Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Desafios para a cultura na revolução digital

Uma das vítimas da bolha especulativa da internet no início dos anos 2000, o espanhol Javier Celaya viu a empresa de tecnologia em que trabalhava fazer fortuna no ambiente digital para, pouco tempo depois, ser levada à falência por não saber lidar com as novidades do período. A experiência, no entanto, não foi suficiente para afastar Celaya do mundo da tecnologia: percebendo a então crescente necessidade dos setores culturais em compreender como usar a tecnologia para sobreviver no século 21, o espanhol fundou, em 2004, sua própria empresa de consultoria, o portal sobre mercado cultural Dosdoce.com.

Oito anos depois, o portal de Celaya se consolidou como uma das principais referências sobre as tendências do setor cultural na Espanha, tendo realizado mais de 20 estudos sobre o uso de novas tecnologias por museus, galerias de artes, bibliotecas, fundações e pelo mercado editorial. Em entrevista durante sua visita ao Brasil na semana passada, para participar do 4º Seminário Internacional Rumos Jornalismo Cultural, Celaya falou sobre a importância do trabalho desenvolvido pelo portal, o impacto do livro digital para o mercado editorial e como setores culturais podem se beneficiar do uso inteligente de novas tecnologias para prestar melhores serviços aos consumidores e sobreviver às mudanças da era digital.

Mensurar a satisfação do consumidor

Como você vê o uso atual da tecnologia por setores culturais?

Javier Celaya – Só agora esses setores estão começando a pensar no uso de tecnologias aliadas aos seus negócios, mas ainda são poucos os que o fazem. Em geral, como nossas pesquisas mostram, o uso que se faz da tecnologia ainda se limita ao marketing e à promoção de conteúdo. A tecnologia pode oferecer mais aos setores culturais. Eles precisam entender o modo como as pessoas descobrem, consomem e compartilham conteúdos, que as pessoas não pagarão mais só por conteúdo, mas por serviços e experiências.

Que tipo de uso pode ser feito da tecnologia nesse sentido?

J.C. – Já estão surgindo tecnologias que permitem mensurar a satisfação real do consumidor, a partir dos dados adquiridos pelo uso de um produto. Por exemplo, em um livro digital, é possível saber a data em que ele foi comprado, a frequência que é lido, se foi todo lido, se o leitor está compartilhando informações sobre o livro, etc. A partir dessas informações, é possível fazer recomendações mais adequadas e personalizadas ao usuário. Ou seja, um serviço melhor.

O digital é um mercado enorme

Mas isso não afeta a privacidade do usuário?

J.C. – Se uma empresa me rastreia e sabe muito sobre mim, o que acontece com essas informações? Se no final do dia essas informações são vendidas para outras empresas, nós temos um problema. Assim, minha mensagem para o setor cultural é: não vendam seus clientes. Caso o façam, vocês serão abandonados por eles.

Acredita que isso deve ser regulado?

J.C. – Sem dúvida. Metadados (dados sobre dados) são o petróleo do século 21. Todas as empresas, não só do setor cultural, vão fazer uso de metadados e eles são como usinas nucleares: seu uso deve ser fortemente regulado. Uma coisa é utilizar esse tipo de informação para criar serviços, outra é usá-la para fins estritamente comerciais.

Como o mercado tem visto a emergência de livros digitais?

J.C. – Há três anos, nos EUA, muitos diziam que não havia mercado para o digital e apenas cerca de 3% de todas as vendas de livros eram nesse formato. Então a Amazon criou o Kindle, a Apple veio com o iPad e, hoje, os 3% se tornaram 30% nos EUA. O mesmo está acontecendo em outras partes conforme essas grandes empresas se expandem. Muitos varejistas e editoras que não acreditaram no digital foram surpreendidos e estão em crise. Minha mensagem para os editores e varejistas brasileiros é: levem a sério o digital. É um mercado enorme, é o seu futuro e ele avançará mais rápido do que nós esperamos.

O jornal online não deixa de ser jornal

Como o e-bookvai redefinir o papel das livrarias?

J.C. – Ou as livrarias criam uma experiência offline atrativa que seja única, ou elas vão ter problemas. Hoje elas estão pagando pelo aluguel da loja, pelos funcionários, pelos impostos, mas a venda está sendo feita online. Os donos de livrarias precisam permitir que as pessoas que vão às suas lojas possam fazer o download da versão digital de um livro imediatamente após a compra. Existem muitas tecnologias para isso, como o QR Code, que tem sido usado, em sua maioria, apenas de um jeito promocional.

E quanto às editoras?

J.C. – Elas precisam abraçar o digital verdadeiramente e, para isso, devem digitalizar todos os seus livros, tanto os lançamentos quanto o seu acervo antigo. O Brasil, como a Espanha, possui altos índices de pirataria, e o único modo de combater isso é oferecer um grande acervo de e-books legalmente, que seja muito barato. Se você apenas reduzir 20% ou 30% o preço dos seus livros, não conseguirá competir.

O digital vai mudar a natureza do livro?

J.C. – Sem dúvida. Vai transformar o formato do livro em algo multimídia. Muitas pessoas dizem que isso não seria um livro, porque se aproximaria mais de um videogame. Mas as transformações que temos visto, por exemplo, na mídia, não fazem com que o jornal online deixe de ser jornal por ser diferente do impresso. O mesmo vale para os livros digitais. Por isso, minha recomendação para as editoras é: descubram os novos tipos de autores do século 21 que apenas escreverão histórias no modelo digital, os representem e os coloquem no mercado, porque vai haver um grande negócio para eles.

Serviço personalizado

O livro digital pode mudar a realidade da falta de hábito de leitura em países em que isso é um problema, como o Brasil?

J.C. – Com as novas tecnologias, surgem novos jeitos de se contar histórias e, com isso, podemos atingir gerações mais jovens, que nasceram em um mundo onde tudo é dinâmico. Esses leitores podem ser parte das histórias, compartilhando suas experiências com outros leitores. O processo de leitura vai virar algo social e, com isso, acredito que atrairemos a atenção de pessoas que acham que ler é um processo tedioso.

E quanto ao futuro das bibliotecas?

J.C. – Acredito que o futuro da biblioteca é se tornar, mais do que nunca, o lugar de oferta e promoção de cultura para aqueles que não têm condições econômicas de pagar por um leitor ou um livro eletrônico. Além disso, elas serão os lugares onde as pessoas se reunirão para ler, discutir, se encontrar com autores. E, ao contrário das livrarias, elas não têm compromisso com o lucro, o que as permite sobreviver mais facilmente.

O jornalismo também vai mudar frente às novas tecnologias?

J.C. – Da minha perspectiva, a natureza do jornalista não vai mudar: alguém que procura pela verdade, que investiga, que apura, que tem outro ponto de vista. Mas a maneira de descobrir novas informações, de criar informações, publicar e distribuí-las, sim. As novas tecnologias vão permitir ao jornalista conhecer melhor o seu leitor e, com isso, também prestar um serviço melhor a eles, mais personalizado. E é por isso que as pessoas estarão interessadas em pagar.

***

[Thiago Jansen, de O Globo]