É sabido que, no Brasil, se cultiva certo fascínio em celebrar ‘datas redondas’. Diferente, pois, não é quanto aos 40 anos da implantação do regime militar. De propósito, evitei o rótulo tradicionalizado como ‘golpe de 64’, por entender que o ocorrido na ocasião esteve bem além de um ímpeto golpista, sob a orquestração de grupos militares. A verdade histórica, amparada no necessário distanciamento crítico, deixa claro que a tomada do poder pelas Forças Armadas tinha pleno endosso de amplos setores da sociedade civil.
Por conta, então, da quarta década relativa àquele 31 de março, encartes especiais inundam jornais, profusão de publicações em livros, além de inúmeros eventos programados que incluem palestras, seminários, exibição de vídeos, entre outros. Nada contra o fato de novas gerações terem farta disponibilidade de meios acerca de algo que estruturalmente modificou os rumos do país. Mais ainda as agendas rememorativas cumprem seu dever, considerando que a memória, no Brasil, não figura como um valor de apelo estimado.
De outro lado, há também de se saber filtrar a tendência a indevidos exageros, sem mencionar a dose de oportunismo de quem sempre possa estar pronto para reforçar heroicidade nem sempre ajustada à realidade dos fatos.
Seja como for, nunca é demais realimentar a defesa da liberdade, até para não possibilitar o saudosismo daqueles que, em relação à época, tendem a nutrir a idéia do quanto ‘aqueles tempos eram melhores’, sob a alegação de que a violência e outros males de agora não existiam. Mal sabem esses que tanto a violência quanto outros males do presente estão presos ao fio contínuo da História. Este, aliás, é o problema entre quem lê os acontecimentos históricos pela via da informação e quem os lê como capítulos de uma alongada narrativa na qual a importante personagem é a História como processo.
A deformação programada
Observemos um quadro comparativo a respeito das transformações pelas quais passou a atividade jornalística, ao longo dos abalos gerados pelo processo histórico. Se por um lado é fato que a vida nacional recuperou a estabilidade democrática, também não deixa de ser verdadeiro que partes afetadas em 64 e abortadas em 68, com a vigência do AI-5, nunca mais foram recuperadas. Entre estas, situa-se a prática jornalística.
É perceptível e inegável que o regime militar redefiniu o perfil da comunicação e do sistema educacional. Aí se deu o irremediável delito. Foi implantado estrategicamente, passo a passo, o processo de ‘deformação programada’. Ilustremos o fato com alguns exemplos.
Somente no Rio de Janeiro, leitores das chamadas classes A e B dispunham de um leque de opções que, no mínimo, abrigavam quatro jornais: Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal do Brasil, O Globo e ainda podiam flertar com a Última Hora ou a Tribuna da Imprensa. As classes C e D se dividiam entre O Dia e Luta Democrática.
No cenário atual – e com sérias restrições – ao leitor carioca mais exigente restam O Globo e o Jornal do Brasil, já que a Tribuna da Imprensa tem circulação limitada. Em diferentes momentos, mas por iguais razões, as amplas opções foram desaparecendo.
Igual processo ocorreu com emissoras de TV (Rio, Excelsior, antiga Record, Continental e Tupi). O casamento entre Organizações Globo e governo foi decisivo para o extermínio de concorrentes. Como conseqüência, o público se tornou refém de um modelo, a partir do qual fixou preferências até hoje inalteradas.
O retorno à normalidade democrática não tem sido capaz de operar transformações à altura da exigência cultural, sem a qual o país jamais atingirá a necessária autonomia.
O que mudou?
O incremento da TV durante o primeiro período do regime militar foi fator decisivo para o início do desmantelamento do perfil jornalístico até então vigente no país.
O fascínio cada vez mais intenso da população pelos encantos da ‘imagem’ foi lentamente sendo transportado para a imprensa escrita. Como sintoma inicial, o padrão de letra foi ampliado ao lado de largos espaços destinados a fotografia. Igualmente as revistas intensificaram o que nelas, por força do próprio objeto, já era natural.
Jornais e revistas – e, adiante, livros – transformaram-se em parceiros da ‘ilusão visual’, o que reforçava a subordinação do público às telas de TV. Em seguida, o golpe derradeiro, com a chegada da televisão colorida. Não tardou para que os jornais também rompessem com o preto-e-branco a fim de incorporarem a ‘estética arco-íris’. O império da cultura visual estava assegurado.
Hoje, o público parece regozijar-se com o fato de ter no país jornais com belíssima diagramação, parque industrial avançado e máquinas de última geração, a encobrir a superficialidade dos conteúdos. Diagramação e fotografia de país desenvolvido em antagônica qualidade quanto a pautas e enfoques.
Enquanto estoques de papel poderiam servir para barateamento de livros importantes, as empresas de comunicação armazenam toneladas com as quais engrossam e multiplicam seus cadernos diários, a fim de atender a qualquer tipo de ‘leitor’. Cada vez mais, jornais se tornam depósitos de variedades, a exemplo da programação de TV e das revistas. Jornais brasileiros contêm, em suas edições diárias, o triplo do que qualquer jornal importante põe a circular pelo mundo. Le Monde, Le Figaro, Libération, Corriere Della Sera, Il Messaggero, El País, The New York Times, entre infindáveis outros, em nada se assemelham ao modelo brasileiro, porque permanecem na simples condição de ‘jornais’, tentando cumprir a missão que, por ofício, lhes cabe. Em seus países, não houve 31 de março de 1964 e suas conseqüências, 40 anos após.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) – RJ