É fácil esquecer, mas há dez anos era necessário um esforço sério para encontrar informação decente na web. Pesquisar a internet era como fuçar numa enorme loja de antiguidades: às vezes encontrava-se algo – e muita coisa de segunda mão, desprovida de valor. Interessado em aeronaves Tupolev de fabricação russa? Um apaixonado pelo assunto tinha uma home page sobre elas. Alguém mencionou volapük numa festa? Havia o site de uma universidade com fragmentos de informações sobre esse pouco conhecido idioma inventado no século 19 (não confundir com a banda francesa de rock avant-garde de mesmo nome).
Então, em 1999, surgiu uma ideia simples de um empresário do setor de buscas na internet chamado Jimmy Wales: uma enciclopédia gratuita escrita por especialistas que doassem seu tempo para esboçar artigos e submetê-los ao escrutínio de colegas. O conteúdo seria copiável e bancado por publicidade. Seu nome seria Nupedia. A equipe de PhDs progrediu a um ritmo que era, na verdade, acadêmico: em seu primeiro ano, mal criaram uma dezena de verbetes. Wales percebeu que a Nupedia precisava de um site alimentador, algo menos exclusivo que atraísse redatores. Nesse novo site, qualquer visitante poderia escrever sobre o que quisesse.
O experimento não foi bem recebido pelos editores da Nupedia e do conselho consultivo – o fato de participantes não credenciados serem incentivados a contribuir poderia, consideravam eles, ameaçar a credibilidade da enciclopédia. Menos de uma semana depois, o novo site foi desmembrado, passando a constituir um projeto separado denominado Wikipedia – wiki (que significa rápido, em havaiano) é um tipo de software que permite ao usuário escrever, editar e vincular páginas da Web a um documento único compartilhado. No prazo de um ano, o novo site tinha 20 mil verbetes. Quando a Nupedia encerrou suas atividades, no início de 2003, estava empacada em 24 verbetes.
Voluntariado colaborativo
Amanhã (15/1), a Wikipedia fará dez anos. De acordo com sua própria página na Wikipedia, com 17 milhões de verbetes em mais de 250 línguas – inclusive 118 mil em volapük. A Enciclopédia Britânica tem 120 mil, e somente em inglês. Gratuito e sem publicidade, o site é um dos mais visitados na internet. É o destino preferencial para declarar o vencedor de uma aposta casual entre amigos num bar, para pesquisas de estudantes e para qualquer pessoa à caça de descobrir para que serviu o Tratado de Paz de Westfália, quando foram inventados os títulos lastreados em hipotecas ou quem Ringo Starr substituiu como baterista dos Beatles. O verbete referente ao vazamento de petróleo na Deepwater Horizon surgiu em 21 de abril, menos de um dia após a explosão da plataforma e antes que alguém tivesse alguma ideia de sua extensão. ‘A Guarda Costeira dos EUA já iniciou uma operação de salvamento’, dizia a última sentença do artigo.
Mesmo alguns dos maiores defensores do site admitem que inicialmente duvidavam de que a iniciativa pudesse chegar a constituir algo substancial. A ideia lembra uma experiência social utópica: um registro do conhecimento do mundo produzido e policiado por voluntários. Hoje, qualquer pessoa ainda pode contribuir para um verbete, e muita gente o faz. Mas, em vez de transformar-se em um caos e mergulhar em discussões intermináveis sobre o diâmetro exato da segunda Estrela da Morte (um debate que, na realidade, prossegue), o mundo dos autoproclamados wikipedistas evoluiu para uma próspera sociedade online. ‘Sua existência é prova de uma maneira radicalmente distinta de organizar a produção’, diz Yochai Benkler, professor da Harvard Law School, que estuda as redes sociais e a internet.
Mas o que é, exatamente, que a Wikipedia prova? O site superou exponencialmente as humildes expectativas de Wales e de seu cofundador, Larry Sanger, mas teve de suportar controvérsias sobre imprecisão e manipulação. Em anos recentes surgiram críticas de contribuintes acusando o site de abandonar o espírito acolhedor que originalmente o distinguia e vozes dentro e fora da comunidade wikipedista estão questionando se existe possibilidade de coexistência de abertura radical e precisão. Falta ainda comprovar se o voluntariado colaborativo da Wikipedia pode ser aplicado a outras esferas, se pode ser preservado na própria Wikipedia, e – mais fundamentalmente – se pode produzir algo de valor confiável para os que não estão envolvidos no jogo.
Não é uma aberração cultural
A Wikipedia não foi a única enciclopédia online lançada por volta da virada do milênio. Além da Nupedia, havia um banco de dados interligado denominado Everything2 ao qual qualquer pessoa podia encaminhar um artigo, mas ninguém podia editar os verbetes criados por outros. Houve também o H2G2, uma lúdica miscelânea inspirada no Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams. Antes desses, houve a Enciclopédia Britânica, que entrou discretamente na internet em dezembro de 1993. Distribuída pela Microsoft em CD-Rom, a Encarta, que não era fruto de esforço colaborativo nem originalmente um produto online, foi considerada a principal ameaça digital a enciclopédias tradicionais como a Britânica, pois era distribuída gratuitamente com novos PCs.
De acordo com Benjamin Mako Hill, um pesquisador do Massachusetts Institute of Technology (MIT) que analisou esses primeiros esforços, a Wikipedia deve seu sucesso a várias decisões importantes. ‘É muito tentador dizer: `Agora estamos na internet, então, vamos fazer alguma coisa muito diferente do que os outros fizeram anteriormente´’, diz Hill. Mas isso deixaria muitos contribuintes confusos sobre com que contribuir. A Wikipedia não fez isso – os verbetes, apesar de nascerem de um novo método de escrever uma enciclopédia, destinam-se a ser lidos como a velha Britânica.
Em segundo lugar, a Wikipedia era de uso amigável. Quando alguém encontrava um erro, ou sabia alguma coisa sobre um assunto que não tinha um verbete, estava a um ou dois cliques de distância de interferir. O sucesso do site atraiu ainda mais contribuintes. Em pouco tempo, acadêmicos como Benkler e Clay Shirky festejavam a Wikipedia como um exemplo de como a web pode virar de cabeça para baixo premissas sobre motivações humanas e de organizações. Era o lugar onde se viam pessoas contribuindo gratuitamente com horas de seu tempo na construção do que Wales denominava ‘templo da mente’. O modelo da Wikipedia tem muita semelhança com as iniciativas de software livre e de código aberto que decolaram na década de 1990 com o lançamento do Linux e do Mozilla. Mas a Wikipedia, com seu corpo internacional diversificado de colaboradores, não poderia simplesmente ser descartada como sendo uma aberração cultural ou uma fatia específica do universo nerd, ao menos não depois de ter se expandido para além de equações da física e discussões sobre a série Star Trek e enveredar pelo duramente conquistado conhecimento do resto da humanidade.
Correção nem sempre permanece
Mesmo assim, as preocupações com a precisão do site cresceram junto com sua influência. Na maioria dos verbetes mais lidos, falsidades são rapidamente corrigidas, mas em outros desinformações podem sobreviver por muito mais tempo. Em 2005, John Seigenthaler, um ex-assessor de Robert F. Kennedy e diretor-editorial fundador do jornal USA Today, descobriu que uma página da Wikipedia citava-o como suspeito pelo assassinato de RFK. Mais de quatro meses depois de a falsa acusação ter sido publicada, o verbete foi finalmente corrigido. Seigenthaler não corrigiu ele próprio o verbete, tendo escrito um artigo no USA Today. O incidente levou Wales a reconhecer que os verbetes estavam sendo escritos mais rapidamente do que podiam ser checados e anunciou uma política segundo a qual os usuários não registrados não poderiam mais criar verbetes. (O registro é gratuito e instantâneo, e não exige informações pessoais.)
Um dos críticos mais ruidosos da Wikipedia é seu cofundador Sanger, que Wales demitiu quando a bolha pontocom estourou. Para Sanger, escândalos como o episódio envolvendo Seigenthaler não podem ser evitados sem mudar a Wikipedia, deixando-a irreconhecível. ‘Eu simplesmente não creio que isso seja efetivamente possível, em vista da natureza do projeto’, diz ele. Em 2006, Sanger fundou o Citizendium, uma enciclopédia wiki concorrente com ‘leve supervisão de especialistas’ e contribuintes que usam seus nomes reais.
Ao mesmo tempo, análises sobre a precisão da Wikipedia têm, em geral, concluído que, embora ocasionalmente erre, não erra muito mais do que enciclopédias tradicionais. Um estudo de 2005 na revista Nature detectou, com base em uma amostra de artigos, uma média de 2,92 erros por artigo na Britânica e de 3,86 na Wikipedia. (A Britânica contestou o estudo da Nature, qualificando a metodologia de ‘irremediavelmente falha’.) A Wikipedia, porém, tem problemas que a Britânica não tem. Um erro corrigido na Britânica permanece corrigido; na Wikipedia, não. (Em analogia inversa, eventos em rápida mutação podem ser cobertos praticamente em tempo real pela Wikipedia.) Outro aspecto tem a ver com o gosto de seus editores. É grande a presença da cultura popular. O verbete para o videogame ‘Halo’, por exemplo, é significativamente maior que o relativo à Reforma Protestante.
Queixas sobre verbetes bloqueados
Mais grave é o fato de a Wikipedia conter imprecisões introduzidas não por acidente ou por ignorância, mas intencionalmente. Por vezes, como no caso Seigenthaler, tratam-se de casos de vandalismo. Outras vezes é ‘polimento de currículos’. Em 2006, assessores de Marty Meehan, deputado por Massachusetts, removeram uma menção na Wikipedia sobre sua promessa de campanha de não servir mais do que quatro mandatos – na ocasião, ele estava em seu sétimo. Wales editou sua própria página biográfica, excluindo o papel de Sanger na criação da Wikipedia.
Graças ao WikiScanner, um software que checa referências cruzadas nos endereços de internet dos colaboradores, constatou-se que computadores na ExxonMobil, PepsiCo e Diebold, entre outros, foram usados para eliminar informações negativas nos verbetes sobre as companhias. No ano passado, o conselho de arbitragem da Wikipedia proibiu edições provenientes de todos os endereços de internet da Igreja da Cientologia, após anos de disputa e edição enganosa tanto por partidários como por críticos dessa religião.
A Wikipedia tem feito experiências com a concentração de poder nas mãos de ‘gestores’, um grupo selecionado de editores capaz de apagar e restaurar páginas manipuladas com frequência e de impedir sua edição por algum tempo para evitar novas modificações. Essas mudanças trouxeram alguma estabilidade a determinados verbetes. [O de George W. Bush está sendo vandalizado com menor frequência. Durante sua presidência, sua foto foi trocada por outra, de Hitler; ele foi descrito, por um breve período, como ‘a primeira pessoa a se masterbar [sic] numa escola pública mais de 38 vezes’.] Mas, fóruns de discussão da Wikipedia estão cheios de queixas sobre verbetes bloqueados contra edição sem justificativa adequada.
Mais olhos do que nunca
A preocupação de algumas pessoas que vêm acompanhando a enciclopédia ao longo de sua primeira década é que, à medida que o site amadurece, terá mais dificuldade para atrair e manter a adesão dos voluntários que a fazem funcionar. Uma equipe de pesquisas liderada por Ed H. Chi, cientista da computação na Xerox Parc, concluiu que o crescimento da Wikipedia, medido em número de verbetes, edições, voluntários ou mesmo bytes, vem caindo há alguns anos. O número de editores ativos e a taxa de criação de artigos atingiu seu pico em 2007. O site, argumenta Chi, começou a comportar-se menos como um ecossistema ilimitado de informações e mais como um ecossistema biológico, um mundo onde se compete por recursos limitados. Hoje, todos os verbetes óbvios – sobre Aristóteles, eletricidade, a Carta Magna, a Guerra Civil Americana – já foram escritos, bem como outros milhões. Isso deixa menos oportunidades para que novos verbetes sejam escritos e amplia as chances de que um novo verbete seja excluído pelo fato de, como estabelecem as diretrizes da Wikipedia, ‘carecer de notoriedade’. Um verbete do próprio Wales sobre um restaurante sul-africano foi excluído sob o argumento de que não continha ‘nenhuma afirmação importante/significativa’. (O site, depois, foi reintegrado.) Mas o principal efeito da nova competitividade é expulsar os recém-chegados, que, descobriu Chi, são mais propensos a ter seus verbetes e edições rejeitados.
Andrew Lih, um administrador da Wikipedia e autor do livro The Wikipedia Revolution, diz que havia uma sensação de euforia quando ele aderiu ao site, em 2002. ‘Havia apenas 30 mil ou 40 mil verbetes’, diz ele. ‘Você buscava Angkor Wat e estava lá. Você adicionava um ou dois parágrafos. Vinha alguém e dizia: `Isso é legal, aqui tem mais algumas coisas.´ Você via um site sobre as pirâmides egípcias e tomava alguma coisa de empréstimo. Você sentia que sua participação tinha peso.’ Atualmente, diz ele, o clima não poderia ser mais distinto. A avassaladora popularidade da Wikipedia fez surgir uma nova postura crítica, e atualmente, diz Lih, a preocupação dominante é proteger o que já está lá. ‘Hoje, o ambiente é tipo `não mexa em nada´’, diz Lih.
O problema, na visão de Lih, é que a Wikipedia realmente precisa de mais olhos do que nunca. À medida que as empresas de relações públicas, consultores de imagem e assessores de congressistas ficam mais habilidosos em dar uma nuance sutil aos verbetes, serão necessários cada vez mais voluntários para reverter os verbetes a seu tom original. Até mesmo o mais experiente administrador já foi, na gíria wikipedista, um ‘novato sem noção’. O amadurecimento da Wikipedia pode depender da oportunidade que se dê para que os novatos também evoluam. (Com a colaboração de editores convidados)
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Da BusinessWeek