Foi o capítulo mais longo, mais negro e mais estudado da história
brasileira. Estendeu-se por 21 anos, terminou formalmente há duas
décadas – ontem – mas as gerações seguintes – hoje
– continuam sem entendê-lo corretamente.
Pencas de perguntas continuam sem respostas, as mais importantes sequer
formuladas. Golpe ou contragolpe, movimento militar ou civil-militar,
a resistência pretendia a restauração democrática
ou apenas o desgaste do regime militar?
O melhor formulador de perguntas é o tempo. O 40º aniversário
da derrubada do presidente João Goulart e a instalação
de uma implacável ditadura militar seria uma oportunidade para levantar
questões, dúvidas e produzir relatos mais didáticos e menos
passionais. Infelizmente, os radicalismos que geraram o fato estenderam-se às
avaliações quatro décadas depois.
A imprensa que foi cúmplice, e depois vítima, parece constrangida. Não se sente à vontade para ver-se espelhada nas suas páginas. Prefere generalizar: esquece 1962 e 1963, confunde 1964 com 1968, engasga-se com a sua parte na lenda do ‘milagre brasileiro’, passa pelo período 1974-78 como se já estivesse tudo clarificado e preserva alguns vilões que lhe foram de grande utilidade (Delfim Netto, Paulo Maluf e figurões que continuam aboletados no poder como Sarney e ACM). Contenta-se com a titulação melodramática tipo ‘Os Anos de Chumbo’, relembra o romantismo das canções e vai em frente imaginando que em 2014, 2024 ou, quem sabe, em 2064 os pingos sejam finalmente colocados nos ii.
As ‘Horas Estelares’ ou ‘Momentos Supremos’ não existem isolados, desconectados dos antecedentes. Nem acontecem por obra da Divina Providência. Entre a redemocratização de 1945 e o golpe de 1964, registraram-se diversas intervenções militares (ultimato a Getúlio em 1954, que o levou ao suicídio; contragolpe de 1955 favorecendo JK; embargo à posse de Jango, em 1961). Fulminantes, cirúrgicas, acanhadas, nenhuma em tão grande escala, tão incisiva e profunda como o levante militar iniciado em Minas para depor João Goulart.
Alguma ação muito grave provocou tamanha reação. A sucessão de quarteladas incruentas desaguou na maior exibição de crueldade de nossa história e até hoje desconhecemos a mecânica desta metamorfose.
Tiros e intimidação
Até o momento, o retrato de corpo inteiro com verso e reverso do fatídico 31 de março de 1964 ainda não apareceu na imprensa, embora a série de matérias da Folha de S.Paulo, formatada em estilo de contagem regressiva, tente reconstruir a progressão dos acontecimentos. Alguns textos isolados de jornalistas-testemunhas (Carlos Heitor Cony, na Folha, Márcio Moreira Alves, no Globo) ou protagonistas-cronistas (José Sarney, Folha) forneceram elementos oportunos. Em compensação, os surtos de paranóia publicados no portal AOL (http://noticias.aol.com.br/brasil/fornecedores/aol/2004/03/26/0019.adp) e em CartaCapital (‘A imprensa golpista’, nº 284, 31/3/04) mostram quão distantes estão alguns círculos jornalísticos dos seus compromissos com a causa do esclarecimento.
Difusos e incompletos permanecem os fundamentos – o antes, o durante e o depois do golpe. Os infográficos publicados nos últimos dias com a cronologia do que aconteceu não informam, os relatos não relacionam antecedentes, e, assim, o grande trauma dilui-se numa cobertura-efeméridade, meia sonsa. Salvo pequenos focos de luz, a imprensa dá a impressão de que desincumbe-se por obrigação de uma pauta inconfortável, sem humildade para um auto-exame e sem ânimo para levantar questões ‘politicamente incorretas’.
Supondo-se que a mídia impressa seja aquela que fornece ao cidadão a densidade informativa para formar juízos, fácil prever que serão os novos livros ou reedições de obras esgotadas – e não os jornais e revistas de agora – os fornecedores de subsídios para a compreensão serena e a visão trágica do que foi a ditadura militar. Mais uma vez, flagra-se na sociedade brasileira uma compulsão para fugir à dor. Mais cômodo xingar, tirar o corpo fora e esquecer que, apesar das diferenças formais, 1964 e 2004 fazem parte do mesmo processo.
A grande ausente nesta revisão de 1964 feita pela imprensa é a própria imprensa. A modéstia, no caso, é incriminadora. Desde 1945, os cortes abruptos do processo político tiveram a imprensa como pivô. A primeira queda de Getúlio foi apressada pela entrevista de José Américo ao jornalista Carlos Lacerda, no Correio da Manhã. Com ela acabou a censura e acabou o Estado Novo.
A segunda queda de Getúlio começou a ser armada pelo mesmo Lacerda na sua Tribuna da Imprensa, aliado aos barões da mídia, ao denunciar o financiamento da Última Hora pelo Banco do Brasil.
Jânio Quadros renunciou um dia depois de um longo comício televisivo do mesmo Lacerda. E quando começou a crescer o movimento pela legalidade e posse do vice João Goulart, os três ministros militares decidiram-se pelo controle do processo informativo. O Diário de Notícias (Rio), de 30 de agosto de 1961, saiu com grandes manchas brancas em sua primeira página. Foi a primeira censura militar dos tempos modernos.
A segunda tentativa de controle da imprensa, desta vez por parte da tropa fiel a Jango, deu-se no dia 31 de março de 1964, quando o então Contel (Conselho Nacional de Telecomunicações) determinou a todas as emissoras de rádio que se abstivessem de irradiar noticias ‘alarmistas’. À noitinha, um pelotão de fuzileiros navais (a tropa de choque do almirante Aragão em defesa de Jango), em uniforme de combate, parou na porta da antiga sede do Jornal do Brasil (Avenida Rio Branco, 110), deu alguns tiros para o ar, invadiu o prédio e foi até a Redação. Não sabiam o que queriam ou queriam apenas intimidar. Foram-se em seguida (Os idos de março e a queda em abril, pág. 341).
Os dias seguintes
O sinal para que a tropa deixasse os quartéis foi dado pelo Correio da Manhã com a sucessão de editoriais de primeira página nos dias 31 de março e 1º de abril de 1964 (‘Basta’ e ‘Fora!’). O mesmo jornal que esbravejara em 1961 contra a tentativa de impedir a posse de Goulart, agora comandava sua derrubada.
A imprensa deixava de lado sua função mediadora para assumir-se como protagonista. Em apenas 15 dias, de arauto do que então se chamou de ‘revolução’, o Correio da Manhã converteu-se em seu único opositor (a Última Hora, atacada por uma turba de sicários, foi obrigada a se calar). O resto dos grandes jornais do Rio e de São Paulo que participaram da conspiração deram o apoio total ao novo governo.
O bloqueio econômico imposto ao Correio da Manhã não começou imediatamente, levou tempo. Dez anos mais tarde (1974), depois de cooptado por um grupo de militares ‘desenvolvimentistas’ e empreiteiros ‘desenvolvimenteiros’, o jornalão deixava de circular.
As punições impostas ao jornalista Helio Fernandes, diretor da Tribuna da Imprensa, ocorreram no período da ditadura envergonhada convertida em ditadura escancarada, muito antes do AI-5 (conforme as expressões de Elio Gaspari). Tudo era noticiado, nada foi suprimido, mas o garrote foi sendo apertado aos poucos. Houve focos de resistência tanto da parte de jornalistas (muitos) como de empresários (raros); não se deve minimizá-los porque o totalitarismo alimenta-se das generalizações e simplificações.
Por outro lado, não se pode esquecer que a reação à censura em 1968-69 foi neutralizada pela ampla adesão da grande imprensa à autocensura, amparada em grande parte pelo poder de Antonio Delfim Netto sobre as empresas jornalísticas.
A imprensa alternativa, esta sim, foi uma trincheira. Com garra e inteligência soube criar uma consciência de oposição. Foi mais efetiva do que a luta armada, formou quadros, criou consciências. Em vez de sepulturas, deixou uma bela herança. Infelizmente também olvidada.
Os empresários de jornais aprenderam a conspirar em 1964 e tomaram gosto. Em 1973, o Jornal do Brasil conspirou com o general-presidente Emílio Garrastazu Médici para uma solução continuista e só não foi punido pela dupla Geisel-Golbery (que ganhou a parada) porque aderiu de corpo e alma ao seu esquema. A própria ‘distensão lenta, gradual e segura’ só existiu como metáfora jornalística – a realidade foi outra.
De uma forma geral, pode-se dizer que de 1808 até 1937 os jornalistas engajavam-se em causas, Getúlio Vargas foi o primeiro a engajá-los nos seus interesses; e, a partir de 1964, a parceria imprensa-governo tornou-se concreta, parte do processo político.
Com estas notas não se pretende o balanço do que aconteceu nos 7.665 dias que se seguiram ao 31 de março de 1964. Interessa apenas lembrar, sugerir referências, localizar omissões, identificar áreas cinzas e buracos negros. A História não é tribunal, suas sentenças são sempre provisórias, mas a continuação do processo jornalístico compõe os autos. Nos próximos dias, saberemos se este aniversário acrescentou algumas páginas. [Fechado às 18h53 de 29/3/04]