Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A paisagem

O Brasil era um País quase insípido, mofino, quase abúlico, no início de março de 1964. Sem qualquer sintoma de comoção ou de agitação. Aparentemente entediado dos seus ‘homens
providenciais’ e das suas intermináveis crises.
Um país
sem novidades, envelhecido, demasiadamente provinciano, sem imaginação

até para fazer manchetes. Excessivamente conformado com tudo –
com a inflação que

minava as suas resistências, com
o seu subdesenvolvimento, com a mediocridade do seu Governo, com a incompetência
da sua Oposição, com a
indigência das suas elites, com o falatório dos seus demagogos, com
a inautenticidade e a insinceridade dos seus reformadores, com a esperteza dos
seus aproveitadores e com a estupidez dos seus reacionários.

As primeiras páginas dos jornais brasileiros, no início de março
de 1964, retratavam com fidelidade o País morno e desesperançado
em que vivíamos.


Ao primeiro minuto de março, todos os relógios brasileiros atrasaram-se uma hora: o Governo revogara o decreto da Hora de Verão. Decidira que era inverno – e, pronto, inverno seria daí em diante.

Era um domingo preguiçoso – e o Dr. João Belchior Marques Goulart, Presidente da República, tinha todos os motivos para gozá-lo bem, longe de tudo, escondido do mundo, descansadamente, arejando-se em uma de suas grandes fazendas, no Estado de Mato Grosso. Caçando, pescando e cozinhando para o pequeno João Vicente, para a menina Denise e para a bonita Dona Maria Teresa.

O Dr. João Belchior Marques Goulart acordara mais velho: nos 46 anos. Ele próprio decidira presentear-se com um fim de semana vadio e despreocupado, pondo-se fora do alcance dos aduladores e das gentilezas oficiais. Para um homem, como ele, nascido e criado no campo, essa gente e essas coisas nunca tiveram maior significação, sempre foram fatigantes. No dia em que atingia 46 anos de vida, como os cabelos rareando, o rosto já muito vincado e um razoável conhecimento dos homens do mundo grande, o Dr. João Belchior Marques Goulart decidira evitar os rapapés. Agrados e presentes – só aceitaria os de João Vicente, Denise e Dona Maria Teresa.

O Governador Magalhães Pinto, do Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, lançou maus um manifesto à Nação, nas edições dominicais. A Nação, aos domingos, compra mais e lê melhor os seus jornais. No novo Manifesto, o Governador Magalhães Pinto repisava uma advertência endereçada particularmente ao seu Partido – a UDN.

Insistia o Governador de Minas, até então considerado pelos esquerdistas e comunistas um dos mais esclarecidos e sensíveis representantes da ‘alta burguesia nacional’.

– Áreas enormes, sobretudo da classe média brasileira, estão sendo submetidas a um processo de hipnose que arrasta as camadas da população a um anticomunismo irracional e fanatizado.

– Dois grandes males põem em risco a paz e a liberdade de nossa Pátria, na conjuntura atual. São eles a inflação financeira e o radicalismo político.

E prosseguia, profético, o Governador Magalhães Pinto, no início de março:

– O medo de perder gera a mesma fúria agressiva que a cobiça de ganhar. Em breve, se não houver possibilidade de uma solução equilibrada, o destino da maioria dos brasileiros estará à mercê dos grupos extremistas minoritários, que, por um misto de ambição e medo, se atiram já à ação direta, para a revolução ou para o golpe de Estado.

Mineiro é manhoso. O Governador Magalhães Pinto é mineiro demais. Sua advertência e sua incontinência perderam-se, sem comentários. No máximo, mereceram, de uns quantos, um riso matreiro, de desconfiança.

Mais intranqüilizadora e, para muitos, mais graves, foram as palavras de outro mineiro, menos manhoso, menos político, menos hábil do que o Governador Magalhães Pinto: o rústico Chicão, sapateiro, líder dos camponeses da cidade de Governador Valadares. Respondendo a ameaças de violências, feitas pelos fazendeiros contra o deputado Leonel Brizola, o sapateiro Chicão, o líder Chicão, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Lavoura, era muito incisivo:

– O Deputado Brizola pode vir à reunião do dia 8, programada pelos camponeses do Vale do Rio Doce. Pode vir, e mandar brasa. Nós garantimos.