Apple é uma fruta. Google é um algarismo. Mordida, a maçã representa o conhecimento, o domínio da vontade humana sobre as forças da natureza. Já o número é quase desconhecido. Em seu nome original – Googol –, ele equivale a um seguido de cem zeros, um valor tão grande que desafia a compreensão. “I”, em inglês, é um pronome pessoal. Representa o ser humano em sua complexidade, mistério, inconstância e criatividade. Android é um robô. Começa grande, impreciso e identificável para, aos poucos, se tornar invisível, certeiro e onipresente. Enquanto o indivíduo fascina por sua genialidade, o autômato não tem medo de dizer que só sabe que nada sabe, cativando a todos com sua aparente modéstia.
Os produtos da Apple beiram o fetiche. Sua interface, bem-acabada até o último pixel, nasce pronta, resistente a críticas, fechada a colaborações. Como uma fênix, se reinventará se provada errada e voltará triunfante, ignorando o passado. Sua personalidade é tão forte que provoca reações intensas e perenes, que perduram até depois da obsolescência. O Google, ao contrário, é tão espartano e discreto que beira a invisibilidade. Muitos de seus produtos nascem e morrem em silêncio. Os que sobrevivem sofrem mudanças progressivas, alheias a versões.
As oposições entre as duas filosofias parece não ter fim: um é pessoal, o outro, anônimo. Um privilegia o design, a caligrafia e o detalhe que beira o artesanal, o outro evidencia o cálculo, a análise, as bases de dados relacionais e o processamento paralelo quase instantâneo de inteligências artificiais. Diferentes até nas semelhanças, ambas as empresas têm sua forma particular de reinventar, valorizar e promover ideias e produtos.
Tecnologia deve ser tratada como adulta
O conflito entre elas, no entanto, é maior e mais significativo do que a comparação de seus modelos de negócios. O embate está mais para confronto de paradigmas, choque entre o artesanal e o industrial, o dominador e o contemplativo, o humano e a máquina. Mas até que ponto a tecnologia é alheia à nossa espécie? Não seria ela um dos ingredientes mais essenciais do homem, manifestando a eterna irritação e insatisfação que o macaco pelado tem com o estado das coisas a ponto de procurar, sempre, mudá-lo? Não seria ela tão humana quanto as artes, com o benefício adicional de melhorar a qualidade de vida se usada com critério?
Poucos a veem dessa forma. Curiosamente, do mesmo modo que aborígenes tinham medo que as fotografias lhes roubassem as almas, gente moderna e inteligente teme que a dependência da rede ou o uso de uma prótese tecnológica lhes roube a humanidade, deixando-os isolados, lobotomizados, pragmáticos e melancólicos. O temor não faz sentido. Até porque há nele certa hipocrisia, já que nem o mais lírico dos mortais quer sinceramente voltar ao passado, abrindo mão de energia elétrica, água corrente, zíperes, lycra, velcro, teflon e tantos outros.
Seja encarada como aliada ou inimiga, a tecnologia veio para ficar. Prodígio ou bastarda, ela é nossa filha que cresceu, ganhou identidade e demanda compreensão. Rejeitá-la faz tão pouco sentido quanto adorá-la incondicionalmente. É preciso tratá-la como adulta.
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[Luli Radfahrer é colunista da Folha de S.Paulo]