Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Detox digital

Estou em tratamento. Sou a paciente e minha própria médica. Tomei consciência de quanto viciada e intoxicada estou de tecnologia. Demorei a perceber. Achava que sempre era eu quem estava no comando da situação. É assim com qualquer dependência. Achei que sabia tirar o melhor proveito dos eletrônicos, dos sistemas, dos sites, das redes sociais. Mas agora reconheço que não. Agora reconheço que quem mandava no meu tempo não era eu: era o fluxo dos aparelhos e sistemas eletrônicos que uso. Era qualquer um, menos eu.

As manchetes da revista que tenho ao lado são “How to be a geek dad” (“Como ser um pai geek”) e “The 5 geekiest family vacation spots” (“Os 5 lugares mais geek para as férias da família”). A revista é a Wired. Pela primeira vez não acho graça. Sinto-me na obrigação de traduzir geek para os não viciados. Geek é o entusiasta de computação. O termo é usado com orgulho entre os próprios. Mas, quando dito por alguém que não é geek, atenção, pode ser xingamento.

Comecei a desconfiar de que havia algo errado quando meu tempo desapareceu. Sim: desapareceu, escafedeu-se, sumiu. Por mais horas que ficasse à frente do computador todos os dias, tentando sofregamente trabalhar, minha produtividade caiu a um nível insuportável. Achei que andava apenas distraída, num país diferente, vivendo temporariamente em outra língua, tantas coisas práticas para resolver, tantos papéis novos a representar, tantos caminhos a escolher pela frente, tantas decisões a tomar.

Vida profissional e pessoal

Comecei a sentir falta de música. Uma falta profunda, daquelas de quem um dia considerou a hipótese de se tornar musicista. Mas, sempre que queria ouvir música, pegava o iPhone com a incrível discoteca acumulada ali e antes de ouvir, lá estava eu distraída com notícias, e-mails, Twitter, Facebook, Instagram e tudo o mais. Isso aconteceu centenas de vezes. Eu simplesmente não conseguia ouvir música.

Algo semelhante se passava no computador. Sentava para escrever e, antes de começar, lá estava eu apagando propaganda não solicitada, lendo boletins variados, vendo fotos de desconhecidos, lendo textos que nada me acrescentam e me deixando distrair por um fluxo qualquer que viesse a aparecer no meio do percurso que queria ter feito e não fiz. Disciplina, sim, disciplina. Comecei a listar tarefas. Listas grandes. Demorei a perceber que a lista tem de ser curta para ser concluída.

Vida profissional e pessoal se misturam na internet. Quem no Brasil tem coragem de recusar um colega (ou quem sabe um superior) no Facebook? Que RH ignora redes sociais quando avalia candidatos ou mesmo funcionários? Arriscar coisas perigosas, como escrever no celular enquanto caminha ou dirige. Ouvir reclamações por dar mais atenção ao seu “bichinho” eletrônico do que a pessoas do seu lado. Não se lembrar do que as pessoas falaram, pois sua atenção estava com o aparelho. Ter a sensação de que nada é realidade a não ser que seja contado pelo Twitter ou publicado como foto instantânea no Facebook ou no Instagram.

Quem é esse avatar?

Gastar mais tempo na internet do que em pessoa com os melhores amigos. Ter a ilusão de saber como estão os familiares apenas pelo que publicam no Facebook. Pôr o telefone sobre a mesa do restaurante, antes de pegar o cardápio. Frequentar ambientes em que todos ficam lendo mensagens em vez de conversar. Usar aparelho escondido para não parecer viciado.

Acho que essa hiperconectividade é no fundo um desejo infantil e irrealizável de ter tudo ao mesmo tempo agora. Sinto culpa e angústia por estar offline, demorando para reagir a uma mensagem que talvez tenha chegado, embora eu ainda não saiba. Essa angústia toda de a persona online ficar vulnerável a um destino desconhecido, pois não estamos a seu lado para protegê-la das maldades anônimas. Quem sou eu e quem é essa persona, esse avatar, esse clone, esse duplo meu que vive nas redes elétricas do planeta?

Estou aprendendo a me desligar. Estou aprendendo a me religar, usando a tecnologia a meu favor. Não é fácil, mas estou confiante.

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[Marion Strecker é jornalista, cofundadora e correspondente do UOL em San Francisco]