O cinema é um dos meios de comunicação mais antigos e populares. Se as salas de exibição se tornaram mais raras e com preços inacessíveis, os sites de streaming e outras formas de compartilhamento compensam com sua onipresença.
Este diagnóstico de mídia se dedicou a examinar os cinco últimos ganhadores do Oscar a respeito das questões de gênero conforme o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU – Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Com foco na Igualdade de Gênero foram analisados os seguintes filmes: A Forma da Água (2018), Green Book (2019), Parasitas (2020), Nomadland (2021) e CODA (2022).
Para as análises de cada filme, aplicamos o teste de Bechdel criado pela cartunista Alison Bechdel em 1985 em sua obra Dykes to watch out for, com o intuito de verificar se as publicidades da época possuíam representações femininas (se havia mulheres com nome na propaganda) e/ou representatividade feminina (se as mulheres presentes possuíam falas ou importância para a publicidade) e principalmente, se as mulheres estavam relacionadas de alguma forma com uma figura masculina ou se eram figuras independentes.
Acompanhado por três perguntas principais que são: I- No filme, há mais de uma personagem feminina com nome?, II- Essas mulheres conversam entre si? III- O assunto da conversa está relacionado diretamente ou indiretamente a homens ou romances com eles?. Famoso por abranger assuntos de igualdade de gênero, o teste começou a ser aplicado não somente na publicidade, mas também no universo cinematográfico.
Este diagnóstico ainda visa trazer uma reflexão embasada na teoria do cinema sobre a inclusão da narrativa feminina no universo cinematográfico das obras presentes, ou da falta dela. Para Siegfried Kracauer, em Theory of Film, um elemento corporal proposto em cena sugere não apenas a participação dele como simples elemento narrativo, como há de mostrar novos aspectos de uma realidade física. Sendo assim, não existe homogeneidade no universo histórico, que pode e vai ser atravessado por aspectos variáveis e correntes contrárias.
A ideia de Kracauer sugere que independentemente da proposta narrativa – seja ela de embasamento histórico biográfico ou ficcional, para citar duas possibilidades – ainda existe a possibilidade de um diretor, um roteirista ou um produtor de contrapor a não existência de uma narrativa feminina em razão de incluí-la para o direcionamento da narrativa e da própria realidade física do filme. Não fazê-lo, trata-se de uma decisão passível de questionamento.
Por outra ótica, dessa vez pelo olhar crítico da professora Michèle Lagny, da Universidade de Paris III, que justamente analisa o cinema histórico em questões principalmente temporais em seu artigo “Imagens audiovisuais e história do tempo presente”, traz-se que a distância temporal entre a época retratada na obra cinematográfica e o momento que concebeu a obra não necessariamente proíbe que exista uma relação entre os dois pontos temporais. Em tradução para o diagnóstico, um filme não se isenta da não inclusão de uma narrativa ou sub narrativa feminina unicamente por ser um filme de época. A “inconsistência” ou não total fidelidade dos eventos da história não sugerem uma deficiência para com a narrativa de um filme, mas sim incluem o presente do mundo que o produz.
FILMES ANALISADOS
A FORMA DA ÁGUA (2018)
A história de amor de uma mulher muda que é zeladora de um laboratório experimental durante o conflitante momento da Guerra Fria nos Estados Unidos, que acaba por descobrir a existência de uma criatura fantástica que está sendo mantida em cativeiro.
O filme é uma grande narrativa sobre linguagem, atravessando questões de preconceito da época – abordagens sutis sobre sexualidade, capacitismo e racismo – e dando vida a um ambiente surrealista nas terras estadunidenses.
APLICAÇÃO DO TESTE DE BECHDEL
O filme tem duas ou mais personagens com nomes?
O filme conta com duas personagens mulheres recorrentes, Elisa, que é a protagonista do longa-metragem: uma das zeladoras do laboratório, que é muda e que descobre uma paixão pela criatura fantástica. Também conta com sua amiga Zelda, também zeladora, com quem tem uma relação de amizade fortemente estabelecida.
Existe uma terceira personagem feminina com nome que é introduzida como secretária do militar, dado como antagonista principal do filme; seu nome é Sally e ela tem pouco tempo de tela, mas ainda possui linhas de fala com seu chefe.
Elas conversam entre si?
Elas estabelecem diálogo de maneira recorrente durante o longa, conversando sobre assuntos diversos. Durante um período do primeiro ato do filme (minutagem 08:31 até 09:43) elas estabelecem um diálogo de pouco mais de um minuto sobre questões que permeiam o serviço de ambas.
O assunto da conversa é algo que não seja homem ou assuntos relacionados a romances?
Durante o minuto anteriormente citado (no tópico anterior, de 08:31 até 09:43) o assunto recorrente é da rotina de Zelda, que inclui falas sobre a ingratidão de seu marido. No entanto, no minuto 01:04:12 as personagens voltam a estabelecer um diálogo mais extenso e dessa vez trata-se de um tipo de missão de resgate da criatura fantástica que elas têm conhecimento. O diálogo é interrompido por um corte no minuto 01:04:20 mediante o caos que circunda a cena, mas retorna no minuto 01:05:33, encerrando no minuto 01:05:38. Totaliza assim cerca de 13 segundos de diálogo alheio a qualquer pauta masculina.
RELAÇÃO AOS TÓPICOS DO OBJETIVO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
5.4 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais
O primeiro diálogo estabelecido entre Zelda e Elisa aborda questões das atividades domésticas de Zelda em seu ambiente doméstico, em contratempo ao seu trabalho árduo no laboratório.
5.1 Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte
A narrativa dialoga com questões raciais e por questões de deficiência física com recorte de gênero, como a personagem protagonista e a principal personagem coadjuvante sendo uma mulher deficiente e uma mulher negra, respectivamente, isso a partir de um cenário estadunidense nas sequelas da segregação racial.
GREEN BOOK (2019)
Se passando em 1962 e baseado em uma história real, Green Book conta a história de Tony Vallelonga (conhecido como Tony Lip), um segurança reconhecido por sua alta habilidade de persuasão que foi contratado como motorista pelo Dr. Don Shirley, um pianista negro da alta sociedade. Embora extremamente diferentes, ambos aprendem a conviver um com o outro para cumprir com suas obrigações. Em sua jornada pelo sul dos Estados Unidos, os dois recorrem a um livro (Green Book) que informa os poucos estabelecimentos seguros para os Afro-americanos. Enfrentando diversos desafios ao decorrer da viagem, eles aprendem sobre a amizade, o companheirismo e ampliam os seus conhecimentos sobre as pessoas e o mundo.
O filme tem duas ou mais personagens com nomes?
O filme conta com apenas uma mulher, Dolores Vallelonga, sendo ela, a esposa do protagonista Tony Vallelonga. Embora seja uma personagem secundária, sua aparição apesar de rápida, é bem recorrente quando recebe as cartas de seu marido que se encontra em viagem. Sua primeira aparição acontece no minuto 6:38, mas sua primeira fala ocorre no minuto 8:30, onde acompanha até a porta dois trabalhadores negros que faziam uma manutenção em sua casa.
Elas conversam entre si?
A personagem não conversa com outras mulheres que possuem nomes no filme, mas conversa com algumas mulheres nos minutos 1:22:35 a 1:25:43, onde recita uma parte da carta que seu marido lhe enviou durante sua viagem.
O assunto da conversa é algo que não seja homem ou assuntos relacionados a romances?
A personagem Dolores Vallelonga só possui interações (com falas) com outras mulheres quando em uma roda de conversa, recita as palavras que seu marido lhe escreveu durante sua viagem a trabalho com o Dr. Don Shirley.
RELAÇÃO AOS TÓPICOS DO OBJETIVO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
O filme em questão não se aplica a nenhum tópico do objetivo de desenvolvimento sustentável. Embora trate de assuntos importantes como o racismo e a tolerância, o filme não traz muita visibilidade feminina (fato que pode estar relacionado com a época em que o filme se passa), tendo dois personagens masculinos como protagonistas.
PARASITA (2020)
A trama trata de um rapaz pobre que passa a dar aulas de inglês para uma garota rica, e, em meio às dificuldades da linha da pobreza, ele e seus familiares passam a se instalar na rotina e na casa da família rica para quem tem dado aulas.
O filme é uma narrativa que atravessa principalmente as questões de uma sociedade de classes, dissecando as problemáticas da superestrutura capitalista sob uma perspectiva dura e assustadoramente realista.
APLICAÇÃO DO TESTE DE BECHDEL
O filme tem duas ou mais personagens com nomes?
O filme conta com duas unidades familiares diferentes, cada uma delas contando com a presença de uma mãe e uma filha. Tanto na unidade familiar protagonista, que é composta pela filha Ki-jung e a mãe Chung-Sook, quanto para a família coadjuvante, que é composta pela filha Da-hye e a mãe Park Yeon-kyo.
Elas conversam entre si?
Sim. As personagens estabelecem diversos diálogos.
O assunto da conversa é algo que não seja homem ou assuntos relacionados a romances?
Sim. Como ilustração, a partir do minuto 49:42 as personagens Ki-jung e Park Yeon-kyo estabelecem um diálogo através de celular e conversam sobre relações de rotina de trabalho. A conversa se encerra no minuto 50:29.
RELAÇÃO AOS TÓPICOS DO OBJETIVO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
5.2 Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos
O filme lida com questões de micro agressão na rotina de trabalho de mulheres, atravessando as questões da fragilidade de uma sociedade de classes enquanto tem que lidar com desigualdade e desemprego. Através do horror, o longa expressa e disseca a indiferença de uma classe dominante e privilegiada e como isso recai sobre a família protagonista, dando maior ênfase a como isso agride diretamente as personagens femininas em vulnerabilidade financeira no ato final da trama, envolvendo uma cena sangrenta a um nível gráfico.
NOMADLAND (2021)
Após perder sua casa, marido e tudo que tinha na Grande Recessão, Fern, uma mulher de 60 anos, se vê em uma confusão de sentimentos, morando sozinha em um trailer. Embora questionada diversas vezes sobre seu estilo de vida, a protagonista o defende, vivendo como uma nômade moderna. Durante sua jornada pelo mundo, Fern conhece diversas pessoas na estrada e aprende aos poucos a resolver seus próprios sentimentos e angústias.
APLICAÇÃO DO TESTE DE BECHDEL
O filme tem duas ou mais personagens com nomes?
O filme conta com diversas personagens mulheres que aparecem ao decorrer das viagens e aventuras da protagonista, embora se destaquem duas delas: Linda May (uma das primeiras mulheres a aparecer no filme. A personagem trabalha junto com a protagonista na distribuidora da Amazon e desta forma, estabelece uma amizade no decorrer dos acontecimentos) e Charlene Swankie (uma senhora nômade que conhece a protagonista na segunda metade do filme e estabelece uma longa amizade).
Elas conversam entre si?
Elas estabelecem diálogo de maneira recorrente durante o filme, conversando sobre assuntos diversos. Como por exemplo, a conversa com Linda May, onde a amiga conta sobre seus sentimentos e apresenta um acampamento de trailers para a protagonista (que no futuro terá grande impacto para a trama). O diálogo ocorre na primeira parte do filme. (minuto: 10:30).
O assunto da conversa é algo que não seja homem ou assuntos relacionados a romances?
Durante o filme, muitos assuntos são abordados, mas há momentos em que a protagonista cita seu marido que morreu recentemente, como no minuto 07:01 onde Fern mostra a Linda May a caixa de pesca de seu falecido marido, caixa que ela adaptou para armazenar no trailer seus objetos favoritos.
RELAÇÃO AOS TÓPICOS DO OBJETIVO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
5.4 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais
O primeiro diálogo longo entre Fern e Linda aborda questões das atividades domésticas de Linda que comenta sobre as diversas dificuldades de encontrar emprego. Assunto este que o enredo aborda diversas vezes. Além disso, assuntos de cunho emocional e suas dificuldades também são recorrentes.
NO RITMO DO CORAÇÃO (2022)
O filme retrata a história de uma jovem que está saindo do ensino médio; seus pais e irmãos possuem deficiência auditiva e ela age como intérprete de sua família. Ruby trabalha com seu pai e irmão em um barco de pesca, auxiliando no trabalho e na comunicação com a Marinha. A jovem adquire o sonho de cursar a faculdade de música em outra cidade e passa por dificuldades para fazer seus pais entenderem isso.
Abordando questões bem interessantes, mostra a dependência que a família tem de Ruby e a dificuldade que ela enfrenta para sair de casa.
APLICAÇÃO DO TESTE DE BECHDEL
O filme tem duas ou mais personagens com nomes?
Ele conta com três personagens mulheres recorrentes, o foco vai para a personagem principal Ruby e sua mãe Jackie.
Possui uma terceira personagem que é a melhor amiga de Ruby, Gertie que começa a se envolver com o irmão da personagem principal.
Elas conversam entre si?
Elas possuem diálogos recorrentes durante o filme, conversam sobre vários assuntos. Quase no final do filme (minutagem 1h e 16min), Ruby e sua mãe Jackie começam um diálogo que dura aproximadamente dois minutos sobre a decisão que Ruby tomou de ficar.
O assunto da conversa é algo que não seja homem ou assuntos relacionados a romances?
Na minutagem citada anteriormente, o assunto da conversa é sobre a decisão de Ruby: ela escolheu ficar e ajudar sua família, assim abandonando seu sonho de ir para faculdade. Porém, no começo do filme, a personagem principal tem um diálogo com sua amiga, só que elas falam sobre o garoto que Gertie ficou e ela conta como era o rapaz.
RELAÇÃO AOS TÓPICOS DO OBJETIVO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
5.4 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais
O filme aborda bem esses tópicos; Ruby mesmo sendo tão jovem possui uma grande responsabilidade dentro da sua família, agindo como intérprete, indo em consultas médicas com seus pais, cuidando das vendas dos peixes e em uma cena onde ela vai até um audiência com seu pai e o ajuda. O trabalho de sua família é em alto mar, (eles possuem um barco de pesca); mesmo fazendo isso diariamente, sua família não consegue grandes lucros, pois o comprador é um homem muito ganancioso e acaba pagando pouco pela mercadoria.
CONCLUSÃO
Dentre os filmes analisados neste diagnóstico, todos apresentaram duas ou mais personagens com nome e que conversaram entre si (embora Green Book tenha somente uma personagem feminina). Dessa forma, podemos concluir que os últimos ganhadores do Oscar não apresentaram crise na representação e na representatividade feminina. Em quatro dos cinco filmes, as personagens femininas estabelecem um diálogo que não envolve assuntos relacionados ao sexo masculino. É observado que mesmo esses diálogos durando poucos minutos de tela, o desenvolvimento e a construção das personagens femininas foi bem elaborado. Com isso, os filmes aprovados no teste de Bechdel foram: A Forma da Água (2018), Parasita (2020), Nomadland (2021) e No Ritmo do Coração (2022). Percebemos destaque para A Forma da Água, em que a protagonista é mulher e surda; e No Ritmo do Coração, no qual também há uma protagonista mulher. Consideramos um avanço em relação aos roteiros tradicionais de Hollywood, em que as mulheres serviam apenas como um suporte à força das personagens masculinas.
Falando da carência de Green Book e sua não aprovação pelos segmentos do Teste de Bechdel, levantamos Kracauer e Lagny para abordar as questões de que não existe uma obra de cinema que não possa ser atravessada por elementos contrários ao que o universo histórico da obra tem a oferecer. Citando ainda Jean-Louis Leutrat, ao que reflete em sua obra Uma relação de diversos andares: Cinema & História:
“Como diz Gerard Granel, “não há migalhas numa obra, nem ‘triagem’ possível entre o que seria importante, revelador ou insignificante” (…) Afinal de contas, tudo pode ser levado em conta, dado que é disto que o sentido advém.”
No cinema, tudo está em evidência. O que está em cena não se resume a mero detalhe – considerando o detalhe como um componente que pode ser subliminar, uma vez que se observado a certa distância ele pode sumir, o que não ocorre com o que está em plano no cinema. É relevante para esse diagnóstico refletir a partir de que, se nada é resumido a mero detalhe, a exclusão de uma narrativa feminina não é mero acaso do que propõe um período histórico em abordagem, mas trata-se de uma decisão feita pela equipe que concebe a obra, o que logo torna-se ainda mais passível de crítica, enquanto sendo uma decisão de voz ativa.
Parafraseando a teórica Michèle Lagny, uma vez que está nas mãos de quem produz uma obra cinematográfica a relação entre o recorte histórico do filme para com o tempo do mundo que produz a obra, Green Book torna alheia de maneira consciente a sua trama à possibilidade de incluir figuras femininas para agregar no conjunto de sua obra, o que efetivamente inclui uma deficiência do recorte de gênero no perímetro de seu filme e impacto.
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Este artigo faz parte do conjunto de análises mensais sobre diversos veículos nacionais ou regionais produzidas pelo Observe, observatório de mídia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, com foco nas coberturas e publicações a respeito dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, os ODS.
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Giovanna Fernandes Siqueira Viana, Livia Barros Medina e João Vitor Mendes Moraes são alunos do curso de jornalismo da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul