. Qual texto jornalístico da grande imprensa não inclui, obrigatoriamente, perguntas aos secretários de educação (estaduais e municipais) ou acadêmicos? E qual deles possui um relato consistente de um professor das salas de aula? As inúmeras doenças às quais os professores estão submetidos diariamente são tratadas como ‘indústria das licenças’; os problemas de formação aferidos em provas mal formuladas (por distantes do que é exigido em sala de aula) e em pesquisas ‘sócio-econômicas’ e qualitativas, plenas de perguntas capciosas, são mostrados como conseqüência da incompetência e da má-formação dos professores; professores são vistos como profissionais de ‘vida mansa’.
Como não consigo resistir, tenho que oferecer exemplo: um grande jornal brasileiro – o de maior tiragem no país – publicou recentemente, na mesma edição, uma matéria dizendo que os professores brasileiros aposentam-se mais cedo, se comparados a profissionais equivalentes de outros países do mundo, e outra afirmando que 42% dos educadores do país estão contentes com sua atividade. Apenas faltou dizer como se construíram essas conclusões, faltou informar que, no bojo da transformação das leis previdenciárias dos servidores públicos, as regras para aposentadoria são, hoje, completamente diferentes daquelas com as quais profissionais em educação já se aposentaram e que serviram de base para a comparação. E, do contentamento dos professores com sua profissão, além de não determinarem qual a técnica de amostragem, faltou incluir na manchete o depoimento de uma professora que integrava a matéria, que afirmou: apesar dos baixos salários, apesar das más condições de trabalho, apesar das frustrações, professores não deviam deixar de gostar de sua profissão. Talvez por puro sacerdócio.
Especialmente nos últimos anos, desabrochou a preocupação hipócrita e a discussão inconseqüente sobre educação. Alguns expoentes da mídia escrita aventuram-se, freqüentemente, a dar seus ‘pitacos’ na educação e tirar conclusões parciais que ou são pouco inteligentes ou, pior ainda, comprometidas com interesses escusos – e, mais uma vez, o alvo são os professores.
Falta encontrar o caminho correto, tanto nas discussões como na prática político-social no que tange à educação. Atirar aos ombros dos professores a culpa pelo fracasso do sistema público de educação é simplório e, além de tudo, contraproducente. Achatar seus salários, piorar cada vez mais suas condições de trabalhos, cobrar-lhes cruelmente, e exclusivamente, por uma tarefa que é eminentemente social não resolverá os problemas. Ouvi-los, talvez seja um caminho melhor.
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Professor da rede municipal de São Paulo, São Bernardo do Campo, SP