Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As duas mortes de Herzog

Vlado Herzog começou a morrer na terça-feira, 31 de março de 1964, quando estalou o golpe que instituiu o mais longo período de privação de liberdades da História republicana. Terminou de morrer no sábado, 25 de outubro de 1975, quando seu coração não agüentou os choques elétricos no DOI-Codi de São Paulo (as três primeiras letras da sigla dizem tudo das operações internas que se podiam praticar nesses destacamentos). O DOI-Codi ficava na rua Tutóia. ‘Tutóia Hilton’, costumava rir um jornalista chegado aos gerentes do estabelecimento.


Nos onze anos e seis meses que transcorreram entre a morte na alma, por asfixia da esperança, e a morte física, na cadeira do dragão, Vlado fez o que pôde para se manter vivo, isto é, inteiro, lúcido, às vezes até feliz: amou, criou filhos, trabalhou, estudou, pensou, indignou-se, mostrou-se. Foi morar na Inglaterra, já em 1965, para respirar; voltou ao Brasil, em 1968, duas semanas depois do AI-5: não sendo nem desejando ser inglês, queria dar um rumo à vida no País onde se fez homem e do qual escolhera ser cidadão. Tanto pior que esse País estivesse embrutecido pelo autoritarismo e acoelhado pelo medo: a indiferença lhe seria tão impossível como a cumplicidade.


Anticomunista e desdenhoso da política na juventude, tendo dobrado à esquerda numa idade em que muita gente já começa a tomar caminhos de maior conforto, aproximou-se do PCB, não porque tivesse qualquer ilusão sobre o que se passava do lado de lá do Muro. Mas porque se convenceu, como tantos de nós, de que, excluída a luta armada – sectária, raivosa e, afinal, divorciada do povo em cujo nome pretendia vietnamizar o Brasil – a única possibilidade de ação eficaz em favor do restabelecimento da democracia era aquela adotada pelos comunistas.


O PCB fomentava a articulação de alianças entre todos quantos se dispusessem a defender o Estado de Direito, as liberdades públicas e as garantias individuais, sem pedir atestado de antecedentes aos interessados. Ao mesmo tempo, tratava de estimular a resistência ao regime, mediante a ocupação de espaços nas organizações da sociedade civil, imprensa, universidade, meios artísticos, sem esquecer a oposição consentida, o MDB, a fim de despertar a opinião pública para a ignomínia da censura e do arbítrio, da tortura e extermínio de ‘subversivos’ e ‘terroristas’.


Vlado e demais companheiros de viagem tínhamos em comum a expectativa de que, quanto mais passageiros carregasse, tanto mais depressa o heterogêneo comboio político montado pelo Partidão teria condições de ultrapassar a abertura lenta, gradual e insegura dos generais Geisel e Golbery, de forma que a sociedade passasse a ditar o ritmo da restauração democrática.


Como a erosão da memória é uma das marcas registradas deste País, é necessário lembrar que a tragédia de Vladimir Herzog foi o imprevisto que precipitou a crise do regime. Meses depois, a morte do operário Manoel Fiel Filho, igualmente apresentada como suicídio, no mesmo DOI-Codi da Rua Tutóia, arrebentaria de vez a coexistência cada vez mais difícil entre as facções que disputavam o poder no âmbito do sistema militar. Os algozes de Vlado, agentes dessa ditadura que vicejava dentro da ditadura – o aparelho de repressão – certamente preferiam-no vivo, e dobrado, para usá-lo na armação destinada a vedar a mais estreita fresta que fosse de ressurgimento da liberdade no País.


A operação vinha germinando desde que, nas eleições legislativas de 1974, a população votou maçicamente, pela primeira vez, na oposição. O resultado açulou os neolíticos do sistema, certos de que a ‘permissividade’ patrocinada pelo governo permitiria em pouco tempo que os comunistas, padres e bacharéis destruissem as ‘conquistas da Revolução’. As prisões e as torturas se intensificaram. Suprimida a guerrilha, havia que fabricar, a qualquer custo, um nexo entre a subversão e os setores liberais do regime, como o governo Paulo Egydio Martins, em São Paulo. Chegaram em Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura. Se ele não morresse, teriam ido mais longe.


Vinte anos e uma Lei de Anistia depois, talvez nada se possa fazer contra os operadores das máquinas de choque do Tutóia Hilton. Mais dia, menos dia, porém, seus nomes serão conhecidos: no fim alguém sempre fala. Por ora, se não se sabe quem torturou Vlado, que se saiba ao menos o que o fez viver entre uma morte e outra.