Ainda me lembro da época em que o público de um espetáculo musical estava lá para ouvir música, talvez para cantar e dançar, certamente não para fotografar e ser fotografado. Silenciosamente algo mudou. A popularização das câmaras e das redes de compartilhamento parece ter despertado até nos mais tímidos uma compulsão por mostrar tudo o que é vivido, mesmo que seja um acontecimento banal.
“Se não fotografou e não publicou, então não existe.” O exibicionismo é expresso em páginas, video casts, perfis e linhas do tempo que parecem relatórios clínicos de narcisistas compulsivos, em suas várias formas: fotografias com caras e bocas, opiniões rasas a respeito de praticamente tudo, vídeos em que nada de interessante acontece e a triste alegria coletiva com o grotesco e a humilhação. A exposição é razoavelmente recente. Uma das primeiras autobiografias dedicadas ao registro do cotidiano é Confissões, de Rousseau. Arrojado e provocador para o século 18, o iluminista francês ficaria chocado com o tamanho da exibição de hoje. Desde os anos 1980, quando yuppies, computadores pessoais e o culto ao corpo abriram canais para a expressão individual, o particular é cada vez mais público e amplificado.
Celulares e redes de compartilhamento transformaram os 15 minutos de fama em uma espécie de Show de Truman universal em que registros banais e confissões diversas tornaram todos um pouco inseguros, verificando a composição de sua figura no espelho do Facebook e corrigindo seu discurso e conduta de acordo com as menções e aprovações recebidas.
Todo egocentrismo é chato
Nem o Narciso mitológico seria tão autocentrado. Aquele que morreu afogado ao se apaixonar por sua figura refletida em um espelho d’água poderia argumentar que não sabia que via um reflexo. Como muitos usuários de redes sociais, ele se apaixonou por uma tela e sucumbiu ao confundi-la com a realidade. Essa confusão entre o real e o fictício publicado é uma das faces mais assustadoras do narcisismo digital. Muitos têm uma visão de realidade tão distorcida pela percepção alheia, tão fragmentada e amplificada pelos perfis e grupos a que pertencem que geram especulações maiores do que pode supor sua vã fenomenologia.
A vida na vitrine da interface, livre da moderação e da compostura que qualquer grupo social demanda, cria uma gigantesca câmara de eco, em que mensagens são referências de referências de referências, perdendo significado e substância no processo. O sucesso de uma trilogia pornô, derivada de uma fantasia de fã da série Crepúsculo, que por sua vez é derivada das clássicas histórias de vampiros, é o exemplo mais recente. Impulsionado pela indicação do amigo do amigo do amigo nas redes sociais, 50 Tons de Cinza se transformou no maior best-seller do país que um dia foi de Shakespeare e Charles Dickens.
Há uma certa melancolia na situação. Ambientes que permitem tanta exposição e manifestação de identidades múltiplas demandam coerência de pensamento para que seus atores não se tornem reféns das personagens que representam.
Sem contar que todo esse egocentrismo é muito, muito chato.
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[Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP e colunista da Folha de S.Paulo; mantém o blog www.luli.com.br]