Robert Levine foi editor da revista Billboard, que cobre música, e antes trabalhou na Wired, que cobre tecnologia. Acreditava que a indústria fonográfica e os produtores de conteúdo em geral deveriam abrir seus produtos, gratuitamente, na internet. Até notar, aos poucos, que as empresas de tecnologia cresciam lucrando com os mesmos produtos, mas resistiam a pagar por eles.
Passou a “seguir o dinheiro” e levantou que as instituições que defendem abrir tudo na internet são financiadas pelas mesmas empresas de tecnologia. Que o Creative Commons recebeu US$ 1,5 milhões do Google em 2008 e mais US$ 500 mil em 2009.
O resultado é o livro Free Ride, carona grátis, que faz ao longo de 320 páginas um relato detalhado de “como a internet está destruindo a indústria da cultura” e sugere “como contra-atacar”. O livro foi lançado no Reino Unido há dois meses, com elogios do Financial Times e restrições do Independent, e sai nos EUA no próximo dia 25.
Questionado, Levine diz que evitou tratar de revistas por ser sua área de atuação, tendo passado pelas redações de New York, Wired e Billboard, além de contribuir com outras.
Relata que algumas pessoas o criticaram, após lançar o livro, como “amigo da indústria fonográfica”, mas nega e afirma que “as gravadoras não diriam isso”, pois escreveu negativamente sobre elas, em reportagens e artigos: “Ninguém na indústria fonográfica diria que fui bonzinho.”
Garante que não recebe dinheiro para dar palestras para empresas, “como fazem muitos jornalistas hoje”. E afirma: “Veja, meu conflito mais óbvio é que eu ganho a vida escrevendo. É o conflito real: eu ganho a vida com copyright. Eu tenho um contrato de livro.”
No caso, com Bodley Head, no Reino Unido, e Doubleday, nos EUA, selos da Random House, a maior editora de livros do mundo, parte do grupo alemão Bertelsmann.
Abaixo, trechos da entrevista realizada por telefone:
Você escreve que o conflito em torno da internet não é entre ativistas e empresas de mídia, mas econômico, entre empresas de tecnologia e empresas de mídia, de conteúdo.
Robert Levine–Era o ponto principal que eu queria abordar. As pessoas veem essas questões em termos de bem e mal. Quando você tem empresas, elas tendem a agir segundo seus interesses econômicos, a fazer o que dá dinheiro. Na internet, você está falando de grandes provedores, Verizon, At&T, e de Google, Facebook. Mas os ativistas ainda falam, por exemplo, em blogs: “Somos nós contra as grandes empresas de mídia”. Mas a indústria fonográfica já não é tão grande, se comparada ao Google, e é pequenina, se comparada às teles. As pessoas dizem: “A indústria fonográfica manda em Washington”. E ela não é nada comparada ao Google, às empresas de tecnologia.
Qual foi seu ponto de partida?
R. L. –Eu trabalhei na Wired, tempos atrás, e acreditava que as gravadoras eram antiquadas, atrapalhavam o progresso. Com o tempo, pensei: “Espera aí, muitas dessas empresas de internet não querem pagar por conteúdo”. O Napster ainda tinha um plano para pagar por conteúdo. Não era bom, mas era um plano. Glogster, não. Limewire, não. A ideia sempre foi fazer um livro crítico, mas nem tanto quando acabou sendo. Descobri que havia todo esse dinheiro que os ativistas recebiam. Temos uma frase no jornalismo americano, “siga o dinheiro”, não tenho certeza da origem, mas apareceu em Watergate.
A origem foi o roteirista do filme [William Goldman].
R. L. –Exato, Todos os Homens do Presidente. Ok, você conhece a sua cultura pop. (risos) Para mim, é o que você faz, como jornalista: você segue o dinheiro. E eu examinei o Creative Commons e [seu fundador] Lawrence Lessig, o Center for Internet and Society, da Universidade Stanford, a New America Foundation. Muita gente me disse, “eles são legais, boas pessoas”. Provavelmente são, não penso que ninguém seja o mal. O mal é matar alguém, não infringir copyright. Mas eles são enviesados.
Parte do financiamento dessas instituições vem das empresas de tecnologia.
R. L. –Muito do financiamento vem. E o que é interessante é que as pessoas não sabem. Se você ler os jornais, não há qualquer menção. Como é que esses ativistas recebem todo esse dinheiro do Google e ninguém diz nada? Trabalhei seis meses no levantamento da proposta para o livro. Mais e mais eu me surpreendia. Comecei a pensar: “É um conflito de negócios: Quem vai controlar a distribuição de música é a Warner ou o Google?”. Não penso que as gravadoras sejam o bem ou que o Google seja o mal, porque sou um jornalista de negócios. Mas creio que alguns desses ativistas… Dias atrás, almocei com um, aqui em Berlim, e ele não sabia de onde vinha o dinheiro do Creative Commons. Não é estranho?
Aqui no Brasil, talvez Gilberto Gil também não saiba.
R. L. –É curioso que você cite o Brasil, porque havia dois países que eu queria visitar, para o livro, mas não pude, porque não tinha o dinheiro: Brasil e Nigéria. Sou um nerd de música, comecei como jornalista musical. Brasil e Nigéria tiveram grandes cenas musicais nos anos 60 e 70. Tropicália, Gil, Caetano Veloso, Os Mutantes. Na Nigéria, Fela Kuti, Tony Allen, o Afrobeat. A maioria foi bancada por grandes gravadoras. Gil estava na Philips.
Uma grande gravadora na época.
R. L. –Que depois virou parte da Polygram, que agora é parte da Universal. Mas hoje as pessoas falam: “No Brasil existe essa grande cena tecnobrega, que não precisa de gravadoras”. Sim, mas ela não gera qualquer recurso de exportação para o Brasil. Todos aqueles discos de Gil geraram recursos para a economia. Por isso eu queria ir, porque vocês têm essa imagem de que o mundo em desenvolvimento deve ser contrário ao copyright. E eu não acredito que ela seja correta.
Gil e outros artistas, como Radiohead, tentam incorporar a distribuição grátis via internet. Como você essas tentativas de construir pontes?
R. L. –O que o Radiohead fez foi realmente esperto. Eles conseguiram mais dinheiro ainda com aquele álbum, o que deram de graça. Deixaram você pagar o que queria, conseguiram muito dinheiro e promoveram sua turnê. Foi realmente inteligente. Por outro lado, o Radiohead pôde fazer porque já era famoso. E já era famoso porque, por um lado, na minha opinião, é uma das bandas mais talentosas que há, mas também porque teve muita promoção da EMI.
Para começar.
R. L. –No começo. Você tem muitos artistas talentosos que ninguém conhece. A EMI gastou muito dinheiro falando ao mundo sobre o Radiohead. Imagino que a Philips tenha gasto muito dinheiro para falar ao mundo sobre Gil. Tenho vários daqueles discos, mas não conheço tanto a história. Mas ele estava na TV brasileira. Então, quando se torna conhecido, você não precisa de uma gravadora, mas quem será o Gilberto Gil de amanhã?
O livro aborda também imprensa e TV. Diz que tiveram duas formas de tratar a internet, no início; a primeira seguindo a opinião geral e abrindo quase tudo na internet, caso do New York Times, e a segunda mantendo o conteúdo fechado, caso do Financial Times, o que fez toda a diferença. E daqui para a frente?
R. L. –A indústria de jornais nos EUA e no Reino Unido sempre foi ligada à publicidade. Dez anos atrás, a divisão tradicional era de 85% de recursos oriundos da publicidade e 15% da venda de exemplares. Se você examinar os EUA, a proporção do PIB que vai para publicidade não mudou muito desde 1995. O PIB sobe e desce, mas o percentual se mantém. Você tinha, digamos, essa torta que sustentava jornais, TV, revistas. Agora você corta essa torta pela metade. Google e Facebook ficam com uma metade. Todos os jornais e todas as TVs estão disputando a outra. Eles têm de vender o conteúdo, não têm alternativa. Não sei se vender o conteúdo vai funcionar, mas sei que distribuí-lo de graça na internet não vai. Não para um jornal ambicioso, que gasta muito dinheiro com seu conteúdo. New York Times, Wall Street Journal, Zeit, Le Monde, alguns poucos em cada país. Não são todos que querem cobrir guerras, esse tipo de jornalismo, mas, se quer ser um grande jornal, tem que cobrar.
Vale também para os emergentes?
R. L. –Pode ser diferente no Brasil ou na Índia, porque suas economias estão se expandindo. Não sei muito do Brasil, mas quando uma economia cresce mais rápido, você tem mais pessoas na classe média e mais gastos, internamente. E, quando você tem mais gastos internamente, aí a publicidade realmente decola. Mas é muito difícil fazer previsões sobre o Brasil, porque é um país tão grande, com tantas diferenças, São Paulo e Manaus são quase mundos diferentes. Mas, num país desenvolvido, você tem que vender as notícias. E acredito que as pessoas vão comprar. Eu pago US$ 23 por mês pelo New York Times. Se mudarem amanhã para US$ 33, continuaria pagando. As pessoas são muito sensíveis à conveniência ao pagar, elas querem que seja fácil, mas não creio que se importem tanto com o custo. A maioria dos americanos paga US$ 60 por mês pela TV a cabo. E a maior parte da programação é muito ruim.
Centenas de canais, nada para ver.
R. L. –US$ 60 pelo cabo ou US$ 30 pelo NYT? Para mim, US$ 30 pelo NYT. Nos EUA, o iTunes aumentou o preço das músicas de US$ 1 para US$ 1,29. E vendeu 13% menos músicas, mas obteve 20% mais de dinheiro. Se você está no negócio para ter, é realmente inteligente.
Por que você escreveu sobre direitos de músicas, jornais, filmes, e não sobre patentes de forma geral?
R. L. –Uma das razões é que patente é uma questão de vida ou morte. Se você precisa muito de um remédio e não pode pagar, você pode furtá-lo. E eu não posso dizer que seja uma coisa ruim você estar furtando remédio. Mas se você furtar um álbum do Led Zeppelin…
Não é a salvação da vida de ninguém, necessariamente.
R. L. –Espera aí, para mim é. (risos) Mas eu cresci em Connecticut, não havia nada para fazer. Mas são coisas diferentes. Você pode dizer que o governo da Índia ou do Brasil ou da Nigéria tem uma motivação política legítima. Você tem o direito de expropriar propriedade intelectual americana se vai salvar vidas? A resposta é talvez. Mas você têm o direito de expropriar Gossip Girl? Desperate Housewives? Aí é algo difícil de defender. Se você examinar o que acontece na Organização Mundial de Propriedade Intelectual, na ONU, muitas pessoas do Creative Commons e do Google confundem as duas questões, copyright e patentes. Para mim, são muito diferentes, porque o que está em jogo é muito diferente. Não penso que furtar uma música do Led Zeppelin seja uma coisa horrível, embora me pareça, de fato, desnecessário.
No fim do livro, você fala dos diferentes caminhos possíveis daqui para a frente. Um deles seria o esforço crescente, na Europa continental, para combater a pirataria na cultura. É uma saída?
R. L. –Sim. As divergências legais que estão sendo debatidas hoje são muito pequenas. Ninguém diz que baixar algo pelo qual você não pagou seja correto. Ninguém diz que postar um filme na internet é correto. Tudo o que estão discutindo é quem deve responder legalmente pelo ato. O YouTube diz: “Vocês não podem nos processar, têm de processar os indivíduos”. Mesmo se for difícil garantir o respeito às leis, é importante delimitar, com leis que digam “ei, isso é errado”. Só deixar o sinal já é importante.
O Google tem um lema, hoje pouco lembrado, “don't be evil”, não seja mau. Mas agora, com o Google tão grande, com o Facebook tão grande, a imagem do bem está mudando?
R. L. –Ah, sim.
No livro, você cita que [o editor] Chris Anderson proclamou, na Wired, que “a web está morta”, porque está se fechando, com dispositivos como Xbox Live e App Store. Os malvados se tornaram as grandes empresas de tecnologia? Elas são o novo alvo?
R. L. –Sim, mas me permita dar algum contexto. Sempre houve dois lados na indústria do entretenimento: o produto e a plataforma. Hoje, o Google controla a plataforma. Também os provedores de serviços de internet, as teles, são uma plataforma. Apple e Amazon têm plataformas fechadas. E parte do problema é: quem tem o poder, o produto ou a plataforma? Na indústria tradicional de mídia, o produto tem muito poder. Se estou tentando fazer você comprar TV paga, você vai querer o canal com os melhores programas. Se tenho um cinema, preciso de bons filmes. Com a internet, você não precisa pagar nada, está tudo lá. Então a questão é como fazer a plataforma pagar pelo produto. Quando Chris diz que “a web está morta”, uma das coisas de que está falando, penso eu, é que muitos dos criadores de conteúdo não gostam da internet, porque é uma forma muito ruim de vender coisas. A internet foi criada por cientistas que queriam compartilhar informação acadêmica. Para isso, ela é extraordinária. Mas não estamos mais usando a internet para compartilhar pesquisa acadêmica. Estamos usando para serviços bancários, para tudo.
Para mídia.
R. L. –Mas a internet só é boa para compartilhar informação. Se você quer vender informação, ela não é, na verdade, um sistema bem estruturado. Daí a pergunta: que passos podemos tomar para mudar o sistema? A Apple tem um sistema muito bom para vender coisas. O Xbox tem um sistema muito bom para vender coisas. Você pode achar os videogames idiotas, mas tecnicamente é um sistema muito bom. Mas o Google diz: “Espera aí, você não pode fazer mudanças, é imoral”. Eu não penso que seja imoral. É ruim para os negócios do Google, porque, quanto mais informação vai para a internet, mais o Google lucra. É ótimo para eles. Mas, se você quer lucrar também, alguém tem que comprar sua informação. Temos que estruturar um sistema ou regular um sistema para mais gente.
Regular como?
R. L. –Me desculpe se soa pretensioso, mas eu acho que a pergunta é: “Quem está no comando?” Os políticos regulam a plataforma ou as plataformas regulam os políticos? Eu não votei no Google. Eu vou e volto quanto ao governo americano, mas no ano que vem posso votar novamente. Provavelmente votarei em Obama outra vez, mas eu posso votar e você pode votar em não sei quantos anos. Você não pode votar no Google ou na Apple.
Eles estão lá e ponto.
R. L. –Eles simplesmente estão lá. Uma das coisas de que eu gosto sobre a Europa é que, quando os EUA não regularam a Microsoft, a Europa o fez. Quando os EUA não regularam a Intel, a Europa o fez. Não acredito que os EUA vão regular o Google. Porque eles são muito próximos de Obama.
Google e outras empresas de tecnologia têm feito encontros e jantares com Washington ultimamente.
R. L. –O Google doa muito dinheiro para Obama. Eric Schmidt [executivo do Google] foi um sério candidato a secretário do Comércio. Como você pode ter um secretário do Comércio que pensa que tudo deve ser grátis? É um pouco estranho.
Além de Chris Anderson, Tim Berners-Lee, o inventor da web, escreveu que a internet está em perigo por causa de “ilhas” como o iTunes.
R. L. –Mas aí eu tenho de perguntar se está em perigo ou se está evoluindo. Não quero voltar a comprar fitas cassete e discos de vinil. As coisas avançam e mudam. Podemos comprar música no iTunes, no Spotify, mas compramos on-line. Isso não vai voltar atrás. A indústria fonográfica tem de se adaptar, as editoras de livros têm de se adaptar. E adivinhe? Também Tim Berners-Lee tem de se adaptar. Por que todas as pessoas que defendem o progresso tecnológico querem que a internet se mantenha exatamente como era em 1995? Tim Berners-Lee e Lawrence Lessig e todos esses caras querem que a internet continue exatamente igual. A internet vai crescer, amadurecer.
Mas Berners-Lee criou a web, ele não deveria ser ouvido?
R. L. –Ele é um cientista, muito inteligente. Mas eu não quero um cientista decidindo como a sociedade deve funcionar. Para isso, ele não é qualificado. E deveria calar a boca. Aliás, eu não sou qualificado também. Isso precisa ser uma conversa política. Os chamados valores geek [dos aficcionados de tecnologia] na verdade não têm muito apoio entre as pessoas. Poucos parecem concordar com Tim Berners-Lee. Então, quem se importa com o que ele diz? É um gênio, mas só porque é um gênio da ciência da computação… Ter professores muito inteligentes decidindo como a sociedade funciona nos deu algumas das piores economia do século 20. Se você vai e pede, “estruture uma sociedade”, você termina com a União Soviética.
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[Nelson de Sá é articulista da Folha de S.Paulo]