Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

História ainda a ser contada

O processo de rememoração do assassinato de Vladimir Herzog é importante para a História, para o presente e para o futuro.


Na historiografia brasileira recente o episódio ainda não foi apresentado da maneira adequada, mas os elementos básicos estão disponíveis. É na mídia que se encontram as maiores deficiências.


Livros de História


Em sua História do Brasil (1994), Bóris Fausto apresenta o assunto com clareza, embora de maneira necessariamente sumária, dada a abrangência de seu livro-síntese: Herzog é preso em meio a uma onda repressiva contra o PCB, em pleno confronto entre o presidente Geisel e os militares à sua direita.


Na História indiscreta da ditadura e da abertura (1998), Ronaldo Costa Couto detalha o episódio. Também o situa no contexto das conseqüências das eleições de 1974, em que o MDB derrotou o partido do regime, a Arena, do enfraquecimento da censura à imprensa e do descontrole do aparelho repressivo. Destaca a possibilidade de ter havido uma componente anti-semita na perseguição de que resultou a morte de Vladimir Herzog, hipótese cogitada por Alberto Dines e aceita por Rodolfo Konder durante recentes depoimentos ao Museu da Pessoa reproduzidos nessas páginas seguintes, num projeto realizado em parceria com o Observatório da Imprensa. Dom Paulo Evaristo Arns fez essa revelação ao jornalista Sérgio Gabriel, da Band, em 1998 (ver, no livro de Costa Couto, página 180 e nota).


No Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro Pós-1930, obra do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, coordenada por Alzira Abreu e Israel Beloch, a morte de Vladimir Herzog é citada em 33 verbetes (versão eletrônica lançada em 2000). Aparece em diferentes articulações, mas quem se limitar a ler esses verbetes não terá uma avaliação política do papel do Partido Comunista Brasileiro (PCB) dentro da frente democrática cuja expressão político-partidária era o MDB de Ulisses Guimarães, Tancredo Neves e Franco Montoro, entre muitos outros. Esse papel político é descrito no verbete sobre o PCB.


No livro Herança de um sonho – as memórias de um comunista (2000), Marco Antônio Tavares Coelho, um dos principais dirigentes do PCB no período, conta com detalhes os episódios da perseguição ao Partido Comunista.


O livro mais conhecido sobre o período, A Ditadura Encurralada, de Elio Gaspari (2004), dá uma descrição bastante precisa da atuação do PCB e do Sindicato dos Jornalistas, presidido por Audálio Dantas (Audálio, como se verá em seu depoimento neste Dossiê Vladimir Herzog, fez reparos ao papel atribuído por Gaspari a estudantes trotskistas no processo de organização do culto ecumênico de 31 de outubro de 1975).


Essa é uma parte pequena da bibliografia, citada aqui a título exemplificativo.


Os jornais


Não se entende, assim, como os jornais mais importantes do país, no domingo (23/10) que antecedeu a data precisa dos 30 anos da morte de Herzog, possam ter tratado o assunto sem dar o contexto histórico (Folha de S.Paulo), ou com erros factuais que contribuem para torná-lo menos claro (O Estado de S.Paulo).


Os dois jornais publicaram material da maior relevância. Sozinhos, porque as revistas, o Globo e o Jornal do Brasil não o fizeram. Nenhum elogio à importância das entrevistas (de Ivo, filho de Vladimir Herzog – nos dois jornais – , do juiz Márcio José de Moraes, que em 1978 condenou a União pela morte de Herzog, do coronel reformado Erasmo Dias, secretário de Segurança paulista na época, de Audálio Dantas, de Humberto Barreto, então secretário de Imprensa do presidente Ernesto Geisel, e do policial Aparecido Laertes Calandra, apontado como o Capitão Ubirajara da tortura, essas cinco últimas na Folha) será demasiado.


Mas o material da Folha é apresentado sem o contexto histórico. Como uma sucessão de (preciosas) fotografias do episódio. Tanto que a cronologia oferecida na página de abertura começa em 1975.


E, no Estadão, a contextualização feita na abertura do material contém um erro factual, imaginar que só houve mortos do PCB após 1972, após um erro de digitação (‘Nos anos anteriores, apesar da repressão mais generalizada, o regime, focado na repressão à luta armada, [não] tinha ignorado o PCB, que era contra a guerrilha e tinha como estratégia a luta política pelo voto, afirma convicto o ex-dirigente Armênio Guedes’; em seguida Armênio diz que o PCB teve dois mortos em 1972, um deles seu irmão Célio; logo, não poderia ter dito que antes de 1972 o regime ‘tinha ignorado o PCB’, como saiu no jornal).


A repressão ao PCB


O PCB sofreu violenta repressão desde 1964, quando foram assassinados seus integrantes Astrogildo Pascoal Viana (Manaus), Carlos Schirmer (Divinópolis, MG), João Alfredo Dias e Pedro Inácio de Araújo (Sapé, PB; João Alfredo é o personagem inicial do filme Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho), e desapareceu no Rio de Janeiro Newton Eduardo de Oliveira. Em 1970 foi torturado no Rio Afonso Henrique Martins Saldanha, que morreria das seqüelas da tortura, segundo denúncia de familiares, em 1974. Em 1972, além de Célio Guedes, no Rio, foi morto em Campinas o estudante Ismael Silva de Jesus, ou de Jesus Silva (as duas formas são adotadas). Em 1973, no Rio, Caiuby Alves de Castro. As informações estão no livro Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964, trabalho feito por diferentes grupos antitortura sob a égide de D. Paulo Evaristo Arns e publicado em 1995 pelo governo do estado de Pernambuco (Miguel Arraes) e em 1996 pelo governo do estado de São Paulo (Mario Covas).


O PCB teve militantes presos e torturados em quase todos os anos da ditadura, senão em todos. E a repressão a esse partido, diferentemente do que se escreveu no Estadão, não terminou com a morte de Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976. Meses depois, no Rio de Janeiro, por exemplo, seria preso e brutalmente torturado o atual presidente da Associação Brasileira de Imprensa, jornalista Maurício Azedo. Houve repressão ao PC do B (cerco da Lapa, com assassinatos, em 1976), ao MEP (Movimento de Emancipação ao Proletariado), em 1977, seqüestros de argentinos e uruguaios nos marcos da Operação Condor.


O general Marcondes


Não é minudência. É para que se entenda melhor o que aconteceu. Para que se façam as devidas ligações históricas. Por exemplo: o general Gentil Marcondes Filho era chefe do Estado-Maior do 2º Exército sob o comando do general Ednardo D’Ávila Melo, aquele que foi demitido por Geisel após a segunda morte no DOI-Codi paulista. Era a Marcondes que o DOI-Codi estava subordinado.


Marcondes seria o comandante do 1º Exército, sediado no Rio de Janeiro, em 1980, quando foi assassinada d. Lyda Monteiro da Silva, em atentado que visava o então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Eduardo Seabra Fagundes; quando foi mutilado José Ribamar de Freitas, tio e assessor do vereador carioca Antônio Carlos de Carvalho; e em maio de 1981, quando houve a tentativa de assassinato em massa da bomba do Riocentro. O general Marcondes garantiu que a mentira prevalecesse no inquérito policial-militar falso feito à época, uma das maiores manchas da história militar do Brasil, segundo a cientista política Lúcia Hipólito e o almirante da reserva Júlio de Sá Bierrenbach.


Capitão Ubirajara


Engana-se quem imagina que tudo isso não faz mais sentido hoje. Tome-se o caso do policial Calandra, ou Capitão Ubirajara, que seria um dos torturadores de Vlado e seus companheiros. Em reiteradas ocasiões, o jornalista Elio Gaspari cobrou do governador Geraldo Alckmin uma providência contra a permanência do policial no quadro da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. O governador não deu uma resposta convincente a essa cobrança. Mas ele não deveria ser o único alvo de questionamento. Desde 1982, todos os governadores de São Paulo foram eleitos com apoio parcial ou total da esquerda (de 1990 em diante, no segundo turno, graças a Paulo Maluf): Franco Montoro, Orestes Quércia, Luiz Antônio Fleury, Mario Covas duas vezes. Alckmin, que disputou com José Genoíno em 2002, não teve os votos do PT, claro. Nenhum deles mexeu com Calandra.


Lula e Herzog


Outro exemplo. Na biografia Lula, o filho do Brasil, de Denise Paraná (2002), o hoje presidente Lula relata que a prisão de seu irmão Frei Chico, militante do PCB, no processo que levaria ao assassinato de Herzog, representou uma virada decisiva em sua sensibilidade política. Mas Audálio Dantas relatou no depoimento ao Museu da Pessoa que só sindicatos de jornalistas se solidarizaram com o dos jornalistas de São Paulo. Lula era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e manteve-se à margem dos protestos realizados em outubro de 1975.


Em algum momento do livro de Denise Paraná, Lula conta que em 1977 decidiu exigir o direito de falar com o comandante do II Exército, general Dilermando Gomes Monteiro. Ele pôde fazer isso porque Dilermando, sucessor do demitido Ednardo D’ Ávila Melo, era afinado com o presidente Geisel, que tinha desistido de apoiar a tortura quando ela se revelou vetor de insubordinação contra seu comando. Isso não é dito para fazer uma cobrança sem sentido, apenas para mostrar como o movimento operário e sindical estava recuado e como aqueles protestos, que não brotaram por geração espontânea, abriram caminho para grandes lutas que viriam depois. Inclusive as importantíssimas greves do ABC paulista dirigidas por Lula.


Páginas a serem escritas


Um ano atrás, o ministro da Defesa, José Viegas, foi demitido após um atrito com o comandante do Exército, general Francisco Albuquerque, sob cuja responsabilidade fora produzida uma nota revanchista que justificava a tortura contra os adversários do regime de 64. O Exército, pressionado pelo presidente Lula, acabou se retratando sem muita convicção.


O estopim daquela crise foi a publicação, pelo Correio Braziliense, de supostas fotos de Vladimir Herzog nu na cadeia. As fotos eram de um padre canadense perseguido pela repressão policial-militar. O Observatório da Imprensa iniciou um movimento pela abertura dos arquivos da repressão, até hoje fechados, e pediu que signatários do manifesto dos jornalistas de janeiro de 1976, em que se questionava a versão oficial do suicídio de Herzog, assinassem essa nova petição e contassem como viveram aquele processo e algo de suas vidas desde então.


Até agora só existe um relato. Foi feito no domingo, 23/10, por um jornalista amigo e colega de Herzog, preso na mesma época, Luiz Weis, responsável pelo blog Verbo Solto, deste Observatório. Ele publicou a reportagem que escreveu para a Veja, onde trabalhava, e que a censura cortou.


Espera-se que não permaneça uma exceção, mas seja um fecundo começo. Participantes e testemunhas daqueles acontecimentos estão convocados a contar suas histórias. Para ajudar historiadores e jornalistas a recuperar a memória da sociedade brasileira.